Cem Anos de Desolação

– por Daniel Berça

Cem anos se passaram e The Waste Land continua causando a mesma estranheza, a mesma reação de assombro e desconforto. O poema é considerado um dos mais importantes e influentes do século XX e comparado com frequência ao Ulysses de James Joyce. Ambos foram publicados no mesmo ano, 1922, e são reconhecidos como as obras de língua inglesa mais representativas da modernidade.

A primeira publicação saiu na edição de outubro de 1922, na revista The Criterion, editada pelo próprio T. S. Eliot, e, em novembro, na revista americana The Dial. Ambas sem as famosas notas escritas pelo autor. A primeira publicação do poema em livro, já com as notas, foi feita em dezembro do mesmo ano, pela editora americana Boni and Liveright.

A primeira tradução para o português foi publicada no Brasil em 1956, feita pelo escritor e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Saiu em uma edição limitada da Editora Civilização Brasileira com uma tiragem de apenas 300 exemplares. Tornou-se logo uma raridade, custando pequenas fortunas nos sebos. Para nossa sorte, a Biblioteca Nacional disponibilizou a versão da obra digitalizada em seu site.[i] Em Portugal, a primeira tradução é de Maria Amélia Neto, pela Editora Ática, lançada em 1972, cinqüenta anos após a publicação do poema original.

Hoje já temos muitas traduções e podemos perceber que a primeira dificuldade do tradutor é com o título. Como disse Paulo Mendes Campos: o adjetivo ‘waste’ tem uma grande franja de significado: deserto, ermo, desabitado, despovoado, bravio, desolado, árido, inculto etc.” Paulo Mendes Campos ficou insatisfeito com a sua escolha, A Terra Inútil, mas disse que não conseguiria pensar em outro título. Ivo Barroso, Gualter Cunha e Júlia Cortês Rodrigues escolheram A Terra Devastada. Paulo Vizioli e Idelma Ribeiro de Faria escolheram A Terra Gasta. Maria Amélia Neto preferiu A Terra Sem Vida. Gilmar Leal dos Santos, traduziu como A Terra Árida. Ivan Junqueira e Caetano Galindo optaram por A Terra Desolada. Paulo Leminski disse que se fosse traduzir o poema, sua escolha seria Devastolândia. A minha preferência oscila entre A Terra Gasta e A Terra Desolada. Este último, à primeira vista, traz um aspecto mais psicológico, referente a um estado mental de desamparo, tristeza e consternação. Mas além desse aspecto, há também uma imagem de ruína, de desértico, de devastação. Na Bíblia, especialmente nos profetas, encontramos com frequência o adjetivo relacionado às profecias ligadas ao castigo de Israel ou de seus vizinhos por se afastarem de Deus. Já Terra Gasta se aproxima mais, apesar da inversão, da sonoridade original. Enfim, por não me decidir, prefiro usar o título original.

Um poema difícil como The Waste Land pode nos assustar. Tem trechos em sete idiomas distintos, há alusões a dezenas de obras literárias, religiosas, musicais. Eliot complicou ainda mais a coisa: ao perceber que o poema era pequeno para uma publicação em livro e supostamente para livrar-se da acusação de plágio, incluiu ao final uma seção de notas que fazem ainda mais alusões e até hoje geram muita discussão. Há um volume imenso de teses, estudos, papers, não apenas sobre a interpretação do poema, o que seria natural, mas sobre o papel que as notas desempenham nele. E os estudiosos se dividem a respeito do quanto essas indicações são sérias e se devem ser consideradas elucidativas ou se, pelo contrário, servem mais para nos despistar, ou, ainda, se passaram a ser matéria poética, fazendo parte do próprio poema.

Porém, The Waste Land não é um poema hermético. Mesmo a leitura mais elementar pode nos trazer uma experiência que não é tão distante assim, como poderíamos pensar, da leitura profunda de quem conhece todas as referências. Em 1929, Eliot escreveu em um ensaio sobre Dante:

“It is a test (a positive test, I do not assert that it is always valid negatively), that genuine poetry can communicate before it is understood. The impression can be verified on fuller knowledge; I have found with Dante and with several other poets in languages in which I was unskilled, that about such impressions there was nothing fanciful.”[ii]

O poema não é um enigma, algo que possa ser decifrado, uma vez que você encontre a chave certa de leitura. Como toda grande obra literária, ele se aproxima mais do mistério do que do enigma, e o mistério é o que pode ser contemplado, mas nunca esgotado e abarcado em plenitude.

