Antes de Julho – Conto inédito de Matheus Bensabat

– por Matheus Bensabat

Estávamos na sala, arrumando a mesa para o almoço. Sérgio e Luís estavam no quintal, conversando perto da churrasqueira, próximos um do outro. Era uma tarde fria de junho.

Deixei Maria no carrinho e organizei os pratos sobre a mesa. Em seguida, abri as janelas da sala, olhando para os dois, que contornavam a mangueira em direção à piscina. Sérgio gesticulava, com aquele seu modo expansivo e por vezes rude que tanto me afligia, expelindo a fumaça do charuto, enquanto Luís olhava para o chão.

Sérgio é professor e empresário, dono de uma das mais prestigiadas escolas da cidade. Meu ex-marido o conheceu no curso de Letras da UFRJ; Sérgio lecionava e Luís era seu aluno. Em pouco tempo tornaram-se íntimos. Antes de nos casarmos, Luís havia perdido o cargo de professor em uma universidade particular, e começou a traduzir artigos para revistas digitais. Foi Sérgio quem o trouxe, como diretor, para a escola recém-inaugurada, livrando-o da depressão que se iniciara com a morte do pai. Conheci o Luís na adolescência. Àquela época, impressionava-me ao conversar com uma pessoa culta, ou que simplesmente demonstrasse cultura. Tão só o modo de vestir, e se a pessoa se portasse de forma digna, junto às conversas que oscilavam entre Teatro Grego e História da Igreja, faziam-me sentir o entusiasmo de uma impressão superior que poucas vezes havia experimentado, o que muito contribuiu para que eu frequentasse o meio intelectual da época. Silenciosamente, pensava em tirar algum benefício de tais relações, ainda que não soubesse como fazê-lo. Imiscuía-me timidamente nos grupos que me pareciam mais acessíveis, ou naqueles que exigissem de mim menor esforço. Foi em tal ambiente onde      Luís me apresentou a Sérgio e Fernanda. Os três eram amigos e eu os via muito distantes de mim; pareciam-me muito mais inteligentes do que eu. Todos eles eram católicos, e, com o passar do tempo, quando já frequentávamos a casa um do outro, aceitei, de início contrariada, matricular-me no catecumenato para receber os sacramentos que me faltavam, tendo em vista que já era batizada. Mas não tive forças para me dedicar às práticas da religião. Dos hábitos religiosos, o que se incorporara aos meus, notadamente mundanos, fora o hábito de frequentar a missa todos os domingos. Impressiono-me com o ornato artístico das celebrações, sobretudo quando participo da Missa Tridentina. Na infância, estudei num colégio de tradição protestante, cuja grade curricular tinha aulas de educação religiosa. Delas, lembro-me muito pouco. A única imagem que me ficou e que às vezes retorna com maior intensidade é a da capela, o piso de tábua corrida, as pequenas torres de madeira que avançavam, alinhadas, pelas colunas superiores, como se representassem castelos medievais.

Fazia-lhes companhia nas inúmeras reuniões que organizavam, ora na escola, ora em casa. Mas os anos de convívio afrouxaram os antigos impulsos da juventude, e passei a enxergá-los com certo sentimento de superioridade. Sentia-me cada vez menos estimulada por aqueles encontros, participando deles sem nenhum entusiasmo. Mas, assim como a cesta de Caravaggio que, enviesada, por um milagre mantém-se à beira da mesa,       mantinha-me numa posição em que não os deixava perceber o pouco caso que fazia de tais reuniões, um dos motivos pelos quais adotei o silêncio como forma de me proteger.

Voltei-me para dentro ao ouvir o choro da Maria. Tirei-a do carrinho e levei-a ao colo; amamentei-a enquanto Fernanda arrumava o cercado em que os gêmeos dormiam. Os dois, unidos pela trança de linho que os protegia, davam ares de abandono, como as crianças do quadro de Salomon de Bray, exposto na Galeria Nacional da Escócia. O berço simbolizava o batismo, aos moldes de uma concha barroca, e na borda havia um pequeno anjo de ouro, perscrutando a escuridão do seu lado direito.

