A Arte Como Forma de Atenção

-por João Pinheiro da Silva

1. Relevância e Fenômenos Saturados

O mundo é complexo. Desde uma simples gota de água à intricada ordem de uma cidade, quer subamos, quer desçamos a grande cadeia do ser, encontramos uma quantidade infinita de detalhes, nuances, tons e entretons de complexidade. O mundo apresenta-se como um mar incomensurável de possibilidades. Tudo o que vemos possui uma quantidade infinita de detalhes e, se atentarmos num detalhe específico, logo percebemos uma quantidade infinita de novos detalhes escondidos no anterior.

Veja-se a gota de água anteriormente mencionada. A nossa imaginação moderna  e cientificista tende a reduzir a aparente complexidade do mundo aos seus elementos constitutivos mais básicos. No caso, poderíamos alegar que a água nada mais é que uma substância química cujas moléculas são formadas por dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio (H2O). Mas, nessa redução de um nível superior da realidade aos seus elementos constitutivos, perdemos sempre algo. Por exemplo, ainda que seja composta, no nível atómico, por dois elementos combustíveis, a água possui a propriedade de extinguir fogo. Ou seja, à medida que escalamos a grande cadeia do ser, as coisas não só se complexificam como ganham novas propriedades que não estavam contidas nos níveis anteriores. E se continuarmos essa escalada, logo perceberemos que a tal gota de água faz parte de um todo infinitamente maior que a mesma, seja um rio, um copo de água ou, quiçá, o sistema lacrimal de uma adolescente com o coração partido.

Quando entramos no reino da ação humana, essa complexidade traduz-se em termos informacionais. Mesmo o mais simples dos problemas oferece-nos uma imensidão de caminhos a tomar, uma série de aspetos a ter uma conta, uma profusão de detalhes a filtrar. Considere-se o exemplo bastante aritmético – e, portanto, simples, se comparado com qualquer situação do dia-a-dia – do xadrez. Num tabuleiro de xadrez comum, existem 30⁶⁰ jogadas possíveis, uma soma maior do que o número de átomos que existem no universo conhecido[1]. É um número tão estonteantemente grande que seria simplesmente impossível dar conta dele a cada vez que jogamos (e isso ocorre até com os computadores e algoritmos de xadrez mais potentes, que jamais levam em conta as 30⁶⁰ iniciais jogadas possíveis, mas, antes, mapeiam o número infinitamente inferior de jogadas relevantes para cada situação). Assim, um jogo relativamente simples, cujas regras podem ser entendidas por uma criança, logo se torna uma explosão combinatória que nem os mais potentes computadores conseguem plenamente albergar. Ou seja, a complexidade cresce a um ponto exponencialmente tão alto, que se torna impossível agir sobre ela.

Mas nós somos capazes de jogar xadrez. Alguns de nós até se destacam no xadrez. E também somos capazes de construir máquinas que superam até mesmo os melhores mestres do xadrez. Somos capazes não só de evitar essa explosão combinatória, como de construir máquinas que também evitam essa explosão combinatória.  Mas como é que isso é sequer possível?

Em suma, nós – e os nossos melhores computadores – somos capazes de o fazer porque jamais damos conta de todo o espaço de possibilidades. Nunca mapeamos o problema por completo, com todas as suas nuances e mesquinhices. Antes, focamo-nos em uma pequena subseção de todo o espaço de possibilidades para encontrar uma solução, o caminho a seguir, a ação a tomar.

Enquanto criaturas finitas com capacidades finitas que são lançadas num mundo de detalhes e possíveis cursos de ação possivelmente infinitos, somos capazes de agir porque nos concentramos nas informações relevantes. O cientista cognitivo John Varvaeke usa o termo “perceção de relevância” para descrever tal fenómeno, essa capacidade de reestruturar constantemente o que percebemos de acordo com a sua relevância e saliência.

E essa nossa “perceção de relevância” opera corriqueiramente num nível de complexidade infindavelmente superior ao de um mero jogo de xadrez. Na verdade, o próprio facto de podermos computar e calcular o nível de complexidade de um jogo de xadrez revela a sua simplicidade. A maioria das coisas que encontramos no mundo resiste a esse tipo de redução algébrica.

