A Menina do Corpete Rosa – por Matheus Bensabat

Só o passado verdadeiramente nos pertence.
O presente… O presente não existe:
Le moment où je parle est déjà loin de moi.
O futuro diz o povo que a Deus pertence.
A Deus… Ora, adeus!

(Manuel Bandeira)

1

Ainda me lembro do dia em que folheei pela primeira vez as páginas de um livro cuja capa desfazia-se em resíduos vermelhos — era a tinta que se desprendia do tecido, manchando minhas mãos. À época, eu tinha treze anos, a vida era mais simples e o tempo parecia alongar-se indefinidamente.

Hoje, ao vê-lo em um sebo, julguei tratar-se de um volume sem importância, que não sem motivo estava lá, entre outros livros, à espera de que alguém o lesse, o que me pareceu impossível.

Demorei um pouco para reconhecê-lo, até que, ao procurar pelas ilustrações, abri-o na página trinta e cinco — e lá estava o imponente e escasso mobiliário do início do século passado, uma menina deitada ao lado de um rapaz que, com a mão na testa, olhava atentamente para as velas no castiçal. Sofria de alguma doença e o lençol mal cobria-lhe o corpo.

Lembro-me de que eu era quem cuidava dos preparativos para a mudança, mas Luísa tomou a frente ao convencer-me de que tinha mais experiência nesse tipo de coisa. Ela encarregou-se de tudo e não me surpreende que se tenha desfeito das minhas coisas sem a minha permissão.

Virei-me para a atendente, que varria o corredor.

— Quanto custa este livro?

— Dez reais. 

— Vou levar. 

Fomos para o caixa. Apesar da aparência de abandono, das paredes com marcas de infiltração e das estantes corroídas em alguns pontos, além do piso trincado, percebia-se o esforço empreendido para que o local permanecesse limpo. Pedi para que a atendente embalasse o livro com papel couchê. Ela me olhou como se me interrogasse.

— Sim… Vermelho ou branco?

— Vermelho.

— Ok. Só um minutinho, tá?

Em seguida, abaixou-se para pegar um frasco de álcool gel. 

— Não, por favor!

Deixou-o sobre a mesa e me olhou.

— Que foi?

— Se você passar álcool na capa vai desbotá-la ainda mais. Por favor…

Ela resmungou qualquer coisa e entrou por uma portinhola que dava para o interior do sebo, onde era possível ver uma geladeira velha e alguns panos pendurados num varal de chão, ao lado de um sofá. A porta separava o estabelecimento de uma espécie de albergaria que funcionava nos fundos do edifício. No alto, pôsteres de David Bowie, Lady Gaga e Madonna ficavam ao lado de uma imagem de Pio X. 

Minutos depois, a atendente voltou com um espanador. 

— Vou passar para tirar a poeira, pelo menos. — E olhou-me como se me achasse sujo.

Ela abriu a capa e passou o espanador na folha de rosto, na lombada, nos cortes laterais e superiores. Depois, passou-o sobre as primeiras páginas. 

Começava a impacientar-me. 

— Já está bom, moça. Já está bom.

Embrulhou-o e colocou-o numa sacola transparente. 

— Muito obrigado.

— Tá.

2

O sebo pertence à galeria térrea de um velho edifício do centro do Rio de Janeiro, construído na reforma de Pereira Passos. No corredor principal, perto da entrada, fica um estúdio de balé, e em frente à porta envidraçada, um banco, no qual me sentei. Na cabine, a pianista tocava Schubert enquanto as meninas dançavam; o professor segurava uma aluna pela perna, ensinando-a o frappé. As demais, talvez iniciantes, olhavam para os dois, apoiadas no corrimão. Na porta do camarim, uma outra menina, de corpete rosa, amarrava a sapatilha da amiga, pressionando-lhe a gáspea. Segundos depois, deu-lhe a mão e as duas foram para a fila que começava a se formar em frente ao espelho. Preparavam-se para o ensaio principal.

A Luísa provavelmente se desfez de outros livros, e eu me senti mal por não lembrar quais poderiam ter tido o mesmo destino. Há um bom tempo eu já não tinha mais vontade de ler, a leitura que era uma das minhas principais atividades na adolescência. Troquei os livros por revistas cujos editoriais eram voltados quase sempre para arquitetura ou cinema. Na mesma época, criei com um amigo um blogue em que publicávamos ensaios e entrevistas — às vezes cedíamos espaço para fofocas e polêmicas, que me renderam muita dor de cabeça. 

Quando o piano começou a tocar uma outra nota, iniciando o ensaio, alguém me chamou.

— Lembra de mim?

Não reconheci a voz nem mesmo o rosto, que me pareceu muito feio. 