Também não é fácil sintetizar em poucas linhas a temática do poema. Imagine encontrar um conhecido no elevador. Ele cumprimenta você, vê um livro em suas mãos e pergunta o que você está lendo. Você responde que está lendo um poema chamado The Waste Land, então vem a pergunta: “legal, e sobre o que fala o poema?” Faltam poucos segundos para o elevador abrir e a pessoa ir embora. O que você responderia? Talvez alguma frase pomposa como “a expressão do mundo moderno como um mundo fragmentado em que a aridez espiritual acentua a decadência física e moral da Europa no pós-guerra”. Tarefa impossível! Você pode até passar ao amigo uma imagem de inteligente – ou de pedante –, mas não dá para abarcar toda a temática de The Waste Land e todas as possíveis interpretações em poucas linhas. Por isso, caro leitor, caso ainda não tenha lido, convido que o faça primeiro, antes de ler qualquer ensaio ou comentário que tenha a intenção de explicar o poema. Se possível, vá ler agora, antes de continuar a leitura destas linhas. Leva uns vinte e cinco minutos. No mínimo, você vai ter assunto para muitos cafés ou cervejas com os amigos. Pode me convidar!

Pronto. Qual foi a sensação? Qual a estranheza que sentiu ao ler o poema? No meu caso, a primeira sensação foi a de fragmentação e falta de unidade. A impressão que tive foi parecida com – essa vai revelar minha idade – girar o botão do rádio, sintonizar uma entrevista, pegar uma frase solta, girar de novo, uma música, de novo, uma propaganda, e ficar mudando e mudando de estação sem parar em nenhuma, e no fim desligar o rádio sem ter escutado um único programa completo. Ou ainda, quando ando pela Avenida Paulista e escuto trechos de conversas alheias, de cada grupo de pessoas que passam por mim, e as frases vão se entrecruzando. Algumas são estrangeiras e falam em uma língua que não conheço. Outras falam algo banal, engraçado. Outras chamam minha atenção porque tocam em um tema que me interessa, dou uma olhada de canto de olho e continuo a andar porque não quero passar como intrometido. Às vezes, sentimos que fazemos parte dessa grande metrópole, de uma comunidade global, mas também sentimos a angústia da solidão, de estarmos sozinhos na multidão, o aperto da massa buscando a nossa dissolução.

Hoje, ainda mais do que há cem anos, sentimos a opressão do excesso. O volume de conhecimento disponível, de livros de fácil acesso, cursos, informações, é assustador. A assimilação total é impossível, podemos nos dedicar a alguns idiomas, à literatura, à filosofia, mas ser um polímata hoje em dia é ser mastigado por Cronos em um piscar de olhos. Todas essas sensações me vêm à mente na leitura de The Waste Land.

John Peale Bishop, um poeta americano contemporâneo à publicação do poema, escreveu sua reação em uma carta a Edmund Wilson:

“. . . I have read The Waste Land about five times a day since the copy of the Criterion came into my hands. It is immense. magnificent. terrible. I have not yet been able to figure it all out; especially the fortune telling episode, the king my brother and the king my father, and the strange words that look like Hindu puzzle to me. (…) I don’t think he has ever used his stolen lines to such terrible effect as in this poem. And the hurry up please it’s time makes my flesh creep.[iii]

A reação do jovem poeta não é parecida com a nossa na primeira ou segunda leitura? Podemos não entender nem uma pequena parte de todas as alusões de que o poema está repleto, mas há uma impressão que fica, que marca nossa sensibilidade. Um poema, um bom poema, não é escrito para ser entendido, mas para que vivamos uma experiência. A experiência de leitura pode ter vários níveis diferentes. Em um primeiro nível, nada é necessário para ler um poema além de conhecer o idioma em que está escrito, ou traduzido.

Agora, se você gostou da experiência e quer se aprofundar um pouco mais no poema, por onde começar, com tantas referências? Ler todas as notas ou comprar uma edição anotada? A minha sugestão é começar com um kit básico que fale a respeito da vida do autor, entender um pouco da simbologia em torno do Graal, conhecer o Evangelho e alguns elementos do pensamento oriental: saber do que se trata o Sermão do Fogo e a fábula sobre o que falou o trovão no Upanishad. Como bônus, eu não deixaria de prestar atenção àquilo que o próprio Eliot comentou sobre o poema. Apesar de concordar com um amigo que diz que muitas vezes o autor é velhaco e suas respostas em entrevistas nem sempre são sérias.

