A mecanização das cidades modernas

– por Lucca Bessa

A concepção da cidade como casa parece ter desaparecido. Se, por um lado, os processos do novo urbanismo ajudam as cidades a ser mais acolhedoras,  é isso meramente colateral numa filosofia que enxerga esses mesmos processos como a melhor maneira de fazermos nossos negócios.

Sempre me pareceu que a ideia de que a casa é uma “máquina de morar” só é concebível por quem nunca morou em uma. Ou que tenha odiado todas em que morou. Mas, apesar do fracasso em me convencer, a ideia não me saiu da cabeça, parecendo-me ser o pensamento basilar de todo o urbanismo e arquitetura dos últimos três quartos de século.

Caso o leitor não saiba, o autor da frase é Le Corbusier, papa da arquitetura moderna. Ambas as hipóteses apresentadas podem ser aplicadas à sua vida. Jesuíta de si mesmo e de suas próprias ideias, não parava quieto em nenhum lugar específico e, a julgar pelo seu projeto para a cidade, desprezava Paris. No fim, sua companhia se estabeleceu pelo mundo com mais sucesso que a de Loyola. 

Apesar de gestadas na Europa, as ideias fundadoras do modernismo na arquitetura só atingiram maturidade ao desembarcarem na América. O movimento chegou aos EUA com direito a um museu e exposições garantidas. As eminências europeias que o trouxeram se tornaram logo, a partir de Nova York, “deuses brancos” no país  —  como Tom Wolfe mostra em sua mordaz descrição do movimento[1].

Ao Brasil, Corbu veio, em pessoa, a convite de um grupo de jovens arquitetos, para projetar o grande edifício público do varguismo. Desse grupo saíram Niemeyer, Lucio Costa e outros que fundaram o corbusianismo-com-azulejos e chamaram de arquitetura moderna brasileira. Como o Iluminismo, a filosofia da “máquina de morar” e da submissão à função voltou para Europa depois de fortalecida no lado de cá do atlântico.

O aforismo fundador do modernismo sintetiza, antes de tudo, uma mudança filosófica. A arquitetura, que sempre pisou na fronteira do que é arte, abandona qualquer esforço para permanecer do lado de dentro dessa delimitação ao ser reduzida a um espaço utilitário. É só a partir dessa mudança de ponto de vista que se desenvolvem as ideias concretas do movimento moderno. Logo, se as construções passaram a ser fundadas apenas no utilitarismo, as cidades que as recebem deveriam seguir o mesmo norte.

Na verdade, o sucesso do urbanismo modernista não foi tão galopante quanto o da arquitetura. Mesmo em Nova York, a reconstrução radical e racionalizada da cidade sofreu importantes oposições. A mais ferrenha e célebre delas veio de Jane Jacobs que se ergueu contra diversas mudanças propostas. Na Europa, nem Corbu conseguiu retraçar Paris. 

Os modernos acreditavam que a cidade-máquina funcionava melhor ao ser segregada em subúrbios especializados. Um subúrbio residencial, outro comercial, o industrial, e assim vai. Todas as partes seriam perfeitamente conectáveis através das grandes avenidas e do automóvel particular. 

A ideia não pegou tão bem na Europa  —  o que não quer dizer que foi totalmente ignorada —, mas foi recebida com abanar de rabos na América. Muitas cidades, nos EUA, passaram a se estruturar assim. Uma grande casa, em subúrbios parecidos com condomínios, com um belo carro com cauda para atravessar a estrada até o trabalho, eis o cenário-padrão do american dream. No Brasil, além da simbólica capital moderna, grandes cidades como São Paulo adotaram o padrão Frankenstein de crescimento urbano. Com o agravante, porém, da dificuldade de unir as partes sem o dinheiro necessário.

Não demorou tanto e a máquina começou a enguiçar. Cidades feitas para carros demonstram não serem tão efetivas em acolher seres humanos. O urbanismo modernista criou uma máquina de engarrafar ou se deslocar, em que morar era gambiarra. 

Então, as ideias de tornar a máquina adequada para pessoas começaram a crescer. Passadas algumas décadas, os opositores do planejamento modernista parecem ser os novos deuses brancos quando se trata de urbanismo. A já citada Jane Jacobs e autores mais novos como Jan Gehl e Jeff Speck ganharam importante destaque ao escrutinar a “carrosofia” dos modernos.

Substituir grandes avenidas por calçadões, adensar as cidades, incentivar o uso misto, enfim, novos ideais foram adotados para o novo objetivo da máquina: comportar pessoas. Alguns deles, aliás, realmente melhoraram as cidades para nós pessoas e, inclusive, foram retirados da experiência de séculos de construções anteriores a Henry Ford. O problema principal, porém, continua vivíssimo. Não é posta em xeque a ideia de que a cidade e os edifícios que a preenchem são máquinas de morar. A cabeça do arquiteto continua mais próxima da de um caixeiro-viajante do que da de um artista. A discussão gira em torno de como a máquina pode girar melhor, emitir menos CO2, gerar menos acidentes, poupar mais tempo, enfim. Mas continuam lá os problemas gerados na base.