— Não.

— Sou eu, a Flávia — disse, sentando-se ao meu lado.

Concluíra comigo o curso de arquitetura. Fingi-me surpreso e abracei-a, tentando disfarçar o tédio. Como não nos falávamos desde a formatura, perguntei se tinha conseguido um bom emprego. Agora percebo que fui inconveniente, mas ela respondeu com naturalidade. Era sócia de um escritório em São Paulo; abririam uma filial no Rio, e por esse motivo mudou-se. Conversamos por alguns minutos, no fim dos quais ela se virou para o estúdio.

— Acompanho minha filha — disse, apontando para a menina de corpete rosa.

— Ah, ela é muito bonita… – falei.

Não era propriamente bonita, mas era alegre, o que me pareceu ser mais importante.

— Você também teve filhos?

— Não. Não pude ter.

Não queria ter. Esquivei-me como pude, mesmo com a insistência de Luísa, que queria engravidar. Tenho receio de que meus filhos me odeiem. Mas até que não seria ruim ter um filho, eu poderia dar uma boa vida à criança agora que fui promovido. 

Ela olhou para o embrulho, apoiou o braço no banco e ficou tão pensativa que parecia meditar. Rompeu o silêncio com uma pergunta:

— Você se casou?

Ela não viu a aliança? Não estava vendo a aliança? 

Talvez não tenha percebido. Uso uma aliança preta com um risco dourado que termina em uma cruz ortodoxa. Tribos indígenas guatemalenses têm por tradição usar um anel preto para que se protejam das forças do mal, que para eles vêm da natureza e que para mim é a mulher do próximo. Estive em uma dessas tribos ano passado. O guia era careca e vestia uma jaqueta de pele de onça, tinha as unhas pintadas de rosa e só falava espanhol. À puta que o pariu os índios da Guatemala, mas o anel ficou na minha cabeça. Falei com a Luísa e ela aceitou, em verdade não queria usar uma aliança comum, é um símbolo antigo e patriarcal, dizia. Sempre acho que Luísa tem razão, passei a confiar mais nela do que em mim.

— Sim, recentemente. E você?

Não respondeu. O professor pediu para que elas se reunissem ao lado da pianista, que tocava muito bem, e assim iniciaram o alegro, uma de cada vez. 

Os refletores que ficavam acima do piano acenderam-se e repentinamente tudo me pareceu tão claro que as desvendou. Quis perguntar-lhe se a filha tinha alguma deficiência, mas não tive coragem. Surpreso, notei que a menina mancava. Ela começou a desenhar círculos no ar com a perna esquerda enquanto a direita a mantinha fixa ao chão, mas desequilibrava-se, não por falta de técnica, mas por ser manca, e isso me incomodou. 

— Ela está aqui por recomendação médica, para que desenvolva a coordenação motora. 

— A minha filha teria sapatilha dourada. — Não sei porque disse isso, talvez por não saber o que dizer.

Minutos depois, a pianista passou ao violoncelo e a galeria inteira absorveu os acordes, ampliando o som até à saída. Só mesmo no Brasil uma mulher tão talentosa estaria em um estúdio tão obscuro como aquele.

Em seguida, a menina do corpete rosa deu lugar a outra menina, que completou os movimentos muito bem. Pouco tempo depois, todas elas se reuniram, iniciando o arabesque, movimento em que a bailarina cria uma linha alongada dos dedos dos pés até os dedos da mão, apoiando-se em uma das pernas.

O ensaio estava bonito, mas eu queria ir embora. Fazia muito calor. Antes de me levantar, pedi para que ela salvasse o meu número.

— Calma, espera um pouco.

Queria que eu conhecesse a filha, mas eu não sei conversar com adolescentes, não gosto de apresentações bobas. 

— Preciso ir, vou resolver umas coisas…

Ela olhou para o embrulho mais uma vez, tinha olhos estranhos, pequenos demais. A menina do corpete rosa saiu junto com as outras, mancando. Pareceu-me naturalmente alegre e simpática, possuía qualquer coisa semelhante à esperança. Quando me inclinei para pegar o embrulho que havia deixado no banco, olhei discretamente para suas pernas, depois passei a mão sobre seus cabelos. Ela sorriu, perguntou meu nome, se eu morava perto. Respondi que não, mesmo morando no bairro ao lado. Elas não sabiam, obviamente. 

Abracei-as, desejando felicidades, e segui pelo corredor em direção à saída. Eram três horas da tarde quando entrei no carro, a avenida estava engarrafada. Liguei o rádio numa estação de música eletrônica. Ao dirigir costumo ouvir a CNN, mas precisava distrair-me, tirar aquela mulher da minha cabeça, esquecer a perna da menina.

