O Retrato de Anna Kariênina 

– por Lucas Petry Bender

Ao contrário do que se costuma pensar, o leitor experiente inveja o leitor inexperiente; é que este ainda tem pela frente numerosos universos a descobrir, tantos prazeres incalculáveis a experimentar, todo um caminho fascinante a percorrer entre os maiores clássicos, enquanto aquele lida com a nostalgia do tempo perdido e vacila diante da impressão de que a vida nunca voltará a ser tão generosa. Por outro lado, sabe-se que um verdadeiro clássico é redescoberto a cada releitura e que a sua voz nunca cessa de soar, sempre igual e sempre nova. 

Todas as histórias de amor são parecidas, mas as histórias tolstoianas são de amor a modo próprio. Ler ou reler Anna Kariênina (publicado originalmente em 1878, aqui citado na edição de 2021 da Editora 34, traduzida por Irineu Franco Perpetuo) é uma dessas grandes descobertas da vida, e embora muito já tenha sido dito a respeito, é sempre possível renovar o entusiasmo diante de um clássico dessa magnitude.

Para além de todos os conhecidos méritos artísticos, psicológicos, morais e históricos do romance, o que talvez ainda não tenha sido devidamente enfatizado é a “profundidade de imaginação, a capacidade espiritual graças à qual as noções suscitadas pela imaginação se tornam tão reais que exigem correspondência com outras noções, e com a realidade”, como diz o narrador sobre o que inexiste em Aleksei Aleksândrovitch, marido de Anna – uma qualidade que remete para a relação da arte e especialmente da ficção com a realidade, culminando no encontro entre Anna e Lióvin.

SONHO DA VIDA

O panorama inicial apresenta uma rede de tensões morais tecida a partir de esmerada construção de personagens: Stepan, caloroso e afável, cuja traição conjugal vulgar surge como emblema de uma filosofia de vida baseada na satisfação dos desejos; Lióvin e sua idealização da vida no campo, repelindo a vulgaridade que acredita ser da cultura urbana, mais do que dos indivíduos, porém enredado na paixão por Kitty, jovem e cobiçada dama da alta sociedade; Vrônski, como aparente possibilidade de uma juventude virtuosa, esbelta, próspera e disciplinada, contudo entorpecida a ponto de propor casamento apenas por vaidade; Nikolai e seu ímpeto revolucionário que almeja consertar o mundo, entretanto incapaz de cuidar de si mesmo; a encantadora Anna Kariênina, ora vítima, ora dínamo do turbilhão do destino.

À medida que o romance se desenvolve e os personagens ganham profundidade (sobretudo as figuras femininas), as contradições e tensões se transformam, os papéis parecem se inverter em certos aspectos e circunstâncias, e a atmosfera mesma do romance vai absorvendo os fluxos dos desejos e dos sonhos dos personagens, transcendendo os dilemas morais e as caracterizações psicológicas.

Após narrar um sonho de prazer delirante de Stepan com “garrafinhas-mulheres”, por exemplo, Tolstói contrapõe a falta de perspectiva do personagem que não sabe o que fazer para reconquistar a confiança da esposa traída:

Não havia resposta além daquela que a vida dá às questões mais complicadas e insolúveis. A resposta é: devem-se viver os pormenores do dia, ou seja, esquecer. Esquecer-se no sonho já não era possível; pelo menos até a noite, não dava para voltar para a música cantada pelas garrafinhas-mulheres; em consequência, era preciso se esquecer no sonho da vida.” (pág. 30)

Em seguida, a mera descrição da rotina de Stepan adquire uma densidade invulgar, em que a trivialidade dos atos humanos e a banalidade da vida material já não se reduzem a tanto, mas surgem como imagens do “sonho da vida”:

Depois de se vestir, Stepan Arkáditch borrifou perfume, ajustou os punhos da camisa, distribuiu pelos bolsos, com movimentos costumeiros, papirossas, carteira, fósforos, o relógio com duas correntes e berloque e, sacudindo o lenço, sentindo-se limpo, cheiroso e fisicamente alegre, apesar de sua desgraça, partiu, com ambas as pernas ligeiramente trêmulas, para a sala de jantar, onde já o esperava o café e, ao lado do café, cartas e papéis da repartição.” (pág. 32)