Coloquei Maria, que dormira, junto aos gêmeos, separando-a com a trança de linho.      Fernanda contornou a mesa e ligou o umidificador, sentando ao meu lado. Éramos confidentes. Mantínhamos diálogos sinceros, sem nos ferirmos. Tínhamos os mesmos defeitos e as mesmas qualidades, mas as dela sobressaiam pela naturalidade com que as manifestava.

Fui para a cozinha e tirei a travessa do forno, levando-a à mesa junto à garrafa de suco de uva.

— Não quer ir com a gente para Teresópolis? — perguntou-me, levantando-se para distribuir os talheres.

Costumavam passar as férias na Serra. Raramente lhes fazíamos companhia, mas sair de casa um pouco seria bom pra mim. As contínuas tarefas domésticas, com as quais me via ocupada desde o início do matrimônio, começavam a me esgotar. Apesar das distrações esporádicas, vivia num estado quase permanente de tensão.

Andei em volta da mesa, distribuindo os copos, e disse que iria. Ela olhou-me, sentou      e, com aquele aspecto aparentemente triste que a fazia apoiar a mão sobre a cabeça, começou a falar, abrindo uma garrafa de água com gás. Explicou-me que a cunhada tinha acabado de pedir divórcio.

Conheci-a em uma daquelas inesgotáveis reuniões domésticas. Via-a como uma mulher quieta, que em muitos aspectos se parecia comigo. Não perguntei o motivo da separação.

— Disse que precisa passar um tempo sozinha, sem as crianças.

Respondi-lhe que uma viagem a Teresópolis, sobretudo no inverno, não as distrairia.

— A intenção é tirá-las de casa, agora que está tudo tão recente. A ausência do pai, a angústia da mãe…

Maria ainda estava dormindo, o braço ao longo das tranças de linho. Suspendi o umidificador, colocando-o em cima da cadeira. Olhei para o quintal e não os vi.

— Por isso você quer que eu vá junto, para cuidar da creche.

Levantou-se e parou do meu lado, olhando para os filhos.

— Na verdade, foi ideia do Sérgio. Ele se dispôs a passar um tempo com os sobrinhos — disse, estendendo acima das crianças, sobre dois bancos, o mosquiteiro em formato de tenda.

Voltei à mesa e abri a garrafa de suco de uva, olhando indiferente para o piso da sala, quando me lembrei de um poema decorado na adolescência. Entre os versos, trouxe dois à lembrança: “a mesa posta/cada coisa em seu lugar.”, sussurrando, como se os declamasse em algum outro lugar que não fosse aquele em que estava, e num outro tempo, muito mais distante.

Pedi para que Fernanda os chamassem. Procurando-os, não os viu no quintal. O carro não estava mais na garagem.

Uma semana depois, estávamos em Teresópolis, num Hotel Fazenda a poucos quilômetros do centro. As crianças nos respondiam sem nos olhar, visivelmente tímidas. Conviveram muito pouco com os tios, e os viam como estranhos, mas Fernanda conseguia, com uma habilidade admirável que só ela tem, descontraí-los em alguns momentos. Eu e Sérgio, na maioria das vezes, ficávamos à parte.

A casa em que estávamos hospedados erguia-se no alto da Serra, junto a outras, que margeavam a vegetação escura. Da nossa dependência, enxergávamos todo o hotel, desde a entrada até o campo de futebol, que ficava em frente a uma espécie de galeria, na qual expunham-se quadros que reproduziam, por meio de gravura a água-tinta, o Mirante do Soberbo e o Dedo de Deus.

Naquele fim de tarde, quando o sol, na claridade esmaecida do poente, se desmanchava      pelas casas, um homem saía do redondel, conduzindo o cavalo de volta ao estábulo. Observei-o enquanto amamentava Maria, apoiada no balaústre.

