A CEIFA
As hienas estão famintas,
já quase pularam murais
e rosnam; são como animais
a quem alguém cortou a cinta;
da besta feroz os boçais
estão cedendo; já é demais
aquele sangue que se pinta
e aquela voz… os gritos tais
da criatura! Onde vais?
Quem lhe irá fazer a tal finta
se já imita os principais
trejeitos, até ideais,
e a palavra indistinta
de quem sofre? Sim, são brutais
mas dançam nos altos umbrais
e dizem ser sangue uma tinta
e dão uns conselhos paternais
mas não… elas são animais
são vendaval em uma quinta
onde crianças, sem os pais,
brincam aos jogos mais banais
e, olhando a fera, ainda
creem estar vendo uns cardeais
mas não.… elas são animais!
A JOSÉ SARAMAGO
Por cá o mundo é este, tu já sabes;
não há nada de novo sob o sol
de Caim.
A única e mais triste novidade,
é que agora estás ouvindo os rumores
que as gentalhas
perpetuam; escravas e pedintes,
não podes mais fingir que são ocas
as paredes
do universo; ah, dizes que vais só?
Sim, vais só; como sempre; tu e eu
vamos sós…
Sempre foi assim! Já não te desminto
nem vou desmerecer-te a solidão.
Não farei
uma graça da tua condição
de gente eterna; nem me atreveria!
Mas não posso
furtar-me à folia dessa questão;
não sou capaz de fugir ao instinto
com que tu,
outrora, aguçaste as mil orelhas
dos vorazes coletores das “lacunas”
do evangelho
Afinal de contas: onde está Deus?
NIRVANA ESTUDANTIL
Agora, o português já não se aflige
como dantes; passou a ter mais brio
para a folia e já ninguém lhe exige
a volta do Império que partiu;
deu à melancolia um lugar
de estudo especial, não mais sombrio,
nada pesado: leve como o ar;
agora todos vão mais para além
do passado feito em trapos de engomar;
libertaram-nos do mal e do bem,
dos crucifixos, da sofreguidão
herdada da Nossa vetusta Mãe
e vemos, doutro modo, como são
estranhas e cediças as cantigas
que nos deram; já dissemos que não
vamos andar à cata das formigas
sobejantes; faremos tudo novo,
tudo a maravilha, tudo sem antigas
cerimónias e regras doutro povo.
Virá de novo a capital, o porto
anfitrião; e a figura que houve
enjaulada no castelo, o morto
que esperámos tanto tempo sem ter
vindo, assomará no meio do horto
frio e nu; predisposto a reerguer
um reino mais moderno e ajustado
a este novo ar de Molière.
O português agora é libertado
das amarras viris e delirantes,
de todo aquele monstro do passado,
das naus e das marés, das triunfantes
conquistas, da vaidade dum umbigo
posto ao centro da Terra, dos infantes
e dos Reis; a dor agora é um postigo;
no lugar de uma porta entreaberta
da muralha fizemos um abrigo
pró mar e para a chuva; um alerta
quando vem, nós o temos p´la janela
e chafurdamos; uma coisa é certa
já não estamos presos na capela
CANSEI DE ANDAR A DAR SERMÕES
Cansei de andar a dar sermões
aqui os peixes vão fugindo
e tem o mar as convulsões
que o vento traz; nas multidões
não há ninguém que esteja ouvindo
o povo jaz em confusões,
caminha sempre aos encontrões;
do mundo o fim se está cumprindo
Cansei de andar a dar sermões;
eu que não tomo as decisões
e a tudo deito ao mar infindo
por que hei de andar a dar lições?
A turba e suas concepções
se mate e esfole, vá caindo
como eu caí nas ilusões
e estou aqui sem pretensões.
Se vês que agora vou sorrindo
é que larguei esses chavões
Cansei de andar a dar sermões.