Barrabás à brasileira: uma lição tirada do caso Gabriel Monteiro

Gabriel Monteiro, vereador e ex-policial militar do Rio de Janeiro, é um político e youtuber. E nisso tens, leitor, frontalmente declarada a antipatia que, nos parágrafos seguintes, pretendo manter latente; se possível, até, tentarei nem mesmo voltar a mencionar o dito Monteiro. Fique, então, o título para atrair leitores para a Revista Unamuno através dos algoritmos dos mecanismos de pesquisa; eu falarei do que falarei.

O fato é que, aparentemente ou declaradamente (e talvez mesmo verdadeiramente, que sei eu?), o vereador tem passado pelo que chama de perseguição midiática em represália ao combate que ele travou e, à maneira de herói da Marvel, venceu sozinho a luta contra uma das máfias que infestam o Rio de Janeiro. Vingando-se da ação do vereador, que até mesmo, dizem, deu voz de prisão a um oficial da PM e outras bravatices tipicamente cariocas, os tentáculos da presumível grande máfia, composta pelas múltiplas pequenas máfias, acionaram os botões da imprensa para que denunciassem o vereador como um grande pervertido, pedófilo, mentiroso e traficante de paçoca.

Basta de fatos ou simulacros: passemos às ideias. Quem negará que a discussão entre esquerda e direita na internet é engraçada porque cada lado afirma que a discussão é sobre uma coisa diferente? A esquerda diz que bate boca com os péssimos e retrógrados conservadores a respeito de liberdades individuais e a gestão social dos meios materiais (isto é, propriedade e renda) necessários para exercê-las. A direita diz que briga com os esquerdistas em defesa dos valores tradicionais, tais como ordem pública e parcimônia governamental.

Para melhor desqualificar seu oponente, cada lado acusa o outro de ser lacaio de um GRANDE PODER maligno: a direita seria, segundo a esquerda, um grupo de defensores dos interesses de “banqueiros, latifundiários e especuladores”; a esquerda, na boca da direita, defende ou no mínimo ignora a ameaça do “globalismo”, que seria o movimento de dominação mundial pretendida também pelos banqueiros etc. É curioso, aliás, que apenas muito recentemente as queixas contra os estrangeiros tenham se dirigido aos estrangeiros pobres, também, e não apenas aos ricos; talvez seja, de fato, uma coisa pelo menos inconveniente quando um imigrante, que é o nome do estrangeiro pobre quando está no país da gente, atropela um monte de inocentes com um caminhão ou explode uma bomba num estádio. Será que este estrangeiro pobre (mas não tão pobre que não tenha acesso a um caminhão ou a uma bomba) não estava a serviço de um estrangeiro rico? Fica no ar a questão.

Devo fazer notar que todo discurso, bem aquecidinho numa panela, será reduzido aos seus elementos fundamentais (como tudo que se esquenta). Os elementos fundamentais, nesse caso, sendo “a culpa é dos ricos” contra “a culpa é dos estrangeiros”. Continuemos.

Sabes, leitor, onde havia muita reclamação contra ricos e estrangeiros? Na Judéia em que Jesus Cristo (você conhece Jesus Cristo, não é possível que não conheça) viveu, pregou, foi condenado à morte e ressuscitou, Aleluia. Jesus fez um sucesso razoável porque havia não poucos hebreus muito contrariados com o governo teocrático dos Fariseus e Saduceus, o governo imperial romano, de Pilatos, e o governo de araque de Herodes.

Gabriel Monteiro é acusado de fazer saliências com menores de idade. Uma depravação, uma imoralidade, se for verdade; mas um pecado de natureza e efeito diverso de, por exemplo, construir máfias e milícias (ou de encher o país dos outros de imigrantes explosivos, também). Em suma, Gabriel Monteiro é acusado de ser um Herodes. E a quem surpreende que sejamos governados, isto é, legislados, judicializados e executados por Herodeses, Pilatoses, Saduceuseres e Fariserêuseres (sei lá como é o plural desses nomes!)?

O Brasil, que é em grande parte meio desértico e arenoso como a Judéia que sempre aparece nos filmes sobre a Vida de Jesus, é também terreno propício para duas coisas que não faltavam na Judéia, nem na Galiléia: Profetas amalucados e conluios governamentais.

Porque a origem histórica dos próprios governantes religiosos do povo judeu tinha sido a reação às invasões e exílios e ao crescimento do Império Romano, esta metamorfose da República que aparece no livro de Macabeus como um povo até que bacana e amigável. Os Patrícios seriam, já então, globalistas interessados na exploração dos judeus? Novamente, fica a pergunta.

É recente, também, a possibilidade de uma separação entre a classe sacerdotal e a classe intelectual. De modo que não temos notícia de qualquer controvérsia entre intelectuais hebreus a respeito das relações ideais entre Israel e Roma; porque se, na teoria, Israel esperava um Messias libertador, político, vencedor militar e governante, na prática os anciãos não tinham nenhuma reserva ao se relacionar com o representante do poder globalista, exceto a reserva estética de não entrar no Pretório para não ficarem impuros etc. Caramba, mas se eles não tiveram pudor de espancar e pedir a condenação à morte do próprio Messias que diziam esperar…

Como o Brasil é coisa mais recente que a Judeia, temos aqui esta figura do intelectual não sacerdotal. E nunca faltaram aqui os intelectuais anti-globalistas, sendo o exemplo mais notável, sem dúvida, o saudoso Ariano Suassuna. Há também um certo sentimento que transforma a “brasileirice” presente e sensível numa obra em critério de qualidade, sentimento que sem dúvida beneficiou em alguns momentos a percepção pública (ou ao menos de parte do público) a respeito da obra de um Elomar, por exemplo. Este mesmo sentimento, numa versão mais refinada, entende a “brasileirice” como algo de maior valor se é capaz de entrar em contato e de certa forma reagir, sem desnaturar-se, com tendências e influências transnacionais; sendo esta também a fonte de muito elogio feito aos Paralamas do Sucesso ou à Timbalada. (Tão antiglobal quanto nossa nova direita se alinhando ao Bannon e torcendo pela Marine Le Pen.)

Mas nós, caro leitor, somos governados pelo sujeito que se senta na câmara municipal e pelo sujeito que se senta no supremo tribunal federal (ou pelo sujeito invisível que manda neles). E este aí, na Judeia e no Brasil, invariavelmente é um Saduceu-Víbora ou um Fariseu hipócrita, um Pilatos omisso ou um Herodes depravado. Peço a Deus, ao meu Deus, grande Deus de Abraão pra arrancar as penas do meu coração, dessa terra seca em ânsia e aflição.

Todo bem é de Deus que vem.