Vamos começar pela mini-biografia. Dentre os críticos literários há aqueles que defendem que a obra tem autonomia absoluta sobre a vida do autor, outros dizem que a vida, a psicologia, a origem social e racial explicam a obra. Eu, como um simples leitor, prefiro olhar os extremos com desconfiança e me interesso sim por alguns pontos da biografia do autor, na medida em que possam trazer alguma luz à obra. No caso de Eliot, em relação à The Waste Land, são quatro pontos que me chamam a atenção: a identidade, a formação, o primeiro casamento e a conversão.

Thomas Stearns Eliot nasceu em St. Louis, no Missouri, EUA, em 26 de setembro de 1888. A família era de origem inglesa, mas já estava nos EUA desde o século XVII. O pai era empresário e a mãe, escritora. Eliot chegou a publicar um poema dramático escrito pela mãe sobre Savonarola. Ele era o caçula e tinha quatro irmãs e um irmão. Portanto, ele era americano, do meio-oeste, de família razoavelmente rica. Porém, em 1927, após passar um pouco mais de uma década na Europa, ele se tornou cidadão britânico. Londres, tão presente no poema, não é a sua cidade natal. E alguns momentos do poema transparecem um certo conflito de identidade. “Bin gar keine Russin, stamm’ aus Litauen, echt Deutsch.”[iv]

Sabemos que a família de Eliot não era totalmente desprovida de posses pela sua formação. Eliot estudou em uma escola preparatória que seu avô ajudou a fundar em St. Louis, a Smith Academy, depois continuou seus estudos em Harvard, onde estudou filosofia e literatura. Durante esse período, teve contato com a filosofia oriental e estudou sânscrito. Em 1914, passou um tempo na Universidade de Marburg, depois na Sorbonne e em Oxford. Nesse mesmo ano, passou a residir na Inglaterra onde trabalhou como professor e depois no Lloyds Bank. Em 1925, começou a trabalhar na editora Faber & Faber, onde ficaria décadas, chegando até a tornar-se diretor da empresa. Os seus estudos filosóficos, o contato com a filosofia oriental e mesmo o seu trabalho no banco compõem vários dos elementos presentes no poema.

Em 1915, casou-se com Vivienne Haigh-Wood. O casamento não foi feliz. Vivienne era inteligente, bonita, mas mentalmente instável. De acordo com a rede de fuxicos literários, ela teria tido um caso com Bertrand Russell. Evelyn Waugh teria escrito em seu diário que a insanidade de Vivienne surgiu da sedução e rejeição de Bertie[v]. A separação se deu em 1933. Em 1938, ela foi internada pelo irmão, contra a própria vontade, em um hospital psiquiátrico, vindo a falecer em 1947. Eliot chegou a comentar sobre o seu casamento: “para ela, o casamento não trouxe felicidade. E para mim, trouxe o estado mental em que surgiu The Waste Land”. Em 1957, ele se casou novamente com sua secretária Esmé Valerie Fletcher, 38 anos mais nova que ele. Claro que não dá para explicar The Waste Land somente como um conflito pessoal e uma crise no casamento, mas muitas das referências femininas no poema são trágicas, Filomela, Cleópatra, Dido; ou os relacionamentos são frios, mecânicos, como o da moça do bar e  o da datilógrafa. O amor, no poema, é sinônimo de morte, dissolução, embotamento, e o sexo é desprovido de qualquer encanto.

Eliot vinha de uma família de unitaristas, doutrina de origem protestante que nega a Santíssima Trindade e afirma a unidade absoluta de Deus. Seu avô era ministro da igreja unitarista em St. Louis. Em 1927, ele se converteu ao Anglicanismo. Eliot usou algumas frases de efeito para definir seu posicionamento religioso e político. No período próximo a sua conversão ele escreveu que se considerava “classicista em literatura, monarquista em política e anglo-católico em religião”. Trinta anos depois, ele ainda dizia que sua visão religiosa combinava uma mentalidade católica, uma herança calvinista e um temperamento puritano. Quando escreveu The Waste Land, Eliot ainda não tinha se convertido, faltavam cinco anos para que tomasse essa decisão. The Waste Land não é um poema cristão, mas elementos dessa busca espiritual estão presentes o tempo todo no poema.

