Pedaços de Eternidade: André Bazin e o Realismo no Cinema e na Arte

– por Victor Bruno


André Bazin (1918−1958) permanece sendo o ponto de início da crítica de cinema — ou pelo menos da crítica de cinema como é tradicionalmente entendida no Brasil. Creio que isso seja um fato, pois, mesmo quando a discussão não passa pelo seu nome, Bazin é uma prerrogativa implícita.

É que no Brasil não temos — ou pelo menos não temos em grande quantidade — o problema da Grand Theory, que, conforme definida pelo professor David Bordwell, é a subordinação da arte cinematográfica a outras disciplinas das ciências humanas, especialmente aquelas engajadas em discursos revolucionários. Bazin, portanto, é um problema nos Estados Unidos. Mas não é apenas lá onde a citação do nome de Bazin é problemática. O mesmo ocorre na França. Após indubitavelmente coroar o cinema como uma forma válida de arte, seu nome conheceu no final dos anos 60 a rejeição e o ostracismo. Primeiro na França, depois na Inglaterra e nos Estados Unidos, sua visão de que o cinema tem a vocação natural ao realismo por meio da objetividade da gravação mecânica da realidade pegou a estampa de ser, no melhor dos casos, “ingênua”. Bazin não era político; era metafísico demais e não perdia tempo com ideologias, discursos de classe etc. etc. etc. No fundo, era um conservador. Gravar e reproduzir a realidade sem subjetividade? Yo no creo.

O realismo é a vocação natural das artes

Mas será que o realismo de Bazin estava mesmo tão fora da curva? Vamos ver.

Ainda hoje se crê que, para Bazin, o realismo no cinema pode ser resumido pela seguinte equação: plano-seqüência + grande profundidade de campo = realismo. Mas é mais que evidente, para quem ler seus textos, que a questão não é tão simples. Por exemplo, ele escreve que o realismo “é antes de tudo um tipo de humanismo” (“Evolução da linguagem cinematográfica”), e também que “não há apenas um, mas muitos tipos de realismo” (“William Wyler; ou, O jansenista da mise en scéne”). De maneira mais delineada, em seu livrinho sobre Jean Renoir, Bazin escreveu: “O movimento em direção ao real pode tomar milhares de caminhos diferentes. A apologia pelo realismo per se, de maneira estrita, não significa nada”. Como se vê, estamos falando de alguém que por mais que mantenha uma visão preferencial sobre o realismo na arte, não determinou uma visão final.

Mas é exatamente essa falta visão final o problema do pensamento baziniano, e não a sua visão de que a fotografia permite a perfeita reprodução do mundo corpóreo, muito menos as as suas visões “estéticas” ou sua falta de “engajamento político”. Não, nada disso. O problema de verdade está na falta de um “ponto de virada” na trama do seu pensamento. Ao limitar-se a dizer que o cinema tem uma pendência ao realismo e que certos diretores, de certas maneiras, conseguem conjurar o realismo na tela, porém sem dizer exatamente que tipo de realismo é esse que estamos procurando, Bazin abre a porta para uma apreciação meramente estética do cinema. E a “estética” (que etimologicamente não é nada além de uma “reação superficial” a um impulso visual, assim como uma alergia é uma reação a algo tátil) foi um dos grandes males da arte no século passado e permanece sendo mesmo agora, na alvorada do terceiro milênio. Como mais de um autor apontou, Bazin se limita a uma visão “impressionista” da teoria do cinema. [1]

Por outro lado, ao dizer que o cinema tem a vocação natural para o realismo, Bazin não faz senão repetir uma visão profundamente tradicional acerca da arte como um todo. Todas as artes em todas as civilizações se propuseram a retratar a realidade. Mas façamos agora a pergunta que Bazin não fez: Que realidade é essa? Seria ela a realidade meramente corpórea? Adianto a resposta: Não.

