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O espaço para a imaginação
Por mais simplórias que sejam nossas memórias, elas sempre escondem grandes verdades. Recentemente, revisitei os jogos de videogame da minha adolescência e fui surpreendido por uma problemática no campo das artes que tem desdobramentos culturais e espirituais. Esses jogos do passado têm recursos gráficos e audiovisuais muito inferiores quando comparados às criações contemporâneas. Os recursos técnicos atuais levaram a qualidade estética dos jogos a um patamar elevadíssimo.
Refiro-me, no meu caso especificamente, ao jogo Medal of Honor, que me foi companhia em muitas madrugadas da minha juventude, levando-me às batalhas mais importantes da Segunda Guerra Mundial. Suas imagens eram compostas por formas quadriculadas de uma tridimensionalidade incipiente. Se comparado com os jogos de guerra atuais, deixaria muito a desejar pela sua qualidade técnica. Aqueles jogos não tinham esse ultrarrealismo mesmerizante que vemos nas produções atuais. Essa evolução não é um fenômeno restrito aos jogos de videogame, mas perpassa toda a indústria audiovisual.
No entanto, a experiência que aqueles jogos ofereciam transcendia seu aspecto técnico. Olhando com certa distância, é possível entender que as limitações técnicas dos jogos eram aquilo que permitia uma experiência mais edificante com eles. Seus defeitos técnicos faziam com que nossa experiência fosse mais abstrativa. Fazia com que eles fossem universos distintos da realidade. A imperfeição permitia a abstração. Os defeitos técnicos, ao invés de diminuírem a experiência, abriam uma janela para algo muito mais profundo: a atmosfera de mistério e o espaço para a imaginação.
Essa deficiência técnica, a falta de detalhes hiper-realistas e a escassez de efeitos visuais estonteantes tornavam o jogo mais rico em simbolismo. Ele não era uma reprodução perfeita do real, mas uma representação, uma interpretação da realidade. A imperfeição deixava espaço para a imaginação, para o subjetivo, criando um ambiente onde o jogador não era mero espectador, mas cocriador, através da sua própria imaginação, do universo apresentado. Esse espaço para o mistério permite que o jogo seja mais do que um entretenimento ou uma distração; torna-se, até certo ponto e guardadas as devidas proporções, uma obra de arte, à medida em que ainda abre espaço para a imaginação humana interagir com a obra. Não pelo encanto das imagens, mas pela possibilidade de representar uma linguagem através das suas formas.
Quando experimentamos os jogos e os filmes atuais, vemos um fenômeno inverso. Os recursos gráficos e tecnológicos evoluíram a tal ponto que, em muitos casos, a representação cedeu lugar à tentativa de reprodução exata da realidade ou até mesmo à tentativa de sequestrar os sentidos do espectador, hipnotizando-o com ilusões e efeitos estonteantes. Com a obsessão pela perfeição estética e pelo efeito especial, a linguagem dos jogos e dos filmes perdeu, paradoxalmente, sua expressividade. A busca pela impecabilidade em cada detalhe visual sufocou a abstração e a expressão simbólica. Ao invés de abrir espaço para a imaginação, as experiências audiovisuais contemporâneas nos prendem a um universo fechado. Os jogos viraram máquinas de sequestro da atenção. Não que os jogos do passado não tivessem a mesma intenção de capturar sua atenção no máximo grau possível. Porém, essa intenção era blindada pela incapacidade técnica dos gráficos e recursos visuais. A pobreza estética salvava a má intenção.
A discussão
Nesse sentido, grande parte da discussão sobre arte que tem acontecido nos meios mais conservadores ou religiosos da internet não passa de verborragia. Muito se fala nesses meios sobre a diferença entre o que é grande arte e o que é uma arte inferior. A justificativa para a grande arte geralmente se dá pela sua qualidade técnica ou pela simulação da realidade nela contida. Essas discussões se dão em nível histórico e nunca a nível fenomenológico. Se discute qual civilização ou qual período produziu grande arte, em detrimento da suposta decadência contemporânea.