Na primeira nota de Eliot ao poema, ele escreve:

“Não só o título, mas também o plano e boa parte do simbolismo episódico do poema foram sugeridos pelo livro de Jessie L. Weston sobre o ciclo de lendas do Santo Graal: “From Ritual to Romance” (Cambridge). A tal ponto, de fato, chega a minha dívida para com o livro de Miss Weston, que o mesmo poderá, melhor que as minhas notas, elucidar as dificuldades do poema; recomendo essa obra (a parte do seu interesse intrínseco) a todos quantos julguem tal elucidação compensadora do esforço.”[vi]

O livro de Weston é uma análise da simbologia presente na lenda do Graal, partindo de sua base nos romances medievais e traçando sua origem em rituais antigos, pré-cristãos, especialmente nos ritos de fertilidade e nas chamadas cerimônias da vegetação. Se Eliot estava sendo sincero em sua nota ou se ele realmente concordava com a interpretação dada pela autora, não tem tanta importância, mas o que importa nessa indicação é que a simbologia do Graal está fortemente presente no poema.

Outro livro citado na mesma nota é o famoso O Ramo de Ouro de James G. Frazer. Eliot diz:

“De caráter mais generalizado é a dívida que tenho para com outra obra de antropologia, obra essa que influenciou profundamente a geração a que pertenço: refiro-me a ‘The Golden Bough’; usei, principalmente, os dois volumes intitulados ‘Adonis, Attis, Osiris’. Quem conhecer as referidas obras reconhecerá imediatamente no poema certas referências a cerimónias relacionadas com o mundo vegetal.”[vii]

Não li o Ramo de Ouro, mas o que encontrei sobre ele diz que o autor propõe que há uma evolução na cultura humana, que teria passado do pensamento mágico ao religioso e, por fim, ao científico. Contudo, os elementos sacrificiais dos cultos antigos, como rituais de fertilidade, sacrifícios humanos, bode expiatório etc. continuaram influenciando a cultura atual. Eliot usa esses elementos todos como matéria-prima para o seu poema. The Waste Land não é uma tese antropológica, não é um poema didático. Portanto, esses elementos entram no poema com um sentido simbólico, não abstrato.

O Graal, para nós brasileiros, não é um símbolo muito comum. Os mais velhos têm alguma referência visual por causa de Indiana Jones e a Última Cruzada. Os mais novos sabem algo a respeito porque leram Dan Brown. A lenda do Graal está presente no ciclo das lendas do Rei Arthur. A primeira aparição literária está no poema de Chrétien de Troyes, mas há várias versões em outros escritores medievais. No ciclo arturiano, as lendas envolvem a busca do Graal por um herói (Gawain, Percival ou Galahad) como fonte da cura do Rei. Há uma relação intrínseca entre a doença do Rei (doença, ferida ou velhice) e a esterilidade ou desolação da terra. A busca do Graal traria, então, não apenas a cura do Rei, mas a libertação das águas e o restabelecimento da fertilidade da terra. Weston considera que a lenda tem origem em cultos pagãos da natureza e que o elemento cristão foi acrescentado apenas na transformação em literatura.

Na maioria das lendas, o rei doente não é o Rei Arthur, mas um rei nomeado apenas como Rei Pescador. O Rei é retratado como ferido de morte, doente ou apenas velho. Inválido, a única ação que lhe resta é pescar enquanto aguarda pelo cavaleiro que pode curá-lo. Em alguns casos, ele é o próprio guardião do Graal e o cavaleiro tem apenas de fazer as perguntas certas. Porém, o importante é a estreita conexão entre a vitalidade do Rei e da terra. Conforme Weston:

“We have already seen that the personality of the King, the nature of the disability under which he is suffering, and the reflex effect exercised upon his folk and his land, correspond, in a most striking manner, to the intimate relation at one time held to exist between the ruler and his land; a relation mainly dependent upon the identification of the King with the Divine principle of Life and Fertility.”[viii]

A terra desolada é o resultado, portanto, da falta de vitalidade do Rei. Em alguns casos, ela é devastada pela guerra, em outros é estéril ou árida. E a tarefa do herói é restabelecer o fluxo de água nos seus canais para que ela possa tornar-se fértil novamente.