O tempo fora do tempo

Toda obra de arte tem apenas um sentido: o de revelar uma substância, e isso no sentido etimológico da palavra: sub-stantia, aquilo que se encontra por baixo. Sto. Anselmo diz: “Há portanto aquilo que se chama essência, ou substância ou natureza; e essa é a melhor e mais grandiosa das coisas; de tudo que há, é a suprema” (Monologion, iii). A substância de uma obra de arte é também sua ideia, no sentido tradicional de eidos; uma imagem que se fixa na cabeça do artista. Isto quer dizer, um paradigma, um momento original que jaz fora do tempo e que guia o artista na feitura da sua arte. Toda e qualquer arte que existiu nos períodos históricos tradicionais se pautou por este princípio: a repetição de um paradigma.

Por quê? Porque a repetição do paradigma, do gesto original, redime o tempo. Imitar um gesto perfeito já é estar na perfeição e a perfeição ressoa através dos séculos. Evidentemente, não existe perfeição no mundo natural; daí a nossa necessidade (ou a nossa “obsessão”, como dizia Bazin com seu palavreado psicologizante, tipicamente francês) de reproduzir aquilo que há de mais essencial na natureza. Daí a nossa necessidade de descrever o divino, o essencial, o absolutamente real. Se este palavrório soa metafísico demais para o leitor, é porque o é: arte é metafísica e toda obra de arte que mereça o nome tem dimensões metafísicas. Tal percepção jamais escapou às civilizações tradicionais, que corretamente chamavam o bem viver de “arte de viver”, e que punham na mesma balança o agir pessoal e o fazer artístico, deixando implícito que todo homem é um tipo de artista. Todo ato é uma arte e todo ato tem uma ressonância universal.

Sendo assim, quanto mais próxima da essência a arte estiver, mais próximo da eternidade viverá o homem. Dessa maneira, não surpreende que as civilizações mais tradicionais se voltem quase que completamente para a religião e nem que as origens das artes visuais e plásticas sejam religiosas. Bazin, na “Ontologia da imagem fotográfica”, assinala que as origens da escultura estão no Egito Antigo, nas estatuetas que representavam o cadáver no fundo do sarcófago; eis aí nosso desejo de pular para fora do relógio e eternizar uma imagem. Penso que, talvez, historicamente, o exemplo de Bazin não esteja lá muito correto, mas não é isso o que importa; o que importa é que ele está substancialmente certo. “A natureza humana nada tem a ver com o tempo”, diz Ananda K. Coomaraswamy. Houve civilizações que ignoraram a história por completo, como é o caso dos hindus; mesmo nós, ocidentais, ainda tratávamos a Batalha de Isso, sucedida em 333 a.C., como história recente, já no século XVI.

Se as artes visuais nada têm a ver com a realidade corporal, mas, antes, com uma objetividade substancial, então a naturalização dessas artes depõe contra os seus princípios. Mais que isso, solapa inteiramente a sua própria razão de ser. A reprodução da naturalidade, nesse sentido, não se iguala à reprodução da realidade na tela do pintor, no mármore do escultor e nem na câmera do cineasta. Prova disso é que o retorno da perspectiva nas artes, sabiamente rejeitada por quase todas as civilizações tradicionais do mundo, joga a arte ocidental numa crise da qual ainda não se recuperou. A perspectiva implica subjetividade; subjetividade implica tempo; e tempo implica ilusão: em vez de imitar os paradigmas eternos (tornando-nos, por consequência, objetivamente eternos), imitamos a transitoriedade da vida corpórea. O próprio Bazin dizia que “a perspectiva é o pecado original da arte ocidental”, e ele estava montado na razão ao dizê-lo.

(Claro, o leitor pode argumentar: Mas mesmo as artes tradicionais, moduladas nos princípios que você propõe, pertencem ao tempo e portanto também não seriam transitórias? A resposta é: Sim; mas a arte tradicional não é um fim em si mesma — como é o caso da arte moderna, — mas apenas um meio que visa atingir um fim; ou por outra, uma utilidade. Como Platão diz no Mênon, um bom homem é um homem útil e uma boa arte é uma arte útil; se a civilização deixou de existir, a arte no sentido originário perde o propósito. Se ainda há alguma utilidade para ela, será somente “estética” . É por isso que o excelente arquiteto Léon Krier defende que se não for para tornar as ruínas de Atenas úteis de novo, era melhor derrubá-las. Todavia, a arte da antiguidade tem também certo sentido educativo, e pode nos ensinar como se faz arte verdadeira.)