A frase “which way western man?” (“para qual caminho, homem ocidental?”, em tradução livre) é comumente compartilhada nas redes sociais apresentando obras de arte do passado. Geralmente utiliza-se um recorte específico entre os séculos XVI e XIX, em comparação com obras modernas ou contemporâneas (que, por sinal, existem em um contexto específico e distinto das obras anteriores). Essa comparação tem como finalidade gerar um choque na audiência, forçando que se chegue à conclusão de que as obras atuais — por serem tecnicamente inferiores — precisam ser descartadas. Até mesmo o grande escultor católico Auguste Rodin já foi vítima dessas comparações idiotas: mostraram uma de suas grandes obras — uma estátua disforme – e a colocaram em comparação com algum estatuário romântico, daqueles que o artista esculpe o mármore com aparência de véu. Supostamente, essa minúcia no tratamento do mármore é superior à grandiosa obra de Rodin.
A ideia de que a superioridade técnica é o elemento que define a grande arte é uma grande bobagem, já perfeitamente refutada pelo cientista e padre ordoxo Pavel Florensky, em seu livro Perspectiva Inversa. De acordo com Florenski, os avanços técnicos nas artes pictóricas no período do Renascimento, ao invés de representarem um avanço na capacidade de expressão, são, na verdade, um retrocesso. O autor explica que a técnica ilusória da arte renascentista era utilizada anteriormente para aplicação de cenários em peças de teatro. Ou seja, o avanço técnico que permitia a ilusão da realidade, era utilizado anteriormente em seu devido lugar: como um complemento próprio para as artes teatrais, e não como o centro motivacional daquela linguagem artística.
É uma lógica oposta à iconografia cristã que abraça as abstrações para criar uma separação entre o real e o representado. É exatamente pela sua simplicidade e pela redução dos recursos técnicos que a iconografia adquire uma maior capacidade de expressão. A expressividade encontra-se na limiar entre a realidade e a abstração. Essa abstração na iconografia cristã é de tal importância que Wassily Kandinsky, o grande mestre da pintura moderna, admitiu que adquiriu gosto pela pintura abstrata ao admirar a tradicional iconografia russa. Não à toa, Kandinsky é, muitas vezes, desprezado nos meios mais conservadores por ser abstrato demais e pouco figurativa. A ignorância é uma merda.
A riqueza da simplicidade
Nesse sentido, é inevitável a comparação com as linguagens artísticas mais ancestrais: a poesia e a música. Estas linguagens, embora desprovidas de grandes recursos expressivos — a poesia apenas com palavras, a música com sons —, carregam uma força imensa justamente por sua simplicidade. São formas de arte que, com poucos elementos, conseguem evocar realidades complexas e profundas. É na ausência do excesso que se encontra o poder da representação. O poeta, com algumas palavras, pode sugerir universos; o compositor, com notas simples, pode provocar emoções profundas. Essas artes humildes sustentam algo que as linguagens mais “ricas”, muitas vezes, não conseguem: o essencial.
O mesmo Auguste Rodin, rechaçado anteriormente por sua obra disforme, escreve em seu livro “As Grandes Catedrais” — um dos mais belos odes à arte medieval — sobre esse fenômeno paradoxal nas artes:
“O arquiteto, ao trabalhar de acordo com as leis que governam a luz e a sombra e de acordo com suas próprias intenções, tem à sua disposição apenas certas combinações de planos geométricos. Mas que efeitos imensos ele obtém por meios tão escassos! Pode ser que na arte os efeitos sejam proporcionalmente maiores quanto mais simples os meios? Sim, já que o objetivo supremo da arte é expressar o essencial. Tudo o que é inessencial é estranho à arte.”
É por essa simplicidade e capacidade de síntese que o poeta Adolfo Montejo Navas compara a poesia a uma arte irmã da fotografia. Em seu livro Fotografia & poesia (afinidades eletivas), o autor explica que é na redução dos recursos técnicos (a poesia com a palavra, a fotografia com a imagem estática não criada) que essas linguagens adquirem uma capacidade de expressão superior a muitas outras artes.