Outro símbolo presente nas mesmas lendas, também usado por Eliot, é o da capela perigosa. Este é um local em que o herói é testado por forças sobrenaturais, muitas vezes malévolas. Em alguns casos, são cavaleiros-fantasmas, uma mão negra ou um altar com um cavaleiro morto. Weston argumenta que provavelmente o símbolo surgiu de algum acontecimento real envolvendo ritos de iniciação. A capela de Eliot (385-394) está vazia, nela há apenas vento e ossos cegos que não ferem ninguém. Portanto, não há perigo. Apenas um galo cantando no telhado. Sinal de esperança, prenúncio da aurora? Ou um lembrete da negação de Pedro?

As referências cristãs no poema são inúmeras, desde o Antigo Testamento, com Ezequiel, Isaías e o Eclesiastes, até o Evangelho com a agonia, prisão e morte de Jesus (322-330) e os discípulos de Emaús (359-365).

Porém, o poema também traz duas referências às religiões orientais de que talvez o leitor esteja menos informado. A primeira é o título da terceira parte: The Fire Sermon, o Sermão do Fogo. O título foi tirado de um sermão do Buda (Siddartha Gautama, 563-483 a.C.). Eliot leu esse texto na tradução de Henry Clarke, professor de Harvard.

Em resumo, Buda adverte seus monges de que o mundo nos enche de desejo, de concupiscência, e a conseqüência disso é o sofrimento. A maneira de escapar desse ciclo é por meio da ausência do apego e do desejo, conquistando o nirvana, a libertação do sofrimento, que levaria ao fim do ciclo de morte e renascimento.

Na última sessão do poema, What the Thunder Said?, há uma referência ao Upanishad, um dos escritos sagrados do hinduísmo. Na fábula que Eliot cita em sua nota, o senhor da criação, Prajapati, troveja (emite o som de trovão) três vezes, sendo o som representado pela palavra em sânscrito “DA”. Aos deuses, Prajapati pergunta: Vós entendestes?” Eles respondem: Sim. Você nos disse, ‘controlai a si mesmos (damyata).’”Ele faz a mesma pergunta aos homens, que dizem: “Sim. Você nos disse, ‘dai’ (datta)”. Então, chegou a vez dos demônios, que responderam: “Sim. Você nos disse: ‘sede compassivos’ (dayadhvam).’” A mesma coisa é repetida sempre pela voz celestial, na forma de trovão, até os dias de hoje, “DA”, “DA”, “DA”, o que, segundo a fábula, significa: “controle a si mesmo”, “dê”, e “tenha compaixão”. Isso seria algo que todos deveriam aprender: autocontrole, doação, misericórdia. Eliot termina o poema repetindo a palavra Shantih três vezes, que, conforme a própria nota de Eliot, significa “a paz que ultrapassa a compreensão”.

Surge então, aqui, uma outra estranheza que vai depender da orientação política e religiosa do leitor. T. S. Eliot, por suas opiniões políticas, por sua conversão ao anglicanismo, por sua visão de mundo talvez um pouco aristocrática, costuma ser o poeta queridinho de certo ambiente conservador. No Brasil de uns 20 anos atrás, quando a direita buscava ter ainda alguma voz nos blogs, fóruns, listas de discussão e nas primeiras redes sociais, Eliot e Auden eram os baluartes de uma visão de mundo mais conservadora no âmbito artístico. Mas, quando o incauto parte para a leitura de The Waste Land, recebe um certo choque. O poema é moderno, fragmentado, cheio de temas aparentemente mais ligados à esquerda ou aos liberais (aborto e sexo). Esse choque poderia levar o leitor conservador a tomar uma posição entre as seguintes: o Eliot de The Waste Land é totalmente diferente do dos ensaios e poemas posteriores à sua conversão; o Eliot poeta é diferente do Eliot ensaísta, então seria melhor ficar somente com o Eliot ensaísta (algo parecido com o que ocorre com o Nelson Rodrigues dramaturgo versus cronista); Eliot está criticando a arte moderna, usando-a como uma paródia de si mesma.

A primeira posição pode não estar totalmente equivocada, mas o espaço de tempo entre a escrita de The Waste Land e a conversão do autor não é tão grande assim, é de cinco anos. O de The Hollow Men, que tem muitas semelhanças de espírito com The Waste Land, é de apenas dois anos. E a conversão de Eliot ao anglo-catolicismo não me parece ser um caso de conversão repentina.

