Atlântico

– um poema de João Filho

11/05/2016 – 11/10/2021

Há sempre um carro a mais cruzando a faixa,
há sempre um sol a menos nos relógios, 
as perdas já não cabem em mil caixas;

porque seguir nem sempre é avançar,
pois fantasmas virão pelo correio,
e a lama espelha o som do oitavo andar;

o peso enferrujado de um contêiner
no drama que se dobra num engulho,
muito embora a clareza como um reino

emana pela rua o seu marulho.
Às vezes é um mar ou céu quebrado
na avenida convulsa de barulhos,

virada para o sul da cidadela,
pulsando o vento norte sem sextante.
Nas ruas sem perdão, quem se atropela?

Uma única vez já é um bis:
contra quem levantar velhos litígios
senão contra si mesmo – o mau juiz?

Meus fracassos fiéis dormem comigo,
vassalos de um não-rei que tem não ter,
a cidade circula o meu umbigo

(… e gira, gira, gira o pesadelo,
tão lento que parece ter girado
seu raio preguiçoso e traiçoeiro,

o avanço circular, mas ao contrário.
Um urro se propaga em contrapelo,
a sombra se expandindo em pleno vácuo

– “é pesadelo, pesadelo, êlo…” –
ecoa em arrepio o descompasso.)
Num gesto inútil, coço o tornozelo,

no vaivém da Marquês de Caravelas;
viver atrás de um verso que não vem,
fugiu por entre os carros na ruela,

no côncavo da imagem se envasilha,
não precisa durar para ser mais,
lá do topo da antena nos humilha,
 

gavião rapinando o seu miolo:
“eu sou aquele que fugiu das Chagas,
proto-Pilatos, míni-Judas, zoilo,

apedrejou, cuspiu, lavou a alma
na lama de si mesmo em duplo dolo.
eu sou aquele que rosnou às favas…”,

não vi a boca aberta de um esgoto,
na esquina da Recife e a Maceió,
num pulo me equilibro – sai canhoto! –

agora não, se o pó atrai o pó
há coisas por fazer, e por pirraça,
entre os prédios, a tarde vai mais só;

o coração é quarto, rua e praça:
cabe a cidade inteira e seus rumores,
por ser velho é que vive na vanguarda,

deixou pra trás o sangue e seus cultores,
raciocina conforme a argamassa,
meu coração real, e não é pouco.

O espanto de ter sido já me espreita:
não é o que foi feito que me dói,
pois amo o que rebrilha na colheita. 

O ter vindo e saber a chama e o sal
(a eternidade finge que destrói)
– essa espantosidade do real!

Não devia doer ter existido,
ainda mais agora que a cidade
sabe ser duas – uma vai comigo,

outra fora do tempo, indecifrável.
Tatuado de brisas e salitre,
oxigeno-me a ponto de um barato,

a fuligem do trânsito – eis o mar!
Nesses seus vários modos de ser um,
nos chama com perícias de afogar;

na rua César Zama, estou sem rua,
e sento-me à sombra de mim mesmo,
o tumulto de ser me tumultua,

neste banco de praça desandejo,
o verde volta, volta a Via Láctea,
ó mares provisórios de um lampejo!

Um barco lá em cima nos impacta,
mas basta de volteio e lacrimejo,
a minha escuridão está intacta,

e a tarde de setembro não dá mole,
a feiura de sunga vai à praia,
e dona Monstra leva sua prole,

passantes e pedintes – mesma laia:
a mão que pede estraga estranhamente,
a que recebe vaia a própria vaia.

