Cerração

– por Matheus Bensabat

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A névoa errante se enovela
Na folhagem das araucárias.
Há um suave encanto nela
Que enleia as almas solitárias

— Manuel Bandeira

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Passou os dedos em volta da ferida — e sentiu vontade de chorar.

A gangrena endurecera, adquirindo a mesma textura de um tronco de árvore centenária, rubificando a pele. Desde que voltara do hospital, encobria-a com a mesma gaze manipulada pela enfermeira ao receber alta. Há três dias não deixava a esposa trocar o curativo. Desculpava-se argumentando incômodo e dor. Não havia necessidade, não agora. Que esperasse.

Finas ataduras encobriam equimoses que, espaçadas, se estendiam das mãos às pernas, e acompanhando-as, laivos de sangue mais ou menos grossos.

Estava sentado no sofá, em frente da estante de livros, com uma toalha branca a cobrir-lhe os ombros. Observava, pelo quadrante da janela, as nuvens que, próximas, desmanchavam-se pela encosta, formando densa névoa, quando tentou levantar-se, apoiando-se no braço do assento, mas os bíceps, mesmo contraídos, não o sustentaram, e de um susto sentou-se de novo. Esticou as pernas, volteando os pés para aquecer a musculatura, até sentir firmeza — os longos dias em que ficara deitado na enfermaria tinham-no enfraquecido, deprimindo-o quando se via distante daquele jovem praça do exército que um dia fora. Pedira à esposa que guardasse a farda com a divisa de major, muito bem conservada, na capa para ternos com o Brasão da República gravado em ouro e prata; desde a última internação, evitava abrir o guarda-roupa, detendo-se no limiar da porta com as mãos entrecruzadas, as pernas contraídas, o mesmo olhar de seriedade com que recebia os elogios dos colegas quando eles recordavam causos de vigor físico dentro da mata dos pinheiros; da disposição em cavar buracos para que, nos exercícios de artilharia, pudessem esconder fuzis e alertas luminosos, além dos próprios soldados, porquanto dormiam agarrados aos equipamentos, até o modo que prestava continência, sempre altivo e rígido, levava os dedos à testa fazendo-os estalar ao mesmo tempo que espalmava a coxa com energia, mantendo o equilíbrio. Ao apresentar-se aos superiores, exercitava a desenvoltura que nele muitos sabiam ser virtude, ao passo que aos outros constituía tão somente uma obrigação; a postura impecável atraía admirações sem pejo de excessos. Certo dia, ainda sargento, fora designado para inspecionar um pelotão que preparava o acampamento dos oficiais e passaria a noite na mata, aguardando ordens para executar o trabalho topográfico, quando um recruta o chamou para a briga, com um trapo envolvendo os dedos, trincando os dentes, o qual seria responsável por introduzir, anos depois, no Rio de Janeiro, a primeira academia de jiu-jitsu. Estrangulava os mais novos com chaves diversas, e a luta corporal estendia-se para além de ribanceiras e mangues, os homens se embolavam, os que não suportavam apenas se debatiam, arfando, enquanto o diafragma era espremido por um braço que pela grossura mais parecia uma jararaca. Fora o único a se desvencilhar dos golpes, com coragem e inteligência, levando a mão direita ao braço que o enforcava, tateando até encontrar os dedos do oponente, e de um giro puxou-o para si, travando-lhe as pernas, alteando os quadris — defesa até então inédita. Não se desesperava nos momentos de tensão; pelo contrário, tornava-se engenhoso: novas ideias, que aos demais sequer apareciam, a ele vinham abundantes, e executava-as com precisão.

Conseguiu chegar até à varanda, mesmo com a sonolência causada pelos remédios. Das suaves ondulações da lagoa, rente à pequena ilha que, diziam, era infestada de cobras, dois pescadores manipulavam redes de arrasto, cada qual num pequeno barco — os remos, apoiados nas bordas, rompiam as ondulações da superfície —; e naquele momento contraiu o rosto, esforçando-se para observá-los melhor, mas não pôde ver muita coisa, tudo ao seu redor empalidecia. À sua vista, os barcos movimentavam-se como se transportassem almas destinadas ao inferno, um Caronte levava-as sobre a névoa deslizando pelas águas do Estige…

Pouco tempo depois, ouviu passos no corredor. O arrastar das sandálias anunciava a chegada da esposa. Aproximava-se com uma caixa azul estampada com lírios e bichinhos de estimação, ursos-polares em miniatura, macacos bonachões atirando bananas ao ar, alguns de cabeça para baixo, e, rente a uma casinha inglesa com contornos clássicos, garças alçavam voo em fileira, contornando o espaço em que as abelhas fluíam.