Jan Gehl, por exemplo, autor do livro ‘Cidade para Pessoas’, foi contratado recentemente pela prefeitura de São Paulo para projetar a reforma do Vale do Anhangabaú. Com todo o seu manual na cabeça, o dinamarquês achou o antigo projeto obsoleto. A solução? Descartou a máquina velha e colocou o brand new Anhangabaú by Jan Gehl por cima. As pessoas de São Paulo têm agora uma gigantesca pista de skate, super acessível, com fachadas ativas e demais itens da cartilha de cidades caminháveis — com o único porém de não lembrar em nada o que antes chamavam de Anhangabaú. Patrimônio histórico, afinal, não cabe no Excel.

Mas do que vale trocar só o vale, não é mesmo? Recentemente, a prefeitura paulistana chegou à conclusão de que todas as calçadas do centro histórico estavam obsoletas porque pedra portuguesa é escorregadia e fácil de tropeçar. Esperamos, então, concretagem de todo o centro para a máquina fluir melhor. Além das calçadas, muitos prédios mais antigos já se tornaram démodé. Em nome da imaculada verticalização  —  outro dogma das cidades-máquina 2.0  —  muitos sobrados ou prédios menores estão sendo postos abaixo para receberem máquinas maiores que comportem mais gente. Memória não entra na conta.

A ligação com o patrimônio histórico é uma das muitas relações que temos com nossa cidades, inexplicáveis dentro do cálculo utilitário. Afinal, custa caro mantê-lo, ele ocupa espaços que poderiam ser preenchidos por construções mais novas, com mais tecnologia. O patrimônio da memória, afetivo, as ligações sutis, dependem de que se enxergue a cidade como um espaço humano, o que difere de uma ferramenta para humanos. Logo, na lógica da cidade-máquina, tudo isso é negligenciado.

A cidade-casa

Reduzir as cidades sob o pretexto da utilidade é tal como reduzir a própria esposa a uma máquina de cuidar. A analogia, aliás, não é tão distante, uma vez que, como bem explica Massimo Cacciari[2], uma das origens da cidade ocidental, a pólis grega, nasce como a unidade de pessoas do mesmo génos, a sede de um grupo de mesmo éthos. A relação com a cidade, então, é praticamente familiar. Nas palavras de Cacciari: “O éthos grego é a sede, o lugar onde minha gente tradicionalmente mora, reside. E a pólis é precisamente o lugar do éthos, o lugar que serve de sede a determinada gente”[3].

Cacciari, aliás, traça uma segunda origem para as nossas cidades: a civitas da Roma antiga. Concebidas para o expansionismo romano, as civitas não possuíam qualquer caráter de pertencimento ou de raíz. Eram, antes de tudo, engrenagens do império que se estabeleciam apenas sob o pretexto de obedecerem a uma mesma autoridade.

As duas origens, ainda de acordo com o filósofo, resultaram em uma contradição natural para a cidade europeia. “Por um lado,” diz Cacciari, “concebemos a cidade como lugar para nos encontrarmos e reconhecermos como comunidade, um lugar acolhedor, um ‘seio’, um lugar onde residir bem e viver em paz, uma casa.” “Por outro lado,” prossegue, “cada vez mais consideramos a cidade como uma máquina, uma função, um instrumento que nos permite, com o mínimo impedimento, fazer os nossos negócios. De um lado, a cidade como lugar de troca humana, seguramente efetivo, ativo, inteligente, enfim, um lugar para morar; do outro, o lugar onde desenvolver os negócios da maneira mais eficaz possível”[4].

Enquanto os princípios originados da civitas vêm crescendo, através da cidade-máquina, a concepção de uma cidade-casa, que remetesse aos anseios originados na pólis, parece ter desaparecido. E se, por um lado, os processos do novo urbanismo ajudam as cidades a voltarem a ser mais acolhedoras, esse efeito é colateral numa filosofia que enxerga esses processos, simploriamente, como a melhor maneira de fazermos nossos negócios. 

É impossível a essa filosofia, então, entender as trocas humanas que acontecem entre nós e nossas cidades. Essas trocas passam pelo reconhecimento, por exemplo, da beleza na cidade. Mais do que isso, pelo reconhecimento de uma beleza que reflita o éthos do povo que lá vive. O asfaltamento de calçadas em pedras portuguesas e a expansão de um modo de construir completamente genérico e amorfo, como pombais erguidos por grandes financeiras, são maneiras de afastar a cidade e a arquitetura do senso de acolhimento que deveria integrar sua base. Mesmo que sirvam às cartilhas da “caminhabilidade”.

Um urbanismo que entenda e contemple a conexão que temos com nossas cidades depende, então, de partir do princípio da cidade-casa. Admitir, na sua base, a necessidade de vínculos afetivos; pensar a cidade como mediadora de uma relação que a ultrapassa e que liga, em seus polo, o homem e seus ancestrais, o indivíduo e sua comunidade.

Nossas cidades, caso contrário, continuarão mais máquinas do que casas. Isso, enquanto pensarmos nela como puros instrumentos. Não adianta lubrificarmos as engrenagens com novos conceitos. Devemos, na verdade, enxergar mais alma e menos engrenagem no local em que vivemos.

ᅠᅠ

Lucca Bessa reside em São Paulo, é ensaísta e estudante de história e teoria da arquitetura


[1] Tom Wolfe, From Bauhaus to our house, New York, Picador, 1982.

[2] Massimo Cacciari, A cidade, trad. José J. C. Serra, Barcelona, Gustavo Gili, 2009.

[3] Ibid.,p.10

[4] Ibid., p. 26