(Conferência ministrada no II Congresso de Filosofia e Cultura, maio de 2024)
por Hugo Langone
Devo começar confessando algum constrangimento – o constrangimento que talvez experimente a maioria dos artistas, dos escritores, diante de quem lida com a filosofia, com o pensamento especulativo, com o rigor do pensamento. E, aqui, esse constrangimento se transforma numa espécie de apuro, pois venho falar depois de nomes que respeito, que já demonstraram viver segundo esse rigor de pensamento que acabo de mencionar. Nesse ambiente chega um artista, um poeta, cuja arte é precisamente a encarnação de algumas intuições na palavra, alguém que aceita, que gosta até, das entrelinhas, das duplicidades, dos múltiplos sentidos. De certa forma, o que os filósofos querem evitar é precisamente o que é a matéria-prima, o amor do artista. Quando o poeta, o escritor, quiser zombar do filósofo, poderá muito bem dizer-lhe: “Dai-me essas horas, esses dias, de discussão vossa que as resolverei tudo com uma só imagem, com um nome.”
De todo modo, espero que a amizade, que a alegria desta cordialidade, baste para que todos passem por alto minha falta de destreza na filosofia. Falarei como escritor, um escritor que por muito tempo ficou distante da academia; e, nisto, tenho também a esperança de que o mistério da criação – no qual os artistas se movem tão bem – possa também ajudar os que se dedicam a uma reflexão mais sistematizada das coisas.
Há uns dias, enquanto um filho meu, o mais novo, recém-nascido, com menos de vinte dias de vida, estava na UTI, eu aproveitava as trocas de plantão da equipe médica para ir ao café do hospital e retomar alguns trabalhos e leituras. Ali pude ler um ensaio publicado numa revista norte-americana conhecida, e nele tomei conhecimento desta epígrafe atribuída ao escritor George Bernard Shaw: “O verdadeiro artista preferirá que sua esposa passe fome, que seus filhos andem descalços, que sua mãe, aos setenta anos, trabalhe como burro de carga para sobreviver a trabalhar em qualquer outra coisa que não sua arte.”
Ora, naquele momento em que tinha um filho internado, em que via minha esposa preocupada com o recém-nascido, em que precisava alternar entre minha presença ali e minha presença junto aos irmãos, eu facilmente trocaria minha arte não apenas pela saúde do bebê, pela tranquilidade da minha esposa; eu trocaria minha arte pelo retorno da rotina, pela tranquilidade da vida em família, por um dia normal de trabalho. Neste caso, à luz do que Bernard Shaw teria dito, meu orgulho deveria restar magoado: eu não seria verdadeiro artista. Ou isso, ou sua frase seria falsa.
E a verdade é que, sob uma primeira olhadela, seriam muitos os exemplos de artistas que corroborariam a afirmação de Shaw. E não só na Europa das vanguardas, nos psicodelismos norte-americanos, nos seguidores da “arte pela arte”, nos artistas pós-modernos, mas mesmo na Renascença, no medievo. Quantos artistas não terão apostado na sua responsabilidade artística em detrimento de qualquer outra? Não terão preferido a consciência da obra por fazer à consciência moral?
Aqui, poderei confirmar como autor, sob o risco do escândalo, que essa é uma tentação justificável; que, sem ela, sem experimentar essa tensão, talvez o artista não esteja ciente de si, esteja enterrando seu dom, já não veja o mundo com o filtro do artesão que é.
Tento me arriscar aqui – não sem medo – no âmbito da filosofia e recordo que a Arte foi por muito tempo vista como virtude: uma virtude do intelecto prático. Todos vocês, que conhecem algo de Santo Tomás, recordarão algo nesta linha. Ocorre que essa linguagem filosófica, para quem vive isso na pele, soará um tanto árida; porque ela é sentida como uma força, como algo vital, como uma sensibilidade especial que condiciona o olhar, que a todo momento sussurra aos ouvidos do artista que há uma obra a ser feita e o modo como ela há de ser feita. E, como é essa virtude, essa sensibilidade, esse hábito o que torna faz do artista um artista, o artista enquanto artista deve estar submetido a ela.
E o que o artista escuta quando dá sua atenção à Arte? Escuta que ela quer tudo. Tudo: ela quer o bem da obra a ser feita, e para isso não medirá esforços. A Arte pede do artista seu espírito e sua carne para o bem da obra; seu intelecto, sua vontade, seu coração. Não importa que intelecto seja, o que haja no espírito, ao que se incline sua carne. A Arte só pensa na obra a ser feita, pede tudo para a obra.