Encontrou-o ainda de pé, apoiado à pilastra, mirando a água e os troncos das árvores, que de tão perto ele quis tocá-los. Sobretudo a pitangueira, a um palmo do balaústre em que acabara de repousar o antebraço. Naquele momento, um pequeno raio de sol, que mais tarde se expandiria, dissipando a névoa, clareou a madeira. Não pôde, no entanto, distinguir a tonalidade dos feixes luminosos; quis esquentar-se mais e tirou os chinelos para colocar a sola dos pés na ardósia, esfregando-os. Ao longe, os barcos deslizavam nas águas, aumentando o alcance da rede, que àquela altura começara a encher: carpas, tilápias, jundiás, tambaquis e pirarucus eram arrastados à medida que os homens avançavam lagoa adentro, contornando a ilha, lançando iscas ao entorno.

Olívia permaneceu calada. Deixou a caixa no aparador e foi para a cozinha. Preparou um chá de ervas e quis oferecê-lo. Olhou-o: de costas parecia uma outra pessoa, há muito não havia entre eles a cumplicidade que cultivavam nos primeiros anos de casados, a chegada da enfermidade tornara-o introspectivo, e as poucas conversas que tinham eram a respeito dos sintomas, remédios e tratamentos. Seu estado de saúde, ao mesmo tempo que o abalara fisicamente, parecia também torná-lo seco e arredio, como alguém que perdera há muito a vontade de viver; sorria pouco, e das memórias compartilhadas com a esposa, destacava sobretudo os episódios da carreira militar, sempre sóbrio, procurando dar ênfase às missões de resgate, quando, por exemplo, foram convocados a ajudar nas buscas por corpos em Petrópolis; mas, agora, limitava-se apenas a responder com monossílabos, com a cabeça arriada, os dedos entrelaçados. Em breve, não estariam mais juntos, e esse pensamento, antes de a entristecer, encheu-a de uma certa ternura dorida.

Ao fundo, do lado esquerdo, avançando pela encosta, aproximava-se a cerração: segurando o bule, via através do quadrante da janela o ar saturado preencher lentamente a visão que tinha da rua e começou a aceitar a morte inevitável do marido; a diabetes avançada, a creatinina igual ou maior que dois; na próxima semana, começaria a hemodiálise e tudo se repetiria, tal como acontecera ao pai. Durante a adolescência, pôde acompanhá-lo no tratamento, o sangue circulando por borrachas transparentes, as mangueiras, estendidas ao longo do porcelanato, uma vermelha e outra branca, vibravam à passagem da água; o técnico, ao lado do paciente, de jaleco, comportando-se como médico, perguntava a todo momento se ele sentia alguma coisa, principalmente na região do pescoço, local do cateter, ou qualquer alteração fisiológica como enjoos e tonturas. Da maca estendia-lhe a mão, ao que ela correspondia segurando-a e sorrindo, para depois levantar-se, beijá-lo na testa e acariciar os cabelos; e, com citações bíblicas que recitava de cor, fazia-o lembrar dos momentos que Nosso Senhor passara no deserto, as tentações que tivera de suportar, os flagelos e as humilhações, as traições e as injúrias; e o fez lembrar também de Jó. Eram os únicos momentos em que ele conseguia se alegrar, imerso em doce esperança.

Afastou-se do balaústre e, com dificuldade, encaminhou-se para a poltrona, arrastando a perna esquerda.

Encontrou-a no sofá folheando o álbum de fotos, que tirara da caixa. A encadernação vermelha continha as assinaturas de todos os membros da família, em ordem alfabética, com uma caricatura desenhada à mão pelo filho mais novo, representando todos eles. Olívia percorria as páginas detendo-se ora em fotografias antigas, de avós e bisavós, que de tão envelhecidas abriam fendas ao longo do papel, ora nas mais recentes, lembranças que guardavam da época em que os filhos, miúdos, principiavam, estimulados pelo pai, a conhecer o Rio de Janeiro: os banhos na Praia de Copacabana em que as meninas, de maiô listrado preto e branco, grudavam-se à areia, unidas mãos com mãos, imprimindo a marca dos corpinhos que as ondas levariam segundos depois, ao que sorriam com gritos de contentamento; as madrugadas em que percorriam a orla, de carro, quando os garotos ainda eram de colo e as meninas não existiam; as caminhadas pelo Jardim Botânico, circundando bairros vizinhos: Lagoa, Humaitá, Gávea, Alto da Boa Vista… O que para os pais se constituía evento banal e desinteressante, para eles significava a revista ao longo do mundo.