Seja impregnando parágrafos aparentemente banais como esse com a aura do “sonho da vida”, seja transmitindo exaltadas sensações oriundas dos desejos e sonhos dos personagens – são recorrentes as expressões do tipo “como se estivesse num sonho” -, Tolstói envolve o leitor numa atmosfera em que a plenitude do realismo expressa algo de ilusório, de ambíguo, de incerto, sem prejuízo da exatidão das suas descrições e da potência da expressão – como, por exemplo, nas descrições anatômicas da égua pertencente a Vrônski e do acidente que a vitima, sugerindo tanto a sensualidade carnal quanto o caráter funesto da relação com sua amante Anna; ou quando uma reflexão interior se funde à descrição de uma paisagem exterior, em que a realidade parece se dissolver e reagrupar-se em pigmentos impressionistas:

Por acaso a juventude não era aquele sentimento que experimentava agora, quando, ao voltar a assomar na orla do bosque, vindo do outro lado, viu, à luz cintilante dos raios oblíquos do sol, a figura graciosa de Várienka, de vestido amarelo e cestinha, caminhando a passos leves entre os troncos das bétulas velhas, e quando essa impressão da visão de Várienka fundiu-se com a visão dos campos amarelados de aveia banhados pelos raios oblíquos de sol, que o espantava por sua beleza e, detrás do campo, com o bosque distante, salpicado de amarelo, desfazendo-se no horizonte azul? Seu coração se apertou de contentamento. Uma sensação de ternura se apossou dele. Sentiu que tinha decidido.” (pág. 593)

Dentre os diversos modos de estranhamento com que Tolstói expressa o sonho da vida, nenhum é tão impressionante quanto a narração do parto de Kitty, com o mistério aflitivo e avassalador de algo tão visceralmente ligado à natureza biológica e simultaneamente tão sublime e transcendental; o magnífico conjunto de dez páginas (735-744) passa por todo o espectro de emoções, do humor ao terror (sempre sob o ponto de vista de Lióvin, o pai), trazendo à luz o ato mais misterioso do espetáculo do sonho da vida (seja na ficção, seja na realidade): o nascimento de um novo personagem.

Não o mero registro mais ou menos preciso para fins de construção da narrativa e da caracterização dos personagens, mas o ato mesmo de captar a vida por trás das coisas e de vislumbrar através da camada insuspeita que reveste a realidade com um véu de ficção – nas mãos de Tolstói, a literatura cumpre com excelência sua vocação mais fascinante e desafiadora.

DETRÁS DO ESPELHO

É aparentemente um tanto arbitrário o título do romance, considerando a presença igualmente importante de outros personagens, sobretudo de Lióvin, personagem central embora muito indiretamente ligado a Anna, e que tudo leva a crer ser o alter ego do autor. Lióvin, contudo, não demonstra nenhum interesse pela arte e pela literatura de ficção (lê apenas estudos socioeconômicos e filosofia). Que o possivelmente maior ficcionista que já existiu crie um alter ego desprovido de interesse artístico, e que o encontro entre os dois principais personagens, Lióvin e Anna Kariênina, ocorra de modo tardio e destacado, são elementos reveladores não somente desse romance em específico, mas da arte da ficção de modo geral e da estética de Tolstói em particular.

Em diversos momentos do romance, Lióvin se depara com aporias existenciais que trazem à tona a angustiante pergunta que nunca deixa de soar ao longo de toda a obra ficcional de Tolstói: para que viver? Ora esgota-se o sentido intelectual da existência, ora o sentido pragmático, e o leitor que está dedicando horas e mais horas da sua vida à leitura atenta de Anna Kariênina não pode deixar de se perguntar qual o sentido de uma existência que despreza ou ignora a arte, “a coisa mais próxima da vida” (na célebre definição de George Eliot).

O desconcerto do leitor diante desse alter ego tolstoiano que desconhece a dimensão estética torna-se palpável quando finalmente ocorre o encontro entre os dois personagens principais, preludiado por uma pintura retratando Anna, que provoca o inédito assombro de Liovín diante da arte:

Percorrendo a pequena sala de jantar com paredes escuras de madeira, Stepan Arkáditch e Lióvin entraram caminhando pelo tapete macio no gabinete em penumbra, iluminado apenas pela lâmpada de um grande abajur escuro. Uma outra lâmpada com refrator ardia na parede, iluminando um grande retrato feminino de corpo inteiro, no qual Lióvin prestou atenção a contragosto. Era o retrato de Anna, feito na Itália por Mikháilov. Enquanto Stepan Arkáditch passou por trás do espelho de três faces e a voz masculina que falava silenciou, Lióvin olhou para o retrato, que se destacava da moldura com a iluminação brilhante, e não conseguiu desviar o rosto dele. Até se esqueceu de onde estava e, sem ouvir o que era dito, não tirava os olhos do retrato impressionante. Não era um quadro, mas uma mulher viva e fascinante, de cabelos negros encaracolados, ombros e braços nus e um meio sorriso pensativo nos lábios cobertos de uma suave penugem, fitando-o de forma triunfante e meiga com olhos desconcertantes. Só não era viva porque era mais bela do que uma mulher viva poderia ser.