Por isso, o artista que sacrifica tudo pela obra, inclusive quaisquer responsabilidades que não sejam artísticas, está sendo, sim, verdadeiramente artista. Será o escravo perfeito da Arte, o escravo perfeito da obra por fazer. E, como artista, como escritor, estará satisfeito. E por isso a tentação de que eu falava antes: ceder tudo à obra por fazer, inclusive a própria consciência moral, satisfaz. Na ordem da criatividade, tudo está saciado. O fim último terá sido atingido. O artista será artista; a obra será boa.
Não terá sido essa absolutização da ordem criadora, da virtude artística, o grande elemento por trás do movimento da arte pela arte? Quando, graças sobretudo às vanguardas, a arte começa a pensar-se mais detidamente em si, quando nascem os manifestos, quando, numa busca da pureza da arte, uma corrente artística se põe contra a outra, não se está afirmando o valor – que de fato existe, que é humano, belo – dessa esfera do sujeito que é o fazer artístico, mas de tal modo que a ele tudo se poderia ceder?
A ideia é bela, mas peca. E peca porque toma a parte pelo todo. O artista é homem, mas o homem não é necessariamente artista. O bem do artista enquanto artista faz bem para a obra, mas não necessariamente fará bem para o artista enquanto homem. Pode-se odiar qualquer traço de luz na alma humana, pode-se, na vida pessoal, preferir o horror do inferno à alegria sempre nova do paraíso e, ainda assim, ser artista – e bom artista. Os exemplos são tantos… O bem e a perfeição da obra a ser feita pode não ser o bem e a perfeição desta outra obra a ser feita que é o homem. Estamos em âmbitos diferentes: de um lado, o âmbito da obra, que é todo da Arte e de nada depende intrinsecamente; do outro, esse bem do homem, guiado como é pela Prudência. E por isso pôde-se falar, mais cedo, em tensão.
Afinal, o sujeito é um só. A Arte e a Prudência regem esferas diferentes – o bem da obra e o bem do homem – numa mesma pessoa. Neste sentido, o artista flerta com ser constantemente uma espécie de esquizofrênico; pode ser santo e trair a consciência artística; pode pôr a obra como finalidade da vida e ser um idólatra. Parece fadado a uma felicidade sempre parcial: ou é feliz como artista, ou feliz como homem.
Essa impressão, porém, pode ser falaciosa. Pode ser, pois também é possível que se concretize. No entanto, porque o homem é um só, embora o bem da obra e o bem da sua vida sejam coisas distintas, a obra que ele faz é fruto também da sua vida. A Arte, por mais que queira o bem da obra, é uma virtude que reside no intelecto humano; ela tem carne, ela tem ossos, ela tem uma história, pois o homem tem carne, tem osso, tem história. Ela é uma virtude do intelecto, e o intelecto não está sozinho. O intelecto é do homem. Cito um sensato Maritain: “Quando a Arte opera, é um homem, um homem concreto, que opera por meio de sua Arte. A pureza da obra não depende de sua ruptura com as forças vivas que animam e movem o ser humano, mas do quão forte é a dinâmica interior que gera a obra, isto é, da força da virtude da arte.”
A Arte mobiliza o eu do artista, revela um eu que, por sua vez, se sacrifica em função da obra, num jogo de revelar-se e esconder-se. No entanto, a Arte não é todo o eu do escritor, do pintor, do compositor. Antes, alimenta-se dele para o bem da obra e só na medida do bem da obra. Não importa nem mesmo que o artista tenha, paralelamente, intenções mil; os grandes pintores foram, muitas vezes, comissionados: trabalhavam pelo dinheiro. Mas e então? A arte pedia para a obra o que era da obra, segundo a intuição criadora que o artista trazia consigo. Ela rege, mas o homem todo participa. O Verbo traz à luz a Criação, mas toda a Trindade atua unida.
Ora, o homem todo está, portanto, mobilizado na obra de arte; e, como o homem é um ser naturalmente social, naturalmente político, inserido num tempo e num espaço, todos esses elementos de sua vida interior estarão mobilizados a serviço da obra a ser feita, segundo as regras que essa obra mesma pede, com a finalidade de que seja uma obra bem-acabada segundo sua natureza e, assim, cause aquele esplendor que só as boas obras causam no espírito. Na feitura de uma obra, encontram-se, na medida em que que lhes pede a Arte, toda a tradição, toda a cultura, toda a moralidade, todas as faltas de moralidade, toda a bagagem intelectual e afetiva, do sujeito criador.