A segunda opção também não me parece a mais adequada. Em seu magnífico ensaio sobre os poetas metafísicos ingleses, Eliot critica justamente essa visão estanque entre pensamento e poesia:

Quando o espírito de um poeta está perfeitamente equipado para o seu trabalho, amalgama constantemente experiências díspares; a experiência do homem vulgar é caótica, irregular, fragmentária. Apaixona-se ou lê Espinosa e estas duas experiências nada têm a ver uma com a outra, ou com o ruído da máquina de escrever, ou com o cheiro dos cozinhados; no espírito do poeta, estas experiências estão sempre a formar novos todos.[ix]

A terceira opção seria a mais incoerente, pois iria totalmente contra a nossa experiência de leitura do poema. É possível notar muitas passagens nas quais o humor está presente em The Waste Land (Madame Sosostris, por exemplo), mas o tempo todo notamos que há algo terrível, trágico, ominoso, de forma que seria contrariar muito nossa própria sensibilidade ler o poema como uma grande paródia.

A opção que me parece mais adequada é a mesma para qualquer leitura de uma obra que contrarie nossa visão de mundo: se é uma obra de arte verdadeira, ela capta e expressa em linguagem poética um aspecto da realidade. Como diz Flannery O’Connor: “É quando a fé individual está fraca, e não forte, que teremos medo de uma representação ficcional sincera da vida”.[x]

Um cristão não será nunca um niilista, um pessimista trágico, porque sabe que há esperança. Cremos na redenção e, portanto, sabemos que há, sim, água, e água viva que irá renovar a terra gasta. Porém, não estamos isentos de momentos de dúvida, em que sentimos o peso mais forte das contrariedades, ou em que as vicissitudes do mundo parecem estar nos encaminhando para uma situação irreversível e o tom geral assume um matiz apocalíptico e sombrio. E não importa muito se a desolação é de origem externa (política, bélica, cultural) ou interna (uma crise pessoal), um poema como The Waste Land nos ajuda a dar voz a esse sentimento.

Daniel Berça é formado em Comunicação Social (Puc-Campinas). Servidor público, leitor compulsivo, mora em Campinas (SP).


[i] http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or289659/or289659.pdf

[ii] The Complete Prose of T. S. Eliot: The Critical Edition: Literature, Politics, Belief, 1927–1929, p. 701. Tradução livre: “É um teste (um teste positivo, não quer dizer que seja sempre válido negativamente), que a poesia genuína pode comunicar antes de ser entendida. A impressão pode ser verificada em um conhecimento aprofundado; eu percebi com Dante e com muitos outros poetas cujo idioma eu não tinha muita habilidade, que essas impressões não eram nada fantasiosas.”

[iii] The Annotated Waste Land with Eliots Contemporary Prose, Introduction, p. 33.

Tradução livre: “Eu tenho lido The Waste Land umas cinco vezes por dia desde que a cópia de Criterion chegou em minhas mãos. É imenso. Magnífico. Terrível. Eu ainda não consegui entender tudo; em especial o episódio da cartomante, o rei meu irmão e o rei meu pai, e as palavras estranhas que parecem hindu são um enigma para mim. (…) Eu acho que ele nunca usou linhas roubadas para um efeito tão terrível como neste poema. E o hurry up please it’s time me dá arrepios.”

[iv] Verso 12 do poema. Em alemão, no original. Tradução livre: “Eu não sou russa, venho da Lituânia, uma verdadeira alemã.”

[v] Tom and Viv… and Bertie. https://www.theguardian.com/books/2001/oct/14/features.review

[vi] Tradução de Paulo Mendes Campos. A Terra Inútil, p. 53.

[vii] Idem.

[viii] From Ritual to Romance, p. 139.

“Nós temos visto que a personalidade do Rei, a natureza da debilidade a qual ele está sofrendo, e o efeito reflexo exercido sobre seu povo e sua terra, corresponde, da maneira mais marcante, a relação íntima simultânea que existe entre o governante e sua terra; uma relação principalmente dependente da identificação do Rei com o princípio divino da vida e da fertilidade.”

[ix] Ensaios escolhidos, p. 29.

[x] Mistery and Manners, p. 151.