Segundas feito amêndoas se espatifam,
se espatifam no asfalto e desdenhamos
os frutos sem proveito e com tarifas,

como se não fôssemos o que somos.
Porque não houve um mundo como o nosso:
a desmedida devorando os gomos,

e dos gomos criando qualquer troço.
De mim comigo, a árvore interroga
(estou na praça, à sombra, quase fóssil):

– Gomos? Que forma anômala de ser,
melhor seria nos dizer – morreu,
morreu, morreu, morreu e vai morrer

a flor, esse aparato de ninguém,
a flor, e não o gomo, infernizamos
com o número plástico e desdém,

a antiflor enxertamos na ferrugem,
e a ferrugem soprou seus demos práticos,
vazios e velozes e sem rima,

porque a rima é uma forma de pedágio,
que se paga na alfândega mais íntima
(um carro quebra a tarde com seu áudio),

e a árvore se cala. Na fiação
o vento se concentra como um soco,
pets em pânico, do céu ao chão

o ar é hiperbólico e barroco,
parece haver dragões em cada poste,
o sobrado da esquina pede um troco

aos pivetes espúrios da paisagem,
a luz (ainda é tarde) quer contar
sua biografia sem linguagem,

o indizível que toda língua afaga,
afaga pra esquecer e retornar
como o vento que escreve e a onda apaga,

num esforço incansável da matéria
em encarnar o sopro em coisa viva,
mas basta porque o mundo é uma miséria,

e pede uma voltagem de qualquer
coisa, os bares ressacam sem saliva,
esperam a dosagem que vier,

as ruas, ao redor, não dizem nada,
ou melhor, dizem algo, mas é triste,
e de tristeza eu já morri, cambada!,

agora eu rememoro as minhas águas,
no silêncio da sombra, meu albergue:
riacho ou rio manam coisas mágicas,

instante que entre átimos se ergue –
zona aberta no tempo com espátula
de impura claridade, porque cerne;

quem sabe ultramemória que se adoça
de olvido gotejando nova lágrima,
bem ali, onde o córrego se empoça

sob a mata; colhida nossa larva 
para a sede futura, que me acossa.
Com lata encurralei muitas tilápias,

e acendi muita noite a querosene,
de dentro do fifó, a luz vernácula  
contava assombrações as mais solenes…

Onde nasci o sol explode em pânico,
e mais do que crestar, ele pergunta.
Ninguém escapa, e todos lhes respondem.

É luz que, para ressecar, inunda:
põe na concha das mãos parte do Atlântico,
excesso que clareia e desconjunta.

Ainda estou sentado sob a fala,
que sobe calma na canção dos ombros,
porque aprendeu, sem mãos, colher cabalas

ao queimar-se de mar e de horizonte;
o mar está por perto, meditemos:
estamos atrasados para ontem,

e vamos mais perdidos do que sós,
ajoelhados no sal com frio de febre
cavalgamos os nossos quiproquós,

todo minuto pode ser o último,
no fim sabemos – todo mundo deve,
estou dramático e não me dou indulto;

a tarde vocifera alguma frase,
a porta nos sussurra um deslimite,
irmãos desconhecidos em contralto,

esperam, quase cegos, ser ouvidos.
Quem tocou o gemido camicase?
Os muros não são ombros com grafites,

a ferida não ouve a leve gaze,
e a gaze não escuta o seu palpite.
Gemido, porta, irmãos, beiram um quase,

e o quase vai além de um estampido.
Larguei a sombra, e vou por entre bares,
a maresia expande o seu ruído,

um ônibus me deixa a vista aquém,
mas penso o mar velho e recém-nascido
(um bêbado estapeia Seu Ninguém,

enquanto um gringo chora em português,
a tarde se debruça na amurada),
e eu penso como o azul foge aos clichês

ao ver o mar abrir suas metáforas:
é sempre novo, é sempre vivo, é sempre…
o óbvio ondular dessas anáforas,

o instante imóvel frente à imensidão –
respira, pulmão gasto, e descompassa,
faz dessa falta um modo de afeição,

e veja a voz que pulsa desde a terra,
rumoreja no azul e lá na areia,
nas veias dos banhistas se descerra;

a voz que diz ao mar que é maré cheia,
sugere à lua dons de recomeço,
avisa ao bem-te-vi – manhã clareia,

e diz a todos nós nosso endereço;
a voz que move a nuvem peregrina,
faz saber ao sanhaço o seu avesso,

anuncia às acácias seus vermelhos,
como alucina as fossas submarinas,
diz ao meu coração – desaconselho,

antes do pensamento se mover,
essa voz que não soa, mas sustém
o eixo que atravessa sem romper

tudo que existe ou sonha em existir,
mas chega de moer meu nhem-nhem-nhem,
pois remoer não é persuadir.