“- Muito prazer – soou, de repente, perto de si, uma voz que, pelo visto, era dirigida a ele, a voz da mesma mulher que admirava no retrato. Anna saiu de trás do espelho de três faces em sua direção, e Lióvin avistou, na penumbra do gabinete, aquela mesma mulher, de vestido escuro, de vários tons de azul, nem na mesma posição, nem com a mesma expressão, mas com a mesma beleza elevada em que fora capturada pelo pintor no retrato. Era menos reluzente na realidade, porém a versão viva tinha atrativos novos, que não havia no retrato.” (pág. 724-725)

A longa citação se faz necessária para enfatizar a importância fundamental desse encontro e de seus elementos essenciais: a expectativa, o silenciar, a contemplação, o esquecer-se de si, o jogo de espelhos, a voz que surge não se sabe de onde, a penumbra.

A conversa entre eles flui naturalmente, a ponto de Lióvin sentir-se liberado de suas angústias permanentes:

Acompanhando a conversa interessante, Lióvin admirava-a o tempo todo – sua beleza, inteligência, cultura e, junto com isso, sua simplicidade e sinceridade. Ouvia, falava, e o tempo todo pensava nela, em sua vida interior, tentando adivinhar seus pensamentos. E, embora antes a condenasse com tamanha severidade, agora, devido a alguma cadeia estranha de ideias, justificava-a e, ao mesmo tempo, compadecia-se e temia que Vrônski não a entendesse por inteiro. (…) – Adeus – ela lhe disse, segurando-o pela mão e fitando-o nos olhos com um olhar atraente. – Fico muito contente que la glace est rompue [o gelo tenha se rompido, em francês no original].” (pág. 729)

Não estará aí o coração desse romance estupendo? Será esse encontro de Lióvin, primeiro com o retrato de Anna, em seguida com a própria, uma expressão do encontro de um realista e teórico com a arte e a ficção, com a potência da imaginação, com a ilusão da vida, com o jogo de espelhos da realidade? 

Narrativamente, o ápice do romance se dá na descoberta existencial final de Lióvin, expressada por meio de uma metáfora da insuficiência dos conceitos e do intelecto diante da realidade implacável – “e Lióvin de repente sentiu-se na situação de uma pessoa que tivesse trocado um sobretudo quente por uma roupa de musselina e que, pela primeira vez, no frio, era convencida indubitavelmente, não pelo raciocínio, mas por todo o seu ser, que era como se estivesse nua, e que devia perecer de forma inevitável e dolorosa.” (pág. 816)

O prévio encontro de Lióvin com Anna Kariênina sugere que a personagem-título encarna tudo o que a arte da ficção significa para o autor e para os leitores: nem o escasso vestido de musselina, nem o pesado sobretudo de inverno, mas um invólucro que se faz presente mesmo ter substância; que não protege contra o frio nem alivia o calor, mas que assimila a temperatura à imaginação; que não ajuda a viver ou a escapar da vida, mas que cria um espaço interior que capta os reflexos da realidade; que não oferece solução prática ou intelectual para as aporias da existência, mas que é a aporia mesma tornada tangível, viva, personificada.

Se assim for, intitular o romance com o nome de Anna Kariênina é homenagear sobretudo a dimensão da arte ficcional e da estética, transcendendo as qualidades de romance social, de panorama histórico, de retrato de costumes e de caracterização psicológica (intuição que se faz notar também na adaptação para o cinema dirigida por Joe Wright em 2012, com sua exposição dos bastidores teatrais, dos mecanismos ilusórios e dos jogos de cena).

