— Por Igor Barbosa
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Pantaleão e as visitadoras é o nome de um célebre romance do premiado autor peruano Mario Vargas Llosa. Para tornar este artigo inteligível a quem não o leu, resumo o enredo: Pantaleão Pantoja, oficial do Exército Peruano recém-promovido à patente de Capitão, vive satisfeito com sua esposa Pocha e sua mãe, até receber a estranha e inédita comissão de organizar um bordel itinerante para atender os soldados dos quartéis da Amazônia peruana, que, agulhados pela falta daquilo, ultimamente vinham se dedicando às pouco recomendáveis artes da sedução e do estupro.
Se eu tivesse de apresentar Napoleão – O Napoleão, Aquele Napoleão –, seria mais produtivo recomendar ao leitor que voltasse ao ensino médio. SIKE! Aqui onde me tens, leitor, não sou mais um articulista rábido, de maus bofes, grosseiro. Você sabe quem foi o danado do Napoleão. Eu sei que sabe, e sei que o que você sabe é o suficiente, se agora está lendo este ensaio. Sei disso porque este aqui é um ambiente de gentis-homens e de damas gentis.
Brancaleone, por sua vez, é um personagem de dois filmes dirigidos pelo cineasta italiano Mario Monicelli; a figura de um nobre pouco fornido de mentalidade, que desata a ver-se e tratar-se como cruzado, saindo por aí como aquele conde de um romance mencionado por Gustavo Corção cujo cavalo (o do conde fictício, não o do Corção real e realista) saiu galopando em todas as direções.
Os três — Branca, Napo, Panta — são, por seus nomes, leões. Mais sobre isso no finzinho do artigo.
Parte I
Provavelmente, o romance mais mencionado como o melhor de todos os tempos, o modelo para todos os demais, o mais importante da história é (você sabe, já respondeu em sua cabeça) Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Eu concordo com essa opinião majoritária. Um dos elementos que contribuem para essa grandeza é o seguinte: ainda hoje estamos discutindo sobre que tipo de pessoa era o seu protagonista. Um doido, a quem o excesso de leituras fritou o cérebro e levou-o a sair por aí fazendo muita merda? Ou um inconformado com a pequenez da vida, que se cansou de apenas ler sobre os atos que seu sangue legitimamente exigia como único modo de vida à altura de sua ancestralidade guerreira?
Como todo romance que se preze, este é decididamente ambíguo. Apesar dos vários trechos em que Cervantes dá de barato o enlouquecimento do protagonista, e afirma claramente que este ficara doido, não será honesto quem negar que o romance inteiro vê o Quixote com imensa simpatia e verdadeira admiração. No fim, o que se nota é que os fatos são o que são: o Cavaleiro da Mancha é quem costumeiramente sai escangalhado de seus atos de heroísmo; tanto, e tão bem atropelado, que sua mera sobrevivência vai, aos poucos, começando a parecer um sinal de que Deus, de certa forma, aprecia aquele desvairado.
Para os que acreditam que a arte tem intenções e persegue efeitos, o simples uso instrumental deste critério resultará na mesma perplexidade: Cervantes podia querer demonstrar, sim, o potencial enlouquecedor das novelas de cavalaria, isto é, da literatura fantasiosa; poderá ter demonstrado isso através de seu cavaleiro de triste figura. Mas, neste caso, seu próprio texto cai sob a mira do que denunciara: quantos Quixotes nós vemos por aí? Isto é: Entre aqueles que abraçam causas perdidas, desafiam os poderosos e não temem qualquer inimigo, quantos dão demonstrações inequívocas ou, ao menos, pouco discutíveis de insanidade? Porque os Quixotescos a que temos acesso parecem bastante conscientes das escolhas que fazem: eles sabem que vão sofrer, e não se iludem com as perspectivas de glória terrena que, na boca do Quixote original, passavam por sua motivação primária. Neste sentido, se Cervantes quis desenhar um tipo para servir de alerta, terá talvez falhado e produzido exatamente a tal da literatura fantasiosa.