Minutos depois, Fernanda trouxe as crianças para a sala. Ajudava-as a montar uma câmera de papelão, guiando-se pelo livro de experimentos aberto ao seu lado, que consistia em enxergar as coisas de cabeça para baixo, por meio de uma lupa, sob uma película embaçada e imprecisa, a exemplo de uma lente real. O menino recortava o papel alumínio enquanto a irmã colava as extremidades da caixa, dobrando-a de modo a invertê-la.      Sérgio voltara com queijo brie, uma caixa de morangos e café em grãos. Deixou a chave do carro sobre a mesa da sala e foi para a cozinha. Da varanda passei ao sofá, atenta aos gêmeos no cercado. Vestiam moletom azul com botões brancos, as mangas dobradas na altura do cotovelo. Toda vez que os recordo, vejo-os dormindo, como se estivessem presos a um sono em que o tempo os abstrai. Olhei para Maria, ajeitando-lhe o cabelo, para depois colocá-la junto a eles. As crianças estavam tão concentradas na tarefa, montando as laterais do experimento, que sequer perceberam quando ele apareceu, olhando-os silenciosamente e sentando no chão frio. Deu a xícara à esposa e começou a ler as instruções do livro. Determinou ao sobrinho que recortasse o papel mais uma vez. “Devem aprender desde já a fazer as coisas com perfeição”, disse, dando-lhe a tesoura e o tubo de cola, ao mesmo tempo em que trazia para si o livro, ocultando-o. Ditou as instruções, acompanhando-lhe os movimentos com uma atenção exagerada. O menino recortou o papel alumínio mais uma vez, colando-o às laterais do experimento. Em seguida, apoiou as costas no braço do sofá, olhando para a Fernanda. O vento que vinha de fora movimentava os anjinhos de resina presos ao cercado. Fui à cozinha e enchi um copo d’água; voltei à sala e sentei      perto deles. O menino recortava o papelão. O Sérgio, de pé, instruía-o, corrigindo-o. Em determinado momento, passou-lhe a cola, arrastando-a com o pé. “Na parte de cima, onde estão as dobras”. Ele girou o bastão, esfregou-o pelas extremidades e abaixou a cabeça. A irmã respondia às perguntas de Fernanda com um estorvo na voz, e seus olhos lacrimejavam. “É como o pai, incapaz”, e tirou-lhe a caixa das mãos para depois amassá-la.      Fernanda virou-se, olhando-me como se procurasse uma explicação para o que acabara de ver. Ele passou por mim, contornou a mesa e parou em frente ao cercado. Os gêmeos dormiam, conchegados um no outro.

No dia seguinte Fernanda os levou ao campo de futebol, cujo emblema da Seleção Brasileira encobria o gramado. O menino dava alguns passos e parava, passava a mão em volta dos olhos e continuava a andar. Ela o acompanhava, distraída, olhando para os cavalos no redondel, entre os quais via-se um andaluz de crinas malhadas circundando a cancela. A manhã clara e fria repercutia na pelugem branca. Sérgio, caminhando atrás da esposa, abraçava a sobrinha, que aos poucos dava-lhe abertura, ao contrário do irmão. Este esgueirava-se para não vê-lo, evitando-o como podia.

Via-os da varanda, preocupada com Maria, que respirava mal desde que acordara. Começavam a aparecer-lhe manchas vermelhas pela nuca, tal como urticária. Descobri que a Maria é alérgica ao frio.

Desfiz a mesa posta para o café da manhã e acendi na sala um incenso de olíbano, ao lado do qual deixei o ícone ortodoxo de Nossa Senhora e as Sete Flechas. Voltei ao quarto e constatei que Maria estava com febre; as manchas vermelhas começavam a se espalhar pelas costas. Dei-lhe banho na expectativa de que a temperatura diminuísse, sem saber se devia levá-la à emergência.

A Fernanda entrou minutos depois, segurando algodão e gaze. A menina se machucara. Estava sentada na cadeira, ao lado do irmão, olhando para a ferida. O Sérgio lavava as mãos no gabinete ao lado, de frente para o espelho, limpando as unhas com uma esponja branca. Às vezes, virava o rosto em direção à sala, mas logo tornava a olhar para as mãos. Enxugou-as e sentou-se no sofá.