Luísa assistia a uma série. Fui até o escritório e tirei da mesa o escalímetro e o esquadro, deixando-a livre. Com uma tesoura, cortei cuidadosamente o papel couchê e fiquei olhando para o livro como se ele não existisse. 

3

Não fosse a minha evidente aptidão para o desenho, que manifestei no início da adolescência, eu não teria cursado arquitetura. Comecei desenhando os meus pais e não demorou muito para que eles percebessem a minha inclinação para assimilar e reproduzir formas. Diziam que eu tinha talento; eu não sabia o que era ter talento.

Eles me presentearam com uma prancheta articulada, semelhante a um estirador, embora muito menor. Deram-me também uma borracha cuja capa de engate era áspera e dura, um bastão argiloso, régua e compasso, os quais usei muito pouco, e lápis de várias cores e tamanhos. Com eles fiz inúmeros retratos da minha mãe. Quero posar como nos filmes de época em que a modelo fica ao lado do pintor, dizia. O seu cabelo era curto, queria deixá-lo como o da Catherine Deneuve. 

Ela estava sentada na cadeira da sala e meu pai na cadeira de recosto da varanda. Eu estava de costas para ele. 

— Nos desenhe, filho, no jardim — disse, apoiando os pés no vaso de gerânios.

Eu gostava de olhar a pena de ave que enfeitava a prancheta. Passava os cílios levemente sobre ela, depois o rosto, quando treinava a precisão dos traços.

Coloquei o cotovelo no porta-lápis e comecei a desenhá-la bem devagar. Ao terminar as linhas dos olhos, percebi como ela estava bonita apoiada sobre a mesa. Lia calmamente, como se os objetos ao seu redor não existissem.

Tracei as linhas do queixo e, em seguida, as do pescoço. Eu desenhava empunhando o lápis de forma errada, o que só fui corrigir mais tarde. Alguns traços saíram desgrenhados, eu apaguei-os, mas irritei-me ao ver que amassava o papel. Estava ansioso por saber que as provas se aproximavam.

Comecei a esboçar o cotovelo em que ela se apoiava. Usei o lápis grafite para fazer um traço longo; depois, o bastão argiloso para sombrear as linhas inferiores, delineando parte do braço. O contraste pareceu-me ruim. Recomecei, apagando-o. Toda vez que apagava um traço já feito, sentia vontade de rasgar o papel. 

Ela parecia ter esquecido que eu estava ao seu lado, tão imersa no livro. Pensei em começar a desenhar suas pernas. Olhei-as, mas quando ela as cruzou e eu vi uma mancha roxa em sua coxa esquerda. Fiquei parado, não tirava os olhos dela.

4

Tirei o uniforme e deixei a mochila no chão. Deitei na minha cama e voltei ao livro que estava lendo, após abandoná-lo por alguns dias. Em que lugar da Irlanda ficava aquela ponte, destruída como se a tivessem bombardeado, serpentes enroscadas nos cabos de aço? Em seguida, quando o autor começou a descrever navios de guerra, deixei o livro sobre a cômoda e fui para a sala. 

Meu tio nos visitava uma vez por semana. Era mais novo do que meu pai, falava muito e tinha uma falha no couro cabeludo como se fosse o gilvaz de uma punhalada. Nos traços do rosto moreno predominava a expressão dura e decidida. Não era bonito. Dia desses, mostrando uma foto dele para Luísa, pedi para que ela fosse sincera e me dissesse se ele tinha uma boa aparência — eu não consigo julgar os homens sob esse aspecto. Ela disse que não.

Meu pai estava na varanda, como sempre, mamãe e o meu tio estavam no sofá. Quando os três foram para a cozinha — abririam uma lata de doce de laranja em calda —, peguei um dos cigarros que pertenciam ao meu pai. Agachei-me ao lado do vaso de gerânios, acendi-o e traguei a fumaça rapidamente, por pouco não queimei os dedos ao tentar firmá-lo nos lábios. Foi a primeira vez que experimentei um cigarro; e tossi muito. Quando percebi que retornavam, amassei-o, pressionando-o contra a terra úmida para depois enterrá-lo. Mas o cheiro me incomodava, tive medo de que sentissem. Fui até o banheiro, escovei os dentes e lavei o rosto. 

De costas para a sala, meu pai cortava, em um prato verde com o desenho de uma aldeia — a carroça parecia trotar, e conduzindo-a, a imagem de um casal provinciano —, as cascas da laranja com as fatias de gorgonzola. 

— Pai, como se conserta uma ponte? — perguntei.

— Eu não sei.