AVESSO DA VIDA

Não por acaso, o momento derradeiro de Anna é descrito com uma metáfora explicitamente literária: “E a vela sob cuja luz ela tinha lido aquele livro repleto de aflições, enganos, pesares e mal, ardeu com mais intensidade que nunca, iluminando tudo o que antes estava nas trevas, depois crepitou, começou a se apagar e se extinguiu para sempre.” (pág. 795)

A morte de Anna deixa o leitor estupefato, mas a narrativa prossegue de imediato com discussões éticas sobre a guerra sérvia e a questão eslava. Por um lado, acentua-se assim o alheamento de Anna dos assuntos de mais amplo interesse social e político; por outro lado, soa vazia e leviana a preocupação humanitária diante da sua tragédia pessoal e concreta. Somos levados a pensar, assim, que a insubmissão de Anna e a sua sede de vida diante dos constrangimentos sociais e do status quo têm impacto muito mais significativo no âmbito dos hábitos mentais e das formas de expressão da imaginação, do que nas relações de poder ou hierarquias sociais, que seguem suas marchas incólumes diante de tragédias pessoais.

Se um dos predicados da ficção é dar forma ao que ficaria informe como pensamento solitário e inarticulado, Anna Kariênina é um romance exemplar quanto à ambiguidade da voz que se faz ouvir na consciência, com o que possa ter de iludida, incoerente, alienada e acabrunhante, como também de indutora do sonho da vida, com sua exploração ousada e revigorante de regiões abscônditas do coração e da alma humanos, e dínamo de certa liberdade, sobretudo urbana.

Seja no estranhamento diante do próprio reflexo – “Quem é essa? – pensou, ao ver no espelho o rosto inflamado, com olhos de um brilho estranho, que a fitavam assustada”; seja no teatro da vida, em que “os papéis, de repente, estavam trocados”; seja no cinema da mente, em que “as mais estranhas imagens, lembranças e ideias seguiam-se umas às outras, com clareza e rapidez extraordinárias”; é na arte do romance que Tolstói encontra a forma de expressão mais completa do espírito do homem moderno, lançando mão inclusive de um monólogo interior precursor, marco de um aprofundamento das técnicas de expressão ficcionais.

Se na ilusão da vida o universo se mostra tão lúdico quanto implacável, obrigando-nos a buscar uma âncora no senso moral, é na ficção que podemos explorar esse paradoxo com plena liberdade. Nos últimos anos de vida, entretanto, Tolstói parece ter perdido de vista a ilusão da vida e rejeitado essa liberdade, vide o moralismo ideológico de O Que É Arte? (ed. Nova Fronteira, 2016, trad. Bete Torii, concluído em 1898). Embora sejam válidos e lúcidos os diagnósticos dos descaminhos do academicismo, do artificialismo, da banalidade e da vulgaridade da arte, dentre outros vícios, a tacanha ingenuidade dos prognósticos do autor demonstra que o vislumbre do século XX o horrorizou a ponto de cegá-lo quanto ao valor da sua própria obra precedente, advogando uma arte que contivesse “somente aqueles sentimentos que atraem as pessoas em direção à união”, “acessível a todos”, com o objetivo de “transferir a consciência religiosa cristã do campo da mente e da razão para o campo do sentimento” (pág. 198-199). Contra a tirania moralista do autor, poderíamos parodiá-lo dizendo que ser infeliz à nossa maneira é melhor do que ser feliz por cartilha.

A mais abrangente conquista da literatura de ficção talvez seja a expressão da consciência do sonho da vida, como se a realidade se mostrasse pelo avesso. “Não há nada de ‘modernista’, ‘pós-modernista’ ou minimamente avant-garde nisso”, explica Philip Roth, “estamos escrevendo versões inventadas de nossa vida o tempo todo, histórias contraditórias porém mutuamente entrelaçadas, histórias que, falsificadas de forma sutil ou grosseira, constituem nosso domínio sobre a realidade e são a coisa que temos mais próxima da verdade.” (Por Que Escrever?, ed. Companhia das Letras, 2022, trad. Jorio Dauster, pág. 237)

Tolstói produziu o que há de melhor e de pior nessa perspectiva (vide, por exemplo, seus Contos Completos, indo dos excelentes textos da fase inicial da carreira, sobretudo até 1857, aos enfadonhos contos didáticos e populares). Diante da soberba vitalidade de Anna Kariênina, espantou-se e a renegou – tarde demais, para nossa sorte: seguimos sob a égide dessa mulher que nunca existiu e que está sempre vivendo e morrendo conosco, surgindo por trás dos espelhos, resplandecendo na penumbra, tão real quanto os nossos mais vivos sofrimentos, tão autêntica quanto as nossas mais obstinadas esperanças, tão verdadeira quanto um retrato na antessala da realidade.