Valendo-se da obra de David Lewis, David Weberman destaca que, além das suas propriedades intrínsecas – “aquelas propriedades que um objeto ou evento possui em virtude do que é, e nada mais”[2] -, os objetos possuem propriedades extrínsecas ou relacionais – “aquelas propriedades de um objeto ou evento que dependem total ou parcialmente de algo diferente de si”[3]. Isso faz com que mesmo eventos altamente complexos – por exemplo, eventos históricos como a Revolução Russa – possam adquirir novas propriedades porque “passam a ter novas relações com novos eventos”[4]. E estas são, segundo Weberman, “não apenas mudanças de ordem epistémica ou descritiva”[5], mas propriedades ontológicas reais do evento.

Isso significa não só que o exemplo do xadrez é bastante trivial, mas também que o trivial jogo de xadrez pode vir a ganhar novas propriedades, tornando-se infinitamente mais complexo. Em termos informacionais, este estado de coisas aproxima-nos da tese de Gadamer sobre o caráter indeterminado do entendimento, para o facto de que “o entendimento nunca é completo ou fechado em si mesmo, mas num estado de constante formação”; ou, voltando a Varvaeke, numa constante reformulação do seu horizonte de saliência – ou relevância.

Essa avassaladora complexidade do mundo é perfeitamente captada pelo conceito de “fenômeno saturados” de Jean Luc-Marion[6]. Segundo Marion, certos fenômenos são tão profundamente significativos, carregam tanta intuição, que excedem quaisquer conceitos ou horizontes limitadores que se possam impor a eles. Eles são, para usar a terminologia anterior, saturados de relevância e, portanto, inesgotáveis, sempre indeterminados.

Marion contrasta os fenômenos “saturados” ou “ricos” com os “fenômenos pobres”. Enquanto os fenómenos pobres nos oferecem pouca ou nenhuma intuição, sendo facilmente categorizáveis e possuindo um valor meramente instrumental ou utilitário, os fenômenos saturados fornecem “dados abundantes à intuição, sendo que toda a intenção que lhes possa ser dirigida ou qualquer tentativa de impor significado a tais fenômenos está sempre condenada ao fracasso”[7]. Esse excesso de intuição torna o “fenômeno saturado” incondicionado, irredutível, impossível de ser governado exaustivamente.

2. A Arte como Revelação Saturada de Relevância

Embora o conceito de fenômeno saturado tenha sido inicialmente empregado para se referir a fenômenos religiosos e outras partes extraordinárias de nossa experiência, Marion logo o expandiu para além das meras margens da fenomenalidade. Em “The Banality of Saturation” (2008), Marion argumenta que os fenômenos saturados não são raros ou experienciados por um grupo seleto de iluminados. Eles só não são banais, como é possível, Marion argumenta, saturar um fenômeno, ou seja, tornar o fenómeno “pobre”, um fenómeno “saturado”:

“A banalidade do fenômeno saturado sugere que a maioria dos fenômenos, se não todos, são saturáveis por excesso de intuição. A maioria dos fenômenos que parecem à primeira vista pobres em intuição poderiam ser descritos não apenas como meros objetos, mas também como fenômenos que a intuição satura e que, portanto, excedem qualquer conceito unívoco”[8].

A tese de Marion está em perfeita harmonia com a nossa tese inicial: o mundo é complexo, cheio de detalhes e, além das suas propriedades intrínsecas, as propriedades relacionais garantem que tudo é, em última instância, saturado – ou “saturável” – e indeterminado.

Para além disso, a sugestão de Marion de que um fenômeno “pobre” se pode tornar “saturado” ilumina um aspecto crucial da nossa perceção de relevância: ela nunca é unívoca ou unilateral; ou seja, existem várias – quiçá infindáveis – maneiras de algo ser relevante. Daí a saturabilidade de todos os fenômenos. Como Marion coloca,

“a maioria dos fenômenos, mesmo os mais simples (como a maioria dos objetos produzidos tecnicamente e reproduzidos industrialmente), abrem a possibilidade de uma dupla interpretação dependente das exigências da dinâmica da minha relação com eles”[9].

Marion dá o exemplo da “pobre” “voz feminina que apenas transmite informações no altifalante do aeroporto” em contraste com a “rica” “voz da cantora de ópera à qual nenhum crítico pode fazer justiça”[10]. O problema do exemplo de Marion é, como Gschwandtner aponta, que “é realmente o mesmo fenômeno que é experimentado em um caso como pobre e no outro como rico. A voz no altifalante (mesmo que agradável) obviamente não é a voz da cantora de ópera” [11].