Gosto de interpretar à luz disso essa passagem de um ensaio da srta. Flannery O’Connor: “Para o autor de ficção, tudo tem sua pedra de toque no olho, e o olho é um órgão que acaba por envolver toda a personalidade e tanto quanto do mundo ela pode abarcar. Ele está atrelado ao juízo.” Ou seja, quando do momento de olhar para a matéria-prima de sua obra, para o que está ao seu redor ou no seu interior, o escritor, o artista, fará isso com todo o seu ser; seu juízo virá de seu ser por inteiro, mediado pela sensibilidade artística, pela virtude da Arte. Ver é julgar; “os olhos são a lâmpada do corpo”.
O que temos, pois? Que o bem da obra e o bem do homem são coisas distintas por si sós; que a Arte pedirá tudo para a obra, mas o bem do homem poderá escolher cedê-lo ou não, colocando em xeque sua própria realização. Ao mesmo tempo, é o homem todo que participa do ato criador: a independência das duas esferas não perdura na vida concreta, no dinamismo do sujeito. Deve-se, portanto, ponderar nesse jogo a responsabilidade do artista para consigo mesmo e sua arte – enquanto homem e enquanto artista.
No entanto, a pintura, o poema, a canção – as obras, pois – quere expressar-se. Não desejam gritar para o deserto. Querem ouvidos, quer olhos. Querem seu público. E toda a mobilização do artista responsável por dar forma à obra feita encontra um correspondente na mobilização do ser do leitor, do espectador, do ouvinte. Quem recebe a obra também se mobiliza por inteiro; ou, como diz o mesmo Maritain, é acertado “por duas armas terríveis: a intuição e a beleza”. Todos nós o experimentamos diante de uma grande obra; o próprio artista sabe, e quer, que seu destinatário veja transpassados seu intelecto, seu coração, sua imaginação, sua vontade e sua inclinação. E o artista tem, deve ter, o poder para isso. É o que a virtude da Arte lhe pede. É o que a obra bem-acabada fará se cair em terreno fértil.
Portanto, para seu terror, a tensão entre criação artística e a esfera moral se transporta também para a relação do criador com os outros. Assombrosa responsabilidade, esta! Sobretudo porque pode ser porcamente interpretada, como se a um escritor só coubesse apresentar diálogos angélicos e ao pintor, as proporções de uma Vênus casta. Que deverá, portanto, fazer o artista também diante de seu público, sabendo que terá sobre ele, se for competente, tamanho poder? Como resguardar-se de transformar – e trair – sua arte em mera propaganda política, ou religiosa, ou artística, o que seja?
Naturalmente, o escritor que viesse a se colocar essa pergunta já estaria com seu problema posto em termos certos. E saberia, portanto, que faltar com a verdade, isto é, que vendar os olhos para o que há de mais iníquo, de mais perverso, de mais vil no mundo e nos homens seria falsear o que vê – seria injustiça para com seu público e injustiça para consigo mesmo, para com sua consciência moral. E trair a própria consciência é o crime dos crimes; mais do que matar sua vocação como artista, mata sua vocação como homem. É seu dever – dever do escritor, do artista – olhar; é seu dever, sobretudo, ver. Por isso os escritores mais imbuídos de uma moral firme foram também os que mais souberam tocar o lodo do coração humano, retratar sua baixeza. No entanto, tocaram essa baixeza com mãos puras ou, ao menos, com mãos que buscavam essa retidão. O artista não deve ter medo ao lodo porque não deve ter medo à verdade do que vê, disto que é sua matéria-prima. E nisso, repetimos, cumpre um dever de justiça para com seu leitor.
Também naturalmente, saberá ver, no estado das coisas que sua intuição criativa lhe faz olhar, lhe faz querer, aquilo que tem de resplendoroso, de esperançoso, de frescor. Porque as coisas são também isto, e ele não haverá passar por alto absolutamente nada. Seu compromisso com a verdade das coisas nada tem a ver com uma espécie de denuncismo social, de realismo literário; antes, é a fidelidade à maneira como vê as coisas, as quais podem ser trabalhadas segundo a arte lhe pede pelo bem da obra em produção, o que gera estilos distintos, características estéticas próprias. Tampouco o artista compromissado com a verdade, com a justiça que é devida a seu leitor ou espectador, cairá no erro de trocar as exigências intrínsecas de seu trabalho por ideologias ou os ditos “compromissos sociais”, pois isso seria fingir que a obra não pede nada, mas está submetida a questões políticas de qualquer ordem.
Não seria isso um ato de caridade para consigo mesmo, para com o leitor e espectador, para com as coisas, para com o ser humano? O respeito à verdade da própria consciência e à arte; o respeito ao próprio olhar e à obra; o respeito a um leitor que não tem o direito de ser por nós deformado, desviado, enganado? No fundo, é a caridade mesma a resposta a todas as coisas – na arte e fora dela. Eis o dever do artista na condição de artista e do artista na condição de bom homem.