Porto da Barra, o mar é mais que o mar.
A tarde não termina – que insistência!,
mas chega àquele cinza intervalar,

parece a tarde eterna dos aflitos,
assim que deve ser no Purgatório,
o vento sentencia por escrito

a minha vida inteira numa vaga.
Agora o vento escreve e a onda firma,
se as águas são leves, o mar esmaga.

A parte que retorna, a parte lúcida
da carne já perdida antes do fim,
do reflexo do sol no mar ofusca-se

e anota nostalgias na berlinda,
ouvindo a tradução do que se esvai
e o que se esvai é a parte não bem-vinda,

pois quis fazer das sombras o seu molde,
e sair por aí – bicho da vida,
a dissonância manca de um acorde

impado de exagero em filigrana:
“eu sustento o universo numa embira,
sei deitar num jirau a dor humana.”

A noite se insinua em luz vampira,
se aproxima em rasantes desacatos,
a treva por ser treva é inimiga,

e toma por redoma todo o espaço;
um barquinho tremula a luz ao longe,
e desembarca à beira do cansaço.

Medito na amurada e mnemônico…:
acaba de nascer um mundo antigo,
longe que não se mede por quilômetros,

num átimo explosivo – mundo erguido
à tona do real já ex-deserto,
na folhagem invisível me enraízo,

umbuzeiro crescendo no passado,
os bois por entre os galhos quase oníricos,
o menino sofrível, mas alado,

quando o silêncio pulsa no terreiro
com nome de lajedos – caldeirões,
a chuva recolhida no rochedo

dá de beber luares e destinos,
aplaca essas sedentas solidões
nascidas do meu flanco mais franzino.

(Caminhar na memória como se
não caminhasse, todos os lugares
nenhuma parte – eterno colibri.) 

Porque só com a força desses músculos
não se pode tocar coisa nenhuma;
a memória é um mar, talvez o último,

não há como saber sem se ferir,
quem bebe dessa nuvem morre um pouco,
pra que aprenda na queda o seu devir. 

Atravessar a noite tem seu dote,
que recebemos como se perdêssemos,
um túnel sem estrelas, talvez óvni,

quem mora, mas é sempre um estrangeiro,
o tempo não desfaz o tempo ser,
o fim, que a cada vez, é o primeiro,

a solidão insone que diz sim
ao céu que contra a rocha se arremessa,
a treva faz do rosto um camarim

pra maquiar em mim o que detesta;
marenoite em adágio compassivo
modulam lentidões as mais complexas,

e desastres repousam no seu giro,
mas respiro a cidade que clareia
e a madrugada vem no meu respiro.

Amanhece. E a manhã desarmadilha…
O sol na ilha, ao longe, o mar no meio,
cordilheira de nuvens sob a ilha,

o azul em dobro faz o azul em cheio,
por um fio a paisagem se equilibra,
os meus fantasmas saem em veraneio,

e a brisa me constata o seu prodígio –
a manhã no meu rosto transverbera,
mas nega-se enquadrar em tela ou vídeo;

o clichê dos contrastes: bem-te-vi
no semáforo, a luz lê a atmosfera,
a amendoeira é ouro sob rubi,

lá, onde dormem pássaros e mitos,
o dia escreve nova reportagem,
que encaderno ao ouvir como um perito.

“Uma vida não paga a hospedagem”
– diz um refrão cantado por ninguém,
e ninguém sabe ser da marinhagem,

as ruas se repetem desiguais,
palmilho a minha própria aparição,
o sol que racha o asfalto e limpa o cais,

a alegria que dói como um perdão.

João Filho é um poeta e contista nascido na Bahia. Entre seus livros já publicados constam diversos livros de contos como Encarniçado (Editora Baleia, 2004); Ao longo da linha amarela(P55 Edições, 2009), e também de poesia, como A dimensão necessária(Mondrongo, 2014, livro que recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional), Auto da Romaria (Mondrongo, 2017) e Um sol de bolso (Mondrongo, 2020). Além de diversas colaborações em publicações nacionais e de livros de outros gêneros, como crônica e teatro.