Assim, quem negará que talvez Cervantes quisesse, sim, denunciar algo? Mas talvez não fosse a transformação do fantasioso em experiência real, o encanto com um mundo fictício em grau tão avançado que faz com que o encantado queira mudar-se para a realidade (antigo sinônimo de Reino) irreal com que sonha. Talvez Cervantes quisesse denunciar a realidade em si. Na realidade, pobres ficam sem comida, fracos são agredidos por fortes, e heranças são negadas aos herdeiros de pleno direito. Nesta realidade, quem protesta pode muito bem passar por doido. Ao menos em seu romance, o protesto sai da boca do personagem mais amável; e que seja o mais amável prova ser ele, até hoje, o mais amado.
Brancaleone, o personagem do cinema italiano que ocupa um terço do título deste artigo, deverá ser entendido como um Dom Quixote cujas ambiguidades, acima mal rascunhadas, foram estendidas até o ponto do cinismo. A fim de bem estica-las, o roteiro dos dois filmes estrelados pelo também doido, irrefletido e iludido nobre faz bom uso das melhores e piores contribuições do existencialismo do século XX. Especialmente “Brancaleone nas cruzadas”, o segundo filme, parece roubar a Bergman o diálogo agonístico – em sentido duplo: o de disputa e o de processo de morte.
Brancaleone está sempre diante da morte, mas nunca consegue transformar esta morte em sacrifício. Tudo em Brancaleone é retórica, enquanto os demais vão se sacrificando por ele. Neste sentido, ele encarna os ideais de cavalaria de forma um tanto canalha, permitindo que plebeus e mulheres se sacrifiquem por ele, símbolo de uma forma superior de viver (segundo sua própria ilusão).
Acima falei em agonístico, e com isso lembro do Huizinga, que tem tanto a ensinar sobre o homem medieval. Uma dedicada aplicação de suas lições aos dois filmes estrelados pelo bom Brancaleone trará muitos frutos a quem a intentar. Eu que não vou, porque preciso concluir este artigo, e ainda falta falar do Pantaleão, ou Pantaleón, e explicar o que ele tem a ver com tudo isto que vimos até agora.
Parte II
É muito possível que o principal tema da literatura sejam os muitos análogos de cada época do que hoje chamamos vida militar. Desde a Odisséia, passando pelas novelas medievais de cavalaria que endoidaram o Quixote e pelo próprio Quixote, até o imenso Guerra e Paz e o nosso Pantaleão e as Visitadoras, a quem hoje damos as boas-vindas, dizendo que se sente aqui nesta cadeira de destaque: os escritores e os leitores adoram uma boa guerrinha.
Tanto quanto a própria organização social da Idade Média via na atividade militar a definição do que seria a classe economicamente dominante, o pensamento geral, ou por outra, a cultura de tal forma enxergava a atividade militar como algo em si moralmente elevado – seja porque a contínua elevação moral das classes guerreiras e, consequentemente, das atividades guerreiras, era um objetivo declarado dos códigos de cavalaria, seja porque a atividade militar em si é tão essencial para a sobrevivência das civilizações que a existência de uma classe ou casta guerreira é universal – que até hoje chamamos o conjunto de cristãos batizados vivendo neste vale de lágrimas de Igreja Militante[1]. Sem cinismo: nós gostamos de uma boa guerrinha.
Parece seguro dizer que os códigos de cavalaria — e tudo que veio depois no que diz respeito ao mores militarista — revolvem em torno do dever; e que o dever, na mente de um soldado, refere-se a uma fidelidade. Por isso mencionamos Napoleão: porque, a partir das guerras napoleônicas, ficou aceito por quase todo mundo que um soldado deva ser leal à Pátria. Como Pátria era coisa que não existia na Idade Média do modo como existe hoje, o soldado das novelas de cavalaria não poderia ser fiel a ela; era então fiel à sua dama, a uma promessa ou à própria cavalaria em si.