Com a cabeça levemente arqueada, repousou a mão no antebraço dela, tateando-a; olhava-a sem distingui-la bem, e não disse nada. Olívia reorganizava as fotos, quando destacou três e, com o verso virado para ele, disse:

— Pode escolher…

E, com os dedos em pinça, tirou uma fotografia ao léu. No entanto, distinguiu apenas duas cores: o metal ouro do retábulo principal, encerrado com painéis da via-crúcis, pintados a óleo, tal qual o Santuário do Milagre, na Catalunha, obra atribuída ao português Pedro Nunes; e o tom avermelhado do buquê. Supôs tratar-se de alguma paisagem interiorana ou do pôr do sol. Era, no entanto, uma foto tirada na Catedral São João Batista, minutos depois da celebração do matrimônio.

— Vê, querido, como éramos belos? Tínhamos a imponência de certos impérios longínquos…

Manteve-se em silêncio durante alguns segundos e, distinguindo-a, disse:

— Você está ainda mais bonita…

Pegou-o pelas mãos, ao que a atadura, já gasta, soltou-se.

— Vamos trocar isso.

De pronto, quis dissuadi-la. Mas ela insistiu. Foi até o banheiro e voltou com a caixa de curativos. Agachou-se em frente dele e, com muito cuidado, tirou a gaze velha, grudada à ferida, para depois limpar a pele com soro fisiológico, como a enfermeira ensinara, passando também o algodão em volta dos hematomas.

— Dói?

— Um pouco — respondeu olhando para as árvores. Já não conseguia dilucidar o vapor na atmosfera; à medida que o tempo passava, tudo à sua volta adquiria um tom acinzentado, que encobria lentamente as coisas. Olhou para os lados, meneando a cabeça, tateando o sofá à procura da esposa, que parecia estar na varanda, lavando as mãos na pia.

Ao voltar, perguntou:

— Lembra-se, querido, do exercício de respiração? Precisamos fazê-lo pelo menos duas vezes por dia.

E, com as mãos em suas costas, ajudou-o a levantar-se, agora em direção à janela. Esticou os braços como se quisesse alcançar o céu e inspirou profundamente.

— Muito bem! Mais uma vez!

Agora, um pouco mais devagar, com a cabeça abaixada.

Após algumas repetições, acompanhou-o de volta à poltrona e trouxe até ele o banco em ripas de jacarandá. Fernando esticou as pernas e elevou as mãos até ela:

— Agora há pouco, na varanda, agradeci por ter vocês…

Olívia afagou as mãos magras, sorriu e serviu-lhe uma xícara de chá. Depois, voltou a folhear o álbum.

— Lembra-se dela, meu amor? — E, mostrando a foto, disse: — É a tia Margarida, você a conheceu. Era uma querida. Quando eu e o papai a visitávamos, tratava-nos sempre com carinho… Me abraçava e dizia: “Está cada vez mais parecida com a Lívia. Mas você não a conheceu, querida…”.

E lembrou-se de quando, na primeira infância, participava das reuniões na casa dos Araújo, na Tijuca, ao fim da missa de domingo. Margarida recebia-os com quitutes italianos, docinhos de coco, bolo de baunilha com cobertura de chocolate e morango. Olívia, que naquelas tardes mais parecia um garotinho com o cabelo rente à altura da orelha, distraía-se a um canto acariciando um gato enquanto o pai discorria a respeito de política, e da varanda observava o Corcovado encoberto pela névoa — como a que agora paira sobre a lagoa e os barcos. Dona Margarida, estafada pelo palavrório dos amigos, aproximava-se dela e, com uma calma senil, tocava Chopin ao piano. Olívia deixava-se levar pelos acordes como se estes ditassem o ritmo dos seus afagos, promanando da harmonia a excitação de paixões imaginárias.

— Gostaria de tê-lo conhecido naquele tempo, durante a infância. Sentia que dentro de mim se agitava um mar bravio…

— Ainda hoje, meu amor…

— Daqui a pouco, querido, vou preparar a bacia d’água.

Concordou, levantando o queixo, arrastando a barba pela toalha.

— Você sempre foi boa comigo…

— Vamos mudar de assunto — disse, como quem quer se livrar de um inconveniente —, olha como eles eram lindos!

Na foto, dois meninos estavam sentados na arquibancada do Maracanã. O mais velho, com o boné do Flamengo, segurava um cartaz confeccionado com as cores do time, em aquarela, enquanto acenava para os jogadores; e o mais novo, quieto e resignado, limitava-se a levantar os braços, destacando-se entre as pessoas, para a foto.

Logo abaixo uma garotinha, sorrindo, abraçava um gato siamês.

— Olha como era linda!

— É a Rosa?

— Não, querido, é a Júlia.

