A transgressão como símbolo da ação divina

por Matheus Bazzo

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Em uma cena brilhante de “Black Coal Thin Ice”, o diretor chinês Diao Yinan mostra uma passagem de tempo através de um recurso cinematográfico surpreendente. No momento em que o filme pula cinco anos em sua narrativa, o diretor opta por mostrar essa mudança de tempo apresentando os personagens atravessando um túnel em seu carro. Ao passar por ali, há uma alteração climática (antes, estavam no verão; e, agora, o chão está coberto de neve), e eles veem um acidente de moto do outro lado. O homem acidentado é o mesmo homem que está no carro. O espectador é impactado com um salto de tempo inesperado e apresentado de forma brilhante.

Há muitos outros momentos no cinema — e nas artes de maneira geral — que nos colocam diante da surpresa. E essa é uma reação que todos nós adoramos. Ela começa com um estranhamento frente a alguma coisa, depois passa por uma aceitação do fato e, então, nos mostra o sentido por trás do acontecimento surpreendente. No caso da obra mencionada, estranhamos a mudança climática e o acidente de moto. Porém, aceitamos tudo isso, pois faz parte da narrativa, até que somos surpreendidos com o evidente salto no tempo. Isso nos gera uma sensação de satisfação. Afinal, aquele estranhamento inicial não foi em vão: houve um sentido para o evento surpreendente

Esse tipo de sentimento só é possível quando o artista ou o comunicador deseja inovar em sua linguagem artística. Não é possível que haja surpresa se todos os artistas seguirem estritamente regras preestabelecidas para suas criações. Assim como não é possível haver surpresa sem que haja um padrão de comportamento para ser quebrado.

Essa dinâmica entre padronização e transgressão é a tensão onde a arte transita. A arte não pode ter regras normativas estritas, porque isso faria toda inovação impossível. A novidade é o motor da arte: ninguém cria algo sem ter o desejo de criar algo novo. Isso porque o impulso espiritual do artista é uma repetição do chamado do Espírito Criador. 

São João Paulo II explica brilhantemente essa participação do artista no ato criador em sua Carta aos Artistas:

“Na criação artística, mais do que em qualquer outra actividade, o homem revela-se como imagem de Deus, e realiza aquela tarefa, em primeiro lugar plasmando a matéria estupenda da sua humanidade e depois exercendo um domínio criativo sobre o universo que o circunda. Com amorosa condescendência, o Artista divino transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o a partilhar do seu poder criador”.

A satisfação pela inovação é também a proteção da arte contra sua instrumentalização política e ideológica. O artista precisa ter a vontade de criar pela simples vontade de criar — sem a necessidade de subordinar a criação artística a um projeto de poder. 

Quando um artista rompe com os padrões da linguagem artística, ele nos coloca em estado de questionamento e suspensão. Essa suspensão é arrebatada por um choque de sentido. Em um primeiro momento, não entendemos o que está acontecendo para, logo após, compreendermos que aquela surpresa estava encaixada em um todo. 

Essa experiência da inovação é uma vivência microcósmica da Providência. Quando a ação divina interfere em nossa vida, nós vivemos essa experiência da surpresa de maneira mais intensa e real. É o mesmo processo: em um primeiro momento, somos surpreendidos e, depois, — ao olhar os acontecimentos em seu sentido sobrenatural —, percebemos que nossa vida estava sendo conduzida pela Providência.

Se a Providência seguisse regras padronizadas para interferir em nossas vidas, jamais ficaríamos surpresos. Jamais sentiríamos o espanto e o vislumbre que o grande Artista está querendo causar em nossa vida. O espanto necessário para nos tirar do solo e nos apresentar o plano de ação de Deus — que é sempre superior ao nosso plano.

Por isso, é necessário que artistas e criadores mantenham-se fiéis à sua intuição e transgridam a linguagem artística quando necessário. Nós precisamos da surpresa da arte para nos ensinar a captar a surpresa da vida quando ela surgir.

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