Essas fidelidades todas se baseavam, como toda fidelidade que se preze, numa fé. Muda a fé de um, ficam as fezes dos outros: ninguém ficará surpreso com a cara de pau deste autor em afirmar que a fé de um soldado, ao menos do século XX em diante, era na própria coisa-em-si chamada Exército (da Marinha e da Aeronáutica não vamos falar agora, porque tem o efetivo muito pequeno e/ou porque não somos malditos ingleses).
O Pantaleão de Vargas Llosa é um desses soldados com fé no exército e fiéis ao exército. Por fidelidade ao exército, porta-se como sujeito pacato e frio, bom filho e esposo exemplar; e isso lhe cai bem, até o dia em que o exército, ente em tese abstrato, vem lhe pedir pela boca de oficiais superiores que se torne, efetivamente, um cafetão.
Pois o que havia era o seguinte: os praças das guarnições e quartéis da Amazônia peruana, agulhados pelo inconveniente fato de que toda mulher nas pequenas cidades e vilarejos era esposa ou filha de alguém e, portanto, sexualmente indisponível, cada vez mais vinham dedicando-se aos questionáveis costumes da sedução e consequentes fornicação ou adultério, quando possível, e ao ainda pior do estupro, quando lhes parecesse, digamos, necessário.
Uma nota pessoal. Eu mesmo estive na Amazônia, Amazônia brasileira mesmo mas ainda assim bastante amazônica; fiquei hospedado num hotel-barco no próprio Rio-Mar (que é bonito que só), e uma das primeiras coisas que ali alguém se preocupou em me aconselhar foi “Não se meta com a mulher de ninguém; aqui de vez em quando um forasteiro é pego por um marido que, incomodado com os cornos sobre a testa, crava-lhe muito tranquilamente um facão no bucho e joga o cadáver no rio, onde vai aparecer quilômetros abaixo, já inchado e roído de piranhas”. Outras coisas que me disseram foi para beber apenas água mineral e que nunca ninguém jamais havia usado repelente demais.
Sabendo o leitor, pelo meu testemunho pessoal, franco e direto que a Amazônia não é mole não, fica bem claro que o drama pano de fundo é bastante crível e só o é porque, obviamente, não poderia ser resolvido com gestões genéricas e soluções fáceis. O Exército pede, muito candidamente, mas não sem que alguns generais se mostrem então e sempre contrários a esta missão, que o nosso protagonista parta para a Amazônia e instale um serviço castrense de prostitutas para atender os soldados carentes. Nosso Pantaleão, sempre o bom soldado, obedece tanto que a gente mal vê ele partindo e chegando a Iquitos, onde vai estabelecer seu eufemístico serviço de visitadoras.
É claro que, para haver romance, era necessário que algo acontecesse bem da maneira mais tá de sacanagem possível. E assim, o tranquilo e quase frígido Pantaleão conduz o serviço de visitadoras a tornar-se o mais eficiente do Exército Peruano. O que estaria tudo bem e o Vargas Llosa nem precisaria pegar para escrever um livro de extensão média se ficasse por aí.
Isso porque, por sua própria natureza, nem com a máxima discrição um serviço de visitadoras poderia ser operado com logística zero; e onde há logística, há visibilidade, de modo que o serviço discreto vai se tornando um segredo conhecido de todos.