Naquele instante, embuçou o rosto na toalha, cerrou as pálpebras e começou a chorar, silenciosamente. As lágrimas ora estacavam em sua pele, ora escorriam para o canto da boca, preenchendo as fissuras dos lábios ressequidos pelos antibióticos — e do breu que o envolvia saíam troncos velhíssimos e tribais distribuídos mata adentro, misturados aos galhos que, rígidos como lanças, feriam o ar gelado da Serra dos Órgãos. Derrubava-os a facão… Comandante do Pelotão de Selva. Dois garotinhos abraçados a uma estátua choravam a morte da mãe, imagem de algum filme europeu a que assistira na juventude; os olhos azuis do primeiro, tal como os dele, miravam-no com sensualidade; as mãos sujas de terra em Petrópolis; o caminhão do exército abarrotado de corpos de idosos e crianças, os soldados mal podiam distingui-los pela lama, alguns desmaiavam, enquanto outros tiravam a farda para se movimentarem com desenvoltura, cavando, de joelhos, com pás de mão, buracos de dois metros; os pelotões se dividiam por diversos bairros: Caxambu, Quitandinha, Alto da Serra, e nas encostas encontravam pernas e braços lacerados; pessoas abraçadas umas às outras com os rostos colados, como se uma trava tivesse cingido os corpos na hora da morte…

Olívia falava ainda e, olhando para as fotos muito atentamente, discorria sobre a infância dos filhos, mas aos poucos se conteve ao perceber que ele nada dizia.

Ainda encurvado, enxugou o resto das lágrimas na toalha, como se limpasse suor, e voltou o rosto para os acessórios da caixa. Dentro dela havia, além das fotos, um pequeno frasco de perfume.

— Vou buscar a bacia e o espelho — disse, embolando as palavras, após guardar o álbum.

Antes, no entanto, abriu a botelha e esborrifou, ao léu, como se fosse uma criancinha, a fragrância de água-de-colônia. Fernando ainda conseguia observar o esguicho das gotículas se espalhando no ar — e o cheiro pareceu dar-lhe esperança. Enfim uma sensação nova e agradável além do ar pesado da sala. Movimentou a cabeça a fim de inalar as partículas, quando ela, ao observá-lo, depôs o frasco no aparador e passou as mãos pelos seus cabelos.

Fechou os olhos e quase adormeceu enquanto ela entoava, com uma voz doce, um adágio, talvez o mesmo do tempo de menina…

Acompanhou-a pelo vulto e deixou-se ficar, quieto, roendo as unhas e mirando o vazio dos móveis. Partículas maiores se dissolviam ainda, perpassando feixes luminosos, avançando lentamente até alcançar o vão da janela — já não sentia o cheiro da água-de-colônia, e sim a fragrância de flores recém-molhadas pela chuva, as mesmas que regava no quintal em companhia da filha mais nova.

Enquanto a esperava, teve a ideia de folhear um livro, há tempos não lia nada… Mirou a estante. Inclinou-se, esticou o braço e retirou, tateando a madeira, a Vulgata. Abriu-a: seus olhos pararam num capítulo, esforçou-se para decifrar as palavras, mas não conseguiu. Construções em latim superpunham-se à enumeração dos parágrafos, e as páginas como que empalideciam, impedindo a leitura. Colocou-a entre as pernas e entrelaçou com vigor as mãos magras.

Olívia voltava para a sala com um espelho bisotado e o barbeador na mão esquerda, além de uma pequena bacia com água morna.

Quando lhe tirou a toalha dos ombros para ajeitá-la na gola do moletom, pôde perceber a umidade que as lágrimas deixaram no tecido. Ele abandonou-se inteiramente ao cuidado da amada e suspirou quando sentiu a lâmina percorrer a pele.

Ao levar o espelho em direção ao rosto do marido, notou, com espanto, que sua órbita direita esvaziava, nela ocupando um minúsculo borrão como que destacado de um céu nublado e que em pouco tempo tomaria conta da íris, privando-a da luz — seus olhos, de um azulado opalescente, em pouco tempo tornar-se-iam duas bolas de vidro, e nunca mais poderia enxergar…

Ainda com o espelho à sua frente, percebeu-o mirando o vácuo, rodeando a cabeça como se estivesse em estado de loucura; quem o visse entenderia que ele procurava orientar-se pela voz da esposa, que naquele momento, ao notar sua angústia, tentava acalmá-lo; e de uma forma ainda mais cândida, colocou o espelho no aparador e limpou-lhe, com a toalha, a espuma do rosto, com os dedos em seu queixo, tranquilizando-o.

Guardou os objetos, foi até a varanda, despejou a água suja na pia e voltou para a sala, sentando-se ao seu lado, encostada no braço da poltrona. Ao tatear o sofá à procura de suas mãos, sentiu que os dedos da amada repousavam lentamente em seu braço.

Ficaram em silêncio. Quando deram por si, anoitecia.

— Vamos, meu amor, você precisa se alimentar…

E guiou-o até a cozinha.