Mas não é tão difícil pensar num exemplo melhor. Basta olhar para uma fotografia de um campo de trigo Holandês e compará-la com uma das pinturas de campos de trigo de Van Gogh. Ou basta acessar o Google Street View das ruas de Nova York e comparar o que vemos com algumas cenas de Taxi Driver, de Martin Scorsese. Ao contrário do exemplo de Marion, estamos, efetivamente, perante os mesmos fenómenos, ainda que experienciados de forma radicalmente diferente. No caso, as obras de arte enriquecem inefavelmente a nossa experiência.

Isso ocorre porque a saturação dos fenômenos é um aspecto fundamental da arte e de nossa relação com ela. Na verdade, poderíamos facilmente usar a definição de Marion de fenômeno saturado como uma descrição de qualquer grande obra de arte: “o seu excesso deslumbrante, o seu esplendor avassalador, o seu dar mais do que podemos receber e a impossibilidade (ou pelo menos inadequação) de reduzi-lo a um mero objeto” (Ibid.: 8). A arte é uma das formas prototípicas de fenômeno saturado.

Uma grande obra de arte tem a capacidade de direcionar (ou redirecionar) a nossa atenção para o que estava antes escondido de nós. Daí a famosa proclamação de Robert Delaunay segundo a qual “o impressionismo é o nascimento da luz”. É claro que Monet e Renoir não criaram a luz (nem mesmo o demiurgo de Platão foi capaz de tal feito). Mas eles “ensinaram-nos” a ver a luz, eles ofereceram-nos uma nova perspetiva sobre as experiências mais mundanas e coloquiais. As suas pinceladas curtas, rápidas e grosseiras conseguiram captar detalhes da realidade que normalmente sequer consideramos, retratando uma nova sensação de movimento e espontaneidade, renovando assim o que antes era percebido como meramente corriqueiro.

A arte tem essa capacidade de agracear até mesmo os fenômenos mais básicos com uma panóplia de novos significados e sentidos. O impressionismo é o nascimento da luz no sentido em que nos deu uma nova e relevante forma olhar para a luz. Ao enriquecer a nossa experiência, a arte reenquadra a nossa paisagem de mundo. Para usar os termos de Hubert L. Dreyfus ao descrever a ontologia da arte de Heidegger[12], pode-se dizer que a obra de arte tem a capacidade de “manifestar, articular e reconfigurar” fenômenos por saturação.

Como diz Marion, a arte atravessa do plano invisível para o plano visível, ou seja, manifesta e articula o que era antes oculto. Assim como a pintura impressionista ressignifica o nosso sentido de luz, a arte é capaz de produzir “novos visíveis” que enriquecem a fenomenalidade do mundo:

“Criar uma obra de arte é, na verdade, um processo de tornar visível, transferir um fenômeno de uma realidade para outra, até mesmo o mero tornar acessível um fenômeno que era até então inacessível”[13].

Ao fazer isso, a obra de arte enriquece a nossa percepção de relevância, aumenta “a densidade do visível”[14]. E é essa densidade que confere inesgotabilidade à obra de arte, é ela que nos faz retornar constantemente à mesma, mesmo sabendo que nunca podemos abranger totalmente sua abundância de significado. E é por isso que a arte, além da sua capacidade da manifestar e articular, também tem o poder de reconfigurar. Ao nos apontar para novas formas de relevância e novos ângulos sob o visível, a arte enriquece nossa perceção de relevância, reconfigura e reenquadra a nossa paisagem de mundo e, assim, estrutura – e reestrutura – a nossa experiência de forma significativa.

A arte oferece-nos uma das chaves para compreender a diferença entre a mera explosão combinatória de possibilidade que congela o nosso ser e os “fenómenos saturados” que o iluminam. Os fenômenos saturados – dos quais a obra de arte é um caso paradigmático – “compelem-nos a uma abertura, uma acomodação contínua, uma sensação de inesgotabilidade, à natureza combinatoriamente explosiva da realidade e à adaptabilidade contínua e evolutiva de [nossa] Perceção de Relevância.” (Varvaeke 2019). Enquanto a mera explosão combinatória de possibilidades nos separa do mundo e nos impede de agir, a obra de arte coloca-nos em profundo contato com o mesmo.