Falei em logística porque a talvez escolha mais acertada do ponto de vista estilístico feita pelo autor é a de dedicar boa parte do livro a relatórios e provisões militares essencialmente logísticas e executivas. O autor incorpora o modo mais enfadonho possível de escrever como uma novidade literária de alto interesse, porque os fatos narrados são totalmente inadequados à forma. A voz de Pantaleão nunca é efetivamente guerreira, e jamais é nobre. No único passo do livro em que fala da violência, Pantaleão contamina esta idéia classicamente militar com a idéia do suborno:
“- A única maneira de tapar a boca desse sujeito é lhe dando um balaço ou dinheiro. (…) Liquidá-lo me traria muitos problemas, não resta outro remédio senão esquentar-lhe a mão com uma porção de moedas (…)”
Ainda sobre o estilo do autor, também merece nota o uso que faz de seus famosos diálogos paralelos ou intercalados. É curioso o efeito de contraste que estes diálogos causam quando postos em capítulos imediatamente antes e depois de relatórios militares claríssimos e cronologicamente bem definidos, em que atos completamente ridículos, de um ponto de vista militar clássico, são narrados como seriam um movimento tático ou uma operação de envio de provisões e suprimentos.
É justamente através de uma outra interpolação estilística, aliás, que somos subitamente expostos à grande reviravolta do romance, que não vou detalhar aqui porque, segundo me disseram, millenials hate spoilers. Sério: o Vargas Llosa manja do riscado. Bastar-me-á, temerariamente, afirmar que esta grande reviravolta é o ponto em que o protagonista é exposto a si mesmo pela primeira vez e, também pela primeira vez, dá um passo que talvez não possa ser revertido; isto tudo porque então ele percebe, em si, a falta de uma personalidade.
Pantaleão não é um Brancaleone, não é um Napoleão. É um homem que não enlouqueceu com histórias de cavalaria; jamais sonhou com um feudo ou com a coroa de Jerusalém; e de modo nenhum quis reinventar a maneira como os exércitos se organizam, se mantém e realizam suas atividades. Ele é apenas um homem de fé perfeitamente racional numa máquina — o glorioso Exército Peruano, que não pode estar errado, mesmo se o pede que vá, num passo, de capitão a cafetão.
Parte III
Há na Suíça um monumento famoso, cuja inscrição o dedica “à fidelidade e à virtude dos Suíços”. Este monumento celebra os soldados da Guarda Suíça massacrados em 1792, enquanto defendiam o Palácio das Tulherias, em Paris. Estes bravos soldados, vítimas da revolução francesa — a que poria no trono da França aquele mesmo Napoleão que apareceu nessas linhas como aparece na historiografia e na literatura dos últimos dois séculos, como uma sombra incômoda, um novo arquétipo, talvez.
A figura escolhida para o monumento é a de um leão. Não um ameaçador leão, pronto para a caça, no auge da força; o monumento representa um leão ferido e agonizante.
Será talvez um clichê associar este animal com as virtudes guerreiras, a nobreza e a fidelidade. Se for clichê, é clichê bem antigo: no primeiro livro da Bíblia Sagrada, o patriarca Israel, depois de repudiar o primogênito Rúben por sua infidelidade, e de amaldiçoar Simeão e Levi por seus atos de violência, abençoa o seu filho Judá com as seguintes palavras: “Judá, teus irmãos te louvarão. Pegarás pela nuca os inimigos; os filhos de teu pai se prostrarão em tua presença. Filhote de leão, Judá: voltas trazendo a caça, meu filho. Dobra-se, deita-se como um leão; como uma leoa: quem o despertará? Não se apartará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence por direito”( Gênesis, 49, 8-10)
A lição de Israel é boa. O leão é aquele que tem o comando, até que venha aquele a quem pertence por direito. E isso porque Ele mesmo não é violento nem infiel; e nisso, o Judá, o Leão, é imagem d’Ele.
Também se assemelham ao Leão aqueles que praticam a fidelidade e que procuram exercer no mundo um papel capaz de diminuir a violência e o sofrimento; seja empregando a força com perícia, seja submetendo-se ao sacrifício.
Num mundo esquecido das virtudes e do sacrifício, há muitos militares profissionais capazes de montar serviços de prostituição com a máxima eficiência, sem que aí a fidelidade e o sacrifício sejam levados em conta. Como Branca, Napo, Panta.
[1] Pessoas nascidas depois de 1995 podem preferir metáforas extraídas dos videogames