Era exatamente com essa intuição que Mark Rothko desejava elevar a pintura ao estado da música e da poesia. O pintor dizia que seus quadros eram tentativas de reproduzir a expressividade da poesia. O resultado dessa intuição é sua obra pictórica simples e abstrata, onde só as cores e gestos compõem os quadros. Por isso, Rothko se negava a ser entendido como abstracionista. Ele queria chegar ao mais alto grau de expressividade possível através da pintura. Dizia o artista em seu diário: “There is more power in telling little than telling all. Silence is so accurate”.
De fato, muitos dos pintores abstratos aventuram-se em tentar reproduzir sinteticamente os sentimentos do homem e do mundo. E a única maneira de atribuir sentido a um mundo fragmentado e caótico como o que vivemos é transformá-lo em uma textura. Em amalgamá-lo em uma coisa só.
Perdoem-me os cinéfilos (até porque cinéfilo não é gente) mas precisamos admitir que — por essas razões — o cinema é uma arte menor do que a poesia. O cinema é rico demais para adquirir a devida expressividade. A riqueza do cinema consiste em conter nele mais de uma linguagem artística: a música, a fotografia, a literatura, o teatro, etc. No afã de expressar tudo, o cinema perde a simplicidade da poesia e, por sua vez, perde em capacidade de síntese e de expressão. Um parágrafo de Fernando Pessoa é suficiente para aceitarmos essa conclusão:
“Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.”
Há uma infinidade de filmes escondidos nesse parágrafo. E filme nenhum é capaz de sintetizar tanto com tão pouco. Veja que estamos falando de apenas um parágrafo de um poema moderno. E como troféu final da superioridade da poesia, temos o testemunho do próprio Criador. Deus optou por expressar a sua fé através de palavras e nos deixou o legado da Sagrada Escritura. Tivesse o Criador a mesma fé dos cinéfilos, teria nos deixado um rolo de 70mm.
A arte de Deus
De fato, há uma pedagogia divina escondida aqui que lembra a paradoxal lógica do Evangelho: “Importa que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3:30). Se a maior capacidade de expressão das artes condiz com a simplicidade dos recursos, então a grandeza se encontra no esvaziamento, no despojamento, na humildade. Quanto menos temos, mais podemos expressar. A simplicidade na arte reflete essa dinâmica espiritual. Assim como a manjedoura humilde foi o local escolhido para o nascimento de Cristo, as formas mais simples de arte são as mais capazes de revelar o mistério. A música e a poesia — despojadas de ornamentos dourados, destituídas de recursos ilusórios — tornam-se mais expressivas por serem capazes de abrir o espaço para aquilo que está além do que é visto ou ouvido.
Essa pedagogia se revela quando percebemos que, na arte, menos é mais. Quanto menos recursos se utiliza, mais se permite que o espectador ou o ouvinte participe, preencha as lacunas com sua própria percepção e encontre algo do inefável. Considere o canto gregoriano, a linguagem musical mais simples de toda a música e, paradoxalmente, aquela mais adequada para expressar a grandeza da oração. A grande arte não se constrói sobre a complexidade técnica, mas sobre a capacidade de representar, de sugerir, de conduzir ao mistério. Isso se aplica tanto aos jogos de videogame como à música ou à poesia. O excesso de perfeição e ilusão pode aprisionar, enquanto a aparente imperfeição liberta.
No fim das contas, a verdadeira expressão artística não está na precisão, mas na sugestão. A humildade das formas, a escassez de recursos, não empobrecem a obra, mas a tornam rica de significado. Assim como na vida espiritual, a arte que busca menos de si mesma é a que mais se abre ao infinito.
E como ato final dessa disputa, consideremos Jesus Cristo como nossa referência de artista perfeito. Ele escolheu estar presente no mundo, até o fim dos tempos, não como uma grande representação pictórica estonteante, mas escondido sob o aspecto de pão e vinho. O pão, que é o alimento mais modesto produzido pelo homem, é justamente o espaço em que Deus decide existir em transubstanciação. A escolha de Cristo para estar presente conosco é a lição que aplica-se à arte e à vida. Ao reduzir-se à simplicidade do pão, Ele nos mostra que é sendo menos que podemos ser mais.