Cada diário é infeliz à sua maneira: o “Caderno Proibido” de Alba de Céspedes – por Lucas Petry Bender

por Lucas Petry Bender

Publicada originalmente em 1952, a ficção Caderno Proibido (“Quaderno Proibito”, trad. Joana Angélica d’Avila Melo, ed. Companhia das Letras, 2022) permanece como um reconhecido triunfo de Alba de Céspedes (1911-1997) quanto à expressão da condição social e existencial feminina, especialmente no que se refere às inúmeras concessões silenciosas que perfazem o cotidiano de mãe e esposa, bem como na pungente impossibilidade de ver reconhecida a sua vida interior mesmo pelos que lhe são mais próximos e íntimos.

Narrado em forma de diário por Valeria Cossati, 43 anos de idade, cobre um período de cerca de seis meses entre o final de 1950 e o início de 1951, em Roma, num contexto de estagnação econômica diante da incerteza quanto à possibilidade de nova guerra, porém de acelerada dinamização das relações sociais, dos hábitos culturais e dos conflitos geracionais, evidenciados sobretudo na conduta dos dois filhos que iniciam a vida adulta. Dividindo-se entre o trabalho no escritório e a dedicação ao lar, Valeria se mostra bastante realista e modesta, não alimentando grandes expectativas típicas das heroínas dos romances clássicos.

AS COISAS MÍNIMAS

Minha vida sempre me pareceu meio insignificante, sem acontecimentos notáveis além do casamento e do nascimento das crianças.” – escreve Valeria – “Mas desde que, por acaso, comecei a manter um diário, percebo que uma palavra, um tom, podem ser tão importantes, ou até mais, quanto os fatos que estamos habituados a considerar como tais. Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias talvez seja aprender a compreender realmente o significado mais recôndito da vida. Mas” – pondera com cautela – “não sei se isso é um bem, temo que não.

Embora não deixe de servir como apoio para anseios profundos de improvável realização, o diário serve mais como testemunho do espanto diante da verdade da vida interior e do desregramento lúdico da imaginação íntima. O drama de Valeria não está tanto na impossibilidade de realizar seus desejos mais profundos quanto no fato mesmo de sequer ser reconhecida como possuidora de uma vida interior rica e variada. Quando menciona hipoteticamente a existência de um diário diante do marido e dos filhos, torna-se alvo de escárnio e sente-se humilhada. O que poderia haver de interessante na sua vida para merecer um registro?

Ninguém sabe da existência do seu diário, e os seus esforços permanentes em mantê-lo oculto do marido e dos filhos – no fundo de gavetas, de armários, de cestos de roupa suja, entre outros cantos desprezados pelos demais –, a quem se dedica com verdadeiro amor e zelo, serve como pungente metáfora de uma individualidade que se quer preservar e desenvolver mesmo diante dos constrangimentos sociais e compromissos familiares. Mais do que o espaço de libertação interior, o diário é um espelho que surpreende a própria autora quando vê transformados em palavras e frases os seus desejos, fantasias, frustrações, devaneios, julgamentos.

Por isso espero com ansiedade esta hora, para escrever, dar livre curso a um rico rio que corre em mim e que me dói como quando eu tinha leite demais. (…) Mas de lá pra cá, ao contrário, começou minha inquietação. Minha memória era fraca até aquele dia, talvez por uma defesa instintiva: convém ignorar que a vida não passa de um caminho longo e difícil, acompanhado a cada hora por uma esperança que jamais conseguimos transformar em realidade.”

É outra espécie de coerência, distinta daquela da vida cotidiana, que emerge da construção solitária da sua autoexpressão. O diário dá forma a um temperamento que se descobre mais introspectivamente exuberante, mais imaginativamente sensível, mais sutilmente erótico, mais fecundamente perdido, explorando camadas ocultas de uma realidade que vai se mostrando cada vez mais complexa.

Agora pareço não saber mais onde está o bem e onde está o mal, não consigo mais compreender os que me circundam e, por isso, aquilo que eu acreditava sólido em mim também perde consistência.

Dotados de vigor confessional e de sutileza psicológica, os escritos de Valeria libertam os seus sentimentos, bem ou mal, na mesma medida em que reforçam as suas oposições. O gosto pela solidão que descobre ao encarar-se nas páginas do diário não é isento de culpa. “Sanguessuga”, “diabo” e “pecado” são algumas das analogias que a personagem aplica ao diário, percebendo-se menos capaz de tocar a vida cotidiana em frente com a indiferença que a força do hábito requer.

Sei que minhas reações aos fatos que anoto em detalhes me levam a me conhecer mais intimamente a cada dia. Talvez existam pessoas que, conhecendo-se, conseguem se tornar melhores; eu, porém, quanto mais me conheço, mais me perco. De resto, não sei quais sentimentos poderiam resistir a uma análise impiedosa, contínua; nem quem, vendo-se em todas as suas ações, poderia ficar satisfeito consigo mesmo.”