Perguntei-lhe o que havia acontecido, mas ele não respondeu, observando a fumaça do incenso.

— Arde? — dirigi-me a ela, passando cuidadosamente o algodão molhado de soro na ferida. Ralara-se do joelho ao pé, e os pulsos estavam com manchas vermelhas.

— Um pouco — respondeu, contraindo a perna.

— Vamos para o chuveiro — disse, levantando-a.

Deixou-se guiar, segurando minha mão como se me conhecesse há muito tempo. O menino acompanhou-nos. Estava triste e com aspecto cansado.

Coloquei-a debaixo do chuveiro e peguei o sabão que estava no suporte. Ela me segurava, com as costas rente ao vidro, levantando a perna bem devagar. Ajoelhei-me de modo a servir-lhe de apoio, esfregando o sabão debaixo da água corrente, fazendo com que a espuma escorresse pela ferida. Ela gritava de dor enquanto o sangue sujava-me a saia. Depois, enxaguei-a. A mesma solidão que recai sobre os homens abandonados e sem esperança recaía sobre mim, sem nenhum motivo aparente. Enquanto enxugava-lhe os pés, pensei nos Salmos, nos jardins da Toscana, nos afrescos de Giotto citados por Proust, e aos poucos consegui me acalmar. O menino encostou o rosto na palheta da porta, prescrutando-nos.

Voltei ao quarto e pedi que ela deitasse. Fernanda estava de bruços, ao lado de Maria, mirando o chão com aspecto alheado.

Passei à sala, cujas cortinas estavam escancaradas. O sol se espalhava pelo chão, clareando o cômodo. Eram nove horas da manhã. Ele andava do cercado à mesa, com um dos filhos no colo, olhando para o incenso que lentamente se consumia. Não nos falamos. Notei-lhe a frieza que lhe era habitual, e dessa vez senti-me acuada. O anjinho de resina estava com ele. Passou por mim, deixou-o sobre a mesa e pegou o ícone de Nossa Senhora, sentando-se no sofá.

Angustiei-me ao ouvir o choro de Maria. Abri a porta da sala e desci rapidamente os degraus da escada. Em pouco tempo estava próxima ao redondel, observando o início da equitação. O andaluz marchava lentamente, entre o passo e o trote, ao lado de um homem, que o conduzia pela rédea. Aproximei-me da bastida e olhei para a mata acima das casas, vendo-o de relance. O cavalo contornou os obstáculos, bufando. No mesmo instante, ele se aproximou do balaústre. Segurava uma xícara de café, passando a mão na cabeça da sobrinha, que o olhava. Jovens com o uniforme do Botafogo passaram por mim a caminho do campo de futebol. O treinador ia à frente deles, fazendo embaixadinhas. Sentei-me num banco entre dois vasos com rosas do deserto e fiquei ali por um bom tempo, observando as pessoas.

Voltei para casa em razão de Maria, que exigia cuidados médicos. Luís buscou-nos na manhã seguinte. Eles foram embora dias depois, levando os sobrinhos.

Pouco tempo depois minha vida mudou. Descobri da pior maneira o que comecei a intuir naquela tarde de junho, e não será possível, por envergonhar-me profundamente, narrar o motivo pelo qual nossas famílias se afastaram, depois de um relacionamento de quase dez anos.