Consequentemente, de acordo com Marion, a criação e receção da obra da arte são modelos de como “abordar todos os fenômenos, as formas paradigmáticas de receber os fenômenos per se, não apenas as experiências estéticas” (Gschwandtner 2014b: 309). Muitos mais do que nos oferecer meras trivialidades, muito além de um esteticismo vão, muito além de um belo enfado, a arte organiza e participa do próprio processo de estruturação do que consideramos “trivial” ou “relevante”, tornando-se um modelo do nosso próprio ser-no-mundo.


[1] Vervaeke, J., Lillicrap, T., & Richards, B. Relevance Realization and the Emerging Framework in

Cognitive Science (Journal of Logic and Computation 22(1), 2012), 79-99.

[2] Weberman, D., A New Defense of Gadamer's Hermeneutics (Philosophy and Phenomenological

Research, 60:1, 2000), 54.

[3] Ibid.

[4] Ibid., 55.

[5] Ibid.

[6] Veja-se, sobre o trabalho de Marion, o brilhante artigo do filósofo Bernardo Lins Brandão (que me inspirou para escrever este mesmo artigo), também publicado na Unamuno: Mística e Poesia- A relação da arte poética com o fenômeno saturado (unamuno.com.br)

[7] Gschwandtner, C., Degrees of Givenness: On Saturation in Jean-Luc Marion (Indiana University Press,

2014), 6.

[8] Marion, J.-L., The Banality of Saturation. In J.-L. Marion, & C. Gschwandtner, The Visible and the

Revealed (New York: Fordham University Press, 2008), 126.

[9] Ibid.

[10] Gschwandtner, C., Degrees of Givenness: On Saturation in Jean-Luc Marion (Indiana University Press,

2014), 22.

[11] Ibid.

[12] Dreyfus, H. (2005). Heidegger’s Ontology of Art. Em H. Dreyfus, & M. Wrathall, A Companion to Heidegger (pp. 407-419). Blackwell Publishing Ltd.

[13] Gschwandtner, C., Revealing the Invisible: Henry and Marion on Aesthetic Experience (The Journal of

Speculative Philosophy, 28: 3, 2014), 309.

[14] Ibid., 308.

Bibliografia:

Dreyfus, H. (2005). Heidegger’s Ontology of Art. Em H. Dreyfus, & M. Wrathall, A Companion to Heidegger (pp. 407-419). Blackwell Publishing Ltd.

Gschwandtner, C. (2014a). Degrees of Givenness: On Saturation in Jean-Luc Marion. ‎Indiana University Press.

Gschwandtner, C. (2014b). Revealing the Invisible: Henry and Marion on Aesthetic Experience. The Journal of Speculative Philosophy, 28: 3, 305-314.

Mackinlay, S. (2009). Interpreting Excess: Jean-Luc Marion, Saturated Phenomena, and Hermeneutics. New York: ‎Fordham University Press.

Marion, J.-L. (2002). In Excess: Studies of Saturated Phenomena. New York: Fordham University Press.

Marion, J.-L. (2003). The Crossing of the Visible. Stanford University Press.

Marion, J.-L. (2008). The Banality of Saturation. Em J.-L. Marion, & C. Gschwandtner , The Visible and the Revealed (pp. 119-144). New York: Fordham University Press.

Varvaeke, J. (2019). Awakening from the Meaning Crisis – The Spirituality of RR: Wonder/Awe/Mystery/Sacredness. Obtido de https://www.meaningcrisis.co/ep-33-awakening-from-the-meaning-crisis-the-spirituality-of-rr-wonder-awe-mystery-sacredness/

Vervaeke, J., & Ferraro, L. (2013). Relevance, Meaning and the Cognitive Science of Wisdom. Em M. Ferrari, & N. Weststrate, The Scientific Study of Personal Wisdom: From Contemplative Traditions to Neuroscience (pp. 21-51). Springer.

Vervaeke, J., Lillicrap, T., & Richards, B. (2012). Relevance Realization and the Emerging Framework in Cognitive Science. Journal of Logic and Computation 22(1), 79-99.

Weberman, D. (2000). A New Defense of Gadamer’s Hermeneutics. Philosophy and Phenomenological Research, 60:1, 45-65.