INVENÇÃO DE SI

Faço no título deste texto referência à célebre frase de abertura de Anna Kariênina, icônica personagem feminina, também para enfatizar que se, ontem como hoje, a mulher defronta-se com os mais diversos constrangimentos e obstáculos, outro triunfo literário de Caderno Proibido está na representação das variadas personas que constituem um indivíduo, não apenas dos distintos papéis sociais que somos todos chamados a interpretar, mas das múltiplas facetas que formam cada personalidade.

São recorrentes no diário as expressões de estranhamento de si e dos outros, ou de perplexidade diante das supostas identidades de cada indivíduo: “não a conheço em absoluto”; “fora de casa não sou mais eu”; “quando é que somos verdadeiramente nós?”; “a família dele, e a minha, parecem inventadas, imaginadas”; “constrangidas a representar”; me desfazer da minha pessoa”; “cansada de carregar um pesado disfarce”; me impunha a representação de uma personagem”; “na qual não me reconheço”; “possibilidade de sermos diferentes”; “nenhum de nós se mostra como verdadeiramente é”; etc.

O estranhamento não se restringe ao ambiente familiar e ao conservadorismo social; a amiga Clara trabalha com produção cinematográfica, é solteira, livre e independente, nem por isso menos sujeita às perplexidades de Valeria – é Clara quem dirá, inclusive, que “na verdade o amor não existe: é preciso inventá-lo a cada dia, a cada momento, e estar sempre à altura da própria invenção”.

O percurso de Valeria pelas páginas do diário sugere que aprender a falar consigo própria envolve a desafiadora e angustiante constatação de que há um inevitável estranhamento entre a consciência e a realidade, com brechas e intervalos que são preenchidos por ficção, entre o puro artifício da imaginação e do desejo, e a vida como ela é, e como ela teima em continuar sendo. O estranhamento é o toque de autenticidade do teatro da consciência, em que ficção e realidade formam um todo indistinto, e as versões inventadas de si são os meios naturais para se aproximar da verdade.

Quanto mais Valeria suspeita ou descobre que os outros têm também as suas personas, mais o seu diário se consolida como símbolo da introspecção, com sua inevitável dose de melancolia e de solidão, mas também de descobertas interiores – como do erotismo oculto, à medida em que Valeria se aproxima do chefe do escritório em que trabalha, por quem se sente atraída apenas após ter começado a exercer a atenção da maneira específica estimulada pela escrita; ler e escrever, afinal, também são atos guiados pelo eros da imaginação, da empatia, da curiosidade, da dissimulação e da revelação; é digno de nota, nesse sentido, tanto da atenta observação quanto do erotismo subjacente, o trecho em que narra o gesto do chefe deslizando o dedo sobre o monograma da letra V na sua bolsa.

ESTRANHA ESPÉCIE

Perguntei-me se fui uma boa filha e, depois, se sou uma boa mãe e uma boa esposa; mas, tendo feito um breve exame de consciência, precisei admitir que a todas essas perguntas eu poderia responder sim e não com a mesma sinceridade e, creio, com o mesmo fundamento.

Difícil definir exatamente que fundamento é esse, sujeito a tamanhas relativizações, mas emerge em toda a sua extensão a partir do ato de escrever, pois que diretamente ligado à consciência de que todos os fundamentos contêm, em última análise, o elemento ficcional.

A perplexidade diante da inexistência de uma base sólida para a vida, que se mostra radicalmente subjetiva e repleta de aporias existenciais, e a condenação a essa liberdade simultaneamente terrível, maravilhosa, angustiante, revigorante, que ora é negada, domesticada, subjugada, ora é agarrada, consumada, gozada – tudo isso entra em conflito com a necessidade de lidar com as decisões cotidianas, administrar a vida prática, nortear princípios morais para os filhos, desempenhar os papéis de esposa, mãe, trabalhadora, mulher.

Diante dos compromissos da vida familiar, a existência do caderno proibido acabará sucumbindo. Reafirma-se o diário como “soberania da tristeza”, conforme define o brilhante Janelas irreais: um diário de releituras (Felipe Charbel, ed. Relicário). É como se Valeria se evadisse daquele fardo que o mais notável dos diários define com impiedoso desassombro:

O que une você mais intimamente a esses corpos bem delimitados, falantes e de olhos brilhantes do que a qualquer outra coisa, à caneta em sua mão, por exemplo? O fato de você ser da espécie deles? Mas você não é da espécie deles, e por isso mesmo é que fez essa pergunta.” (Diários de Franz Kafka, ed. Todavia)

Se Kafka, profundamente dividido entre as personas social e individual, de certo modo autossabota seu próprio noivado (vide rascunho no diário de carta destinada ao pai da noiva), pois, entre outros motivos, falta-lhe “todo e qualquer talento para a vida em família, a não ser, na melhor das hipóteses, o de observador”, Valeria, diante do nascimento de um neto (um novo estímulo ao reconhecimento da espécie, por um lado, uma nova submissão aos papéis sociais, por outro), autossabota o diário, destruindo-o.

Da breve mas intensa vida do caderno proibido de Valeria, fica o leitor com a impressão de que escrever talvez constitua uma maneira peculiar de exercer a inevitável infelicidade da vida – uma maneira esteticamente significativa, e, por isso, feliz a seu torto modo.

Trad. Angélica d’Avila Melo, ed. Companhia das Letras, 2022