A princípio, quis me proteger da vergonha, mas constantemente me afligia. Os pensamentos que nada tinham a ver com a realidade me levavam a outros, ainda piores. Tentava presumir o que as pessoas falavam de mim, mesmo sabendo que nada se tornara      público. Luís, que se afastara da administração do colégio, passava as manhãs no escritório, tocando violão. À tarde, assistia às apresentações da Orquestra Sinfônica de Berlim; tomava banho e lia. Por um tempo, dependente dele, suportei-o, ocultando o desprezo. Mas logo pedi divórcio; o nojo e o asco tornavam-se cada vez mais insuportáveis; e aluguei um apartamento no Grajaú, a custo dos meus pais, bem menor e sem as mordomias de que eu dispunha no Recreio. Embora por vezes lamentasse, cansava-me pouco, uma vez que não precisava desempenhar tantas atividades domésticas. E não me sentia só. Muito pelo contrário: viver para Maria me acalmava, como se eu cumprisse uma vocação. Meses depois, soube que Fernanda assumira a administração do colégio, tarefa para a qual desde sempre se mostrara incapaz, por não ter senso prático. Sua visão de mundo era essencialmente poética. Os dois ainda viviam juntos e o Sérgio voltara a lecionar. Meu rancor em relação a ela tem origem na pusilanimidade, por se sujeitar a viver ao lado dele. Tivemos longas conversas, nas quais procurava persuadi-la a se afastar, sem convencê-la.

O Luís raramente mostrava interesse em ver a filha. Tinha um caso com uma aluna, enquanto eu só pensava na Maria. Acompanhava-lhe o crescimento com uma felicidade que poucas vezes senti na vida.

Durante o processo de divórcio, prometi que não deixaria de ir à igreja, ainda que para isso fizesse um esforço muito grande. A missa das quatro e meia coincidiu com a final do Campeonato Carioca, e em um dos bares no entorno reuniam-se torcedores do Flamengo, com os hinos de arquibancada no último volume. Antes de entrar, caminhei pela praça Dom Pedro, contornando os canteiros, mostrando a Maria, que começava a andar sozinha, as pias de granito onde se acendiam velas votivas, as quais compunham parte das lembranças mais profundas da minha juventude, como nos momentos em que, sofrendo por não conseguir emprego, durante o período da faculdade, olhava-as queimar, como se inconscientemente procurasse me desunir do mundo. Tomei-a pela mão, conduzindo-a pelo caminho de pedra.

A Catedral estava tão cheia que demorei a reconhecê-lo no banco em frente ao altar. Movimentei-me para vê-lo, mas as pessoas o encobriam. Olhei para o padre, que, elevando o cálice, por um segundo repousou os olhos sobre todos nós; e quando o coroinha movimentou a sineta, as duas mulheres que estavam sentadas atrás dele se ajoelharam, e então pude vê-lo, contrito: as mãos cruzadas, a tez erguida para o teto, como se suplicasse a um céu distante. Olhava para a imagem de São José, fixada em uma das colunas da nave.       Fernanda não estava ao seu lado, passara ao átrio. Segurava um dos gêmeos, que momentos antes chorava. O outro ficara ao lado do pai, dentro do carrinho de bebê, coberto por um manto amarelo. O silêncio precipitava a Catedral numa melancolia inquieta, envolvendo-me em angústia, que se tornou ainda maior ao vê-los. Pouco tempo depois de nos afastarmos, intuí que passariam à missa das sete, a primeira do dia, de modo a evitar-me. Frequentávamos a mesma igreja havia dez anos. Mudar de paróquia seria natural, mas o hábito se impõe, e eles, tinha certeza, estavam convictos de que eu evitaria um encontro inesperado.