Arte e espírito

Se as artes acham suas origens na religião, isso implica dizer que equivalem a exercícios espirituais. Por extensão, isso também significa dizer que são exercícios intelectuais, uma vez que a palavra grega “nous” (intelecto) significa “spiritus” em latim. Assim, arte é muito mais do que uma boa imitação da temporalidade, é muito mais que belos efeitos de luz ou grandes lances cromáticos — coisas essas que podem esconder simplesmente uma falta de tato ou de referencial com a realidade. A realidade é algo infinitamente superior à matéria que, mais cedo ou mais tarde, há de deteriorar-se. Portanto, a arte também tem a ver com uma educação: uma educação do fazer, do lado do artista, e do olhar e do entender, da parte do consumidor.

Talvez aqui entendamos aquilo que Bazin se recusou a explicitar. Talvez por viver num século em que a metafísica foi rejeitada (recordemos que n’O Que É Metafísica?, Heidegger abre o livro dizendo “Não falaremos de metafísica”) ou que a capacidade de fazer voos imaginativos por meio do vídeo e do áudio lhe ofuscaram a visão, e lhe levou àquele “impressionismo”, àquela intuição de que a arte tem algo a ver com a realidade, mas sem conseguir, contudo, determinar o porquê. Mas vejam que coisa curiosa: mesmo vivendo na waste land do século XX e mesmo vivendo na Paris de poucas décadas antes do parto da pós-modernidade, um crítico conseguiu apreender o sentido e a ideia tradicional da arte. A realidade fala mesmo quando tentamos calá-la.

Isso não pode ser ignorado. Qualquer discussão séria sobre arte e sobre cinema têm de passar necessariamente pelas prerrogativas da tradição: intelecto, eternidade, paradigma. Não porque sejam tradicionais, mas sim porque elas são a essência mesma, a própria natureza do fazer artístico. Elas pavimentam o caminho para o diálogo entre os seres, porque a essência é comum a todas as artes e a todas as almas. Elas são a única possibilidade de um diálogo comum e básico entre os homens — e isso é muito maior do que o deleite estético ou do que o culto à obscuridade. E evidentemente o cinema, como arte, está integrado nessas teorias.

Não fosse essa integração, a famosa história que James Stewart contou a Peter Bogdanovich seria impossível. Recordemos o causo para encerrar o ensaio. Filmando uma fita no deserto do Arizona, um senhor aproximou-se do ator e travou o seguinte diálogo:

— O senhor é James Stewart?

— Sim, respondeu.

— O senhor recitou uns versos de Shakespeare num filme uma vez. Achei muito bom.

E foi embora.

— Aquele senhor viu uma fita minha de 20 anos antes e ainda se lembrava daqueles versos — disse Stewart a Bogdanovich, refletindo. — Essa cena dura um tempo mínimo, não tem mais que trinta segundos no filme, mas ele ainda se lembrava dela, depois de todos esses anos. Creio, Peter, que é isso o que fazemos neste ramo: nós entregamos pedacinhos de tempo para as pessoas recordarem.

Da conclusão de Stewart, eu só mudaria uma coisa: cinema e arte entregam pedaços de eternidade para as pessoas, não de tempo.




Nota:[1] E aqui limito a crítica a Bazin. Uma relação mais exaustiva dos efeitos desse aspecto “deprimido” do pensamento baziniano está para além das intenções deste breve ensaio. Porém talvez convenha dizer que mesmo décadas depois da morte de André Bazin, o setor da crítica mais apegada ao seu pensamento (nominalmente, macmahonismo e o “cahierismo” anglo-americano representado por Andrew Sarris, V. F. Perkins, Ian Christie, por Peter Wollen no início da carreira, entre outros) não superou esse impressionismo, transformando-o num sentimentalismo ancilar ao culto do “autor”. Um bom exemplo seria a crítica de André S. Labarthe sobre Johnny Guitar (1954) na Présence du cinéma (nos. 2−3, 1959, pp. 95−6), que começa com uma crítica ao “barroco” para render-se ao barroquismo da fita de Nicholas Ray pelo simples fato de ser agradável ao gosto macmahonista. Justamente por causa disso, coisas ainda piores como a “semiótica” ou a crítica de cinema se mostraram tão tentadoras no período pós-baziniano.