Acomodei Maria nos meus braços, colocando-a de costas, de modo a deixá-la mais confortável. Os acólitos desceram os degraus da nave, segurando a âmbula na altura do peito. Pararam muito perto dele, dividindo-se rente aos primeiros bancos, organizando a fila da comunhão. Ele não se levantou; limitou-se a se ajoelhar. Logo ele que se nos mostrava de uma fé consolidada. Agora, a culpa e a vergonha o consomem, tem nojo de si mesmo, da vida que leva ao lado da Fernanda. Virei-me para o átrio, procurando-a, mas não pude vê-la. Enviesara para a calçada, sumindo pelos canteiros da Praça Dom Pedro. Ele parou de olhar para as pilastras da nave; circunvagava os olhos ao redor, como se procurasse distinguir no rosto das pessoas alguma coisa que o acusasse. Ajeitou-se de modo a ficar próximo do filho, arrastando o carrinho para perto do banco. Abri a bolsa de      Maria; procurava a chupeta, olhando de soslaio para a mulher que estava à minha frente. Tinha manchas vermelhas na nuca e o seu cabelo era muito áspero; cobria-o com um véu preto, rendilhado. Virei o rosto em direção a ele, que olhava para trás, procurando a Fernanda. Ela passou pelo pórtico, com o filho no colo, e contornou a pilastra, sentando      ao lado do marido. Vendo-a, pegou a criança que estava no carrinho e se afastou na direção do confessionário. Pelas grades de madeira acompanhava-lhe os passos. As pessoas fizeram o sinal da cruz e se levantaram. Se se virasse, agora que os bancos da frente começavam a esvaziar, iria me ver, mas voltou para perto de Fernanda, acomodando as crianças no carrinho. Passaram próximos a mim, e nossos olhos, num átimo, entrecruzaram-se — os dele ressumavam dor e culpa. Nunca os vira tão congestionados. Disfarçou, visivelmente abalado, mexendo na bolsa que pendia do carrinho.

Vi-os se afastarem e recuei para a nave lateral. Esperava a igreja esvaziar completamente para sair. As imponentes portas de madeira que davam acesso ao andar superior estavam fechadas. Fotografei-as; o reflexo colorido dos vitrais incidia sobre elas, tingindo o contorno dos talhes. Fui até a sacristia, revisitando o enorme quadro de São Pio X, quando lembrei que havia deixado a bolsa de Maria sobre o banco. Voltei à nave principal, passei os olhos sobre todos eles e não a encontrei. Procurei-a ainda por alguns minutos, contornando os bancos, até perceber que Maria adormecera nos meus braços. Sentia no pescoço a respiração cadenciada, ouvindo-a no silêncio da Catedral deserta.

A última frase dita pelo padre ecoava dentro de mim. Dissera-nos que os pelicanos do deserto, ferindo-se no peito, alimentam os filhotes com seu próprio sangue. Da mesma forma, sacrificar-se por quem se ama para ele também era um valor, e em razão disso éramos admiradores de um caráter único, que não admite abusos ou falhas de quem lhe é próximo. A confiança que nos transmitia, natural no começo, foi vagarosamente contaminada pela dúvida. E depois de tudo, restara-nos o ressentimento, como se nos desse pedra em vez de pão.

Pensei em ir à secretaria, avisá-los acerca da bolsa, sem me dar conta de que era domingo, no momento em que ouvi gritos vindos da rua. Encaminhei-me ao pórtico e, apoiando-me na pilastra, ainda pude ver quando a moto, saindo do bar, seguiu em disparada na direção deles. O garupa usava touca ninja, com a arma em punho;       Fernanda, que estava de costas, mal percebeu quando ele a pegou pelo pescoço, chutando o carrinho, enquanto o outro criminoso rendia Sérgio, xingando-o e dando-lhe coronhadas, para depois arrancar-lhe da mão a chave do carro. Passou ao lado dela, que estava no chão, pegou os gêmeos e os levou. O garupa seguiu-o com a moto.

Ele recuou para o canteiro e não se moveu; ela estava sentada no meio-fio, em prantos, cobrindo o rosto com as mãos.

Voltei à nave com muita dificuldade. Tremendo, não sentia o chão aos meus pés. Ainda assim, andei a passos largos de volta aos bancos. Sentei-me e, no altar, enxerguei vultos ao lado do sacrário. Na Catedral, que momentos antes estava vazia, vi dois homens de branco carregando a pia batismal, que estava com uma rachadura que a dividia. Passaram por mim, como se me ignorassem, olhando para o teto. Andavam com uma leveza indescritível, como se deslizassem, e cheiravam a rosas. Pararam em frente aos vitrais da nave lateral, persignaram-se e desapareceram.

Virei-me para o lado e percebi que a bolsa estava bem perto de mim, com todos os objetos dentro, como se eu os arrumasse naquele instante, com cada coisa em seu lugar.