Estirei-me ao piso, fazia muito calor. Meu tio falava apressadamente, seus gestos diziam mais do que suas frases enérgicas. Possuía um cordão de ouro com um pingente de elefante que eu achava muito feio, ele usava-o para fora da camisa. Meu pai não participava da conversa, tampouco os dois se dirigiram a ele. Não sei dizer se os meus pais se falaram naquele dia, provavelmente não.

Em determinado momento, mamãe se levantou para buscar água; o meu tio ficou em silêncio, esperando-a. Eu estava com sono, quase dormia, a semana na escola tinha sido cansativa, com testes de matemática e atividades físicas, eu praticava judô. Ela voltou e deu-me um dos copos que trazia rente ao peito; para o meu tio ofereceu café. Em seguida, retomaram a conversa, planejavam ir à Espanha no Natal, a família do meu pai morava em Granada.

Lembro que pensei em voltar para o quarto e desenhar alguma coisa, mas continuei a ouvi-los, empolguei-me quando eles começaram a falar sobre a arquitetura da Alhambra. Eu gostava de ouvir as conversas dos adultos, imaginava-me em suas histórias como se elas me pertencessem.

Quando ele se curvou para encher a xícara, o pingente mergulhou no bule. Eu achei engraçado, o objeto era diferente dos elefantes que vivem no Mali, os quais conheci por meio das revistas. 

— Parece uma mistura de gorila com girafa. — E riu, dissolvendo o açúcar. — Meu irmão está quieto hoje — emendou, movendo o braço em direção à nuca, apoiando-se no recosto do sofá.

Meu pai respondeu qualquer coisa, murmurando. Apoiara o prato no vaso de gerânios. Se tivéssemos um cachorro, o que não seria possível porque mamãe tinha medo, certamente seria divertido vê-lo lamber a calda. Ele estava com uma pilha de processos no colo, buscara-a no escritório sem que eu percebesse. 

— Tem tirado boas notas? — meu tio perguntou.

Eu ainda pensava na África, nos elefantes, em uma velha coleção da National Geographic

— Sim — respondi.

— Então está bem. 

Seguiu-se um silêncio constrangedor, o qual aproveitei para tentar dormir, ouvindo o barulho do ventilador de teto. Cochilei por um tempo e quando acordei ele cantava… Foi nesse momento que eu percebi que os olhos dela brilhavam. Assustei-me como se tivesse recebido um soco na nuca. Fui para o quarto e comecei a escrever em um caderno que eu tinha transformado em diário.

5

Quando saí do quarto, ela se sentou na cadeira da sala e me chamou. Seu perfume era tão bom que eu senti saudade não sei de quê. 

— O que você não entender, me diga, que eu explico; mas leia em voz alta tudo o que puder. Quero que você se acostume com a sonoridade das frases bem escritas.

E entregou-me um livro de capa dura vermelha, o mesmo que agora está sobre a minha mesa. Ela pediu para que eu apagasse a luz do abajur quando deixasse a sala. Encolhido no sofá, mergulhei o rosto por entre as páginas, tentando extrair-lhes vida, ansioso por conhecer novos personagens e cenários — eu gostava de ler descrições, principalmente as psicológicas, mesmo sem entendê-las. Achei o começo arrastado, demorava muito a passar de um parágrafo a outro, que eram longos. A ilustração da página trinta e cinco foi a que me marcou. Lembro que a olhei por um bom tempo antes de voltar ao começo do livro. Mamãe comprara-o em uma dessas bancas de jornais que vendiam literatura ao lado de revistas da Playboy. A literatura e as revistas sumiram, restaram as notícias mal escritas. 

Foi na quinta linha do terceiro parágrafo que eu descobri o ponto e vírgula. Àquela altura eu já estudava ortografia, evidentemente, mas não conseguia entender por que exatamente o ponto e vírgula se diferenciava da vírgula e do ponto final. Na verdade descobri naquela noite; antes, era como se fosse algo indefinido e sem importância. Passei aos outros parágrafos à procura do mesmo sinal ortográfico, para saber se neles o autor o usara como o usou no terceiro parágrafo, como se um vão separasse as duas frases, dividindo-as e aproximando-as. Fui até à estante e peguei um livro em espanhol, abrindo-o aleatoriamente. Eu não sabia espanhol, mas queria comparar o texto que lia com outro, escrito em uma língua estrangeira. Aos poucos consegui entender a função sintática do sinal gráfico, associando-o aos outros pontos, usando como parâmetro o sentido das frases e a cadência do texto. Depois, peguei uma folha de papel ofício e comecei a escrever, distribuindo os pontos entre os períodos. Queria saber se eu seria capaz de usá-los corretamente, sem as explicações de uma outra pessoa, por meu próprio esforço. Ao término de alguns minutos ou horas, o que era para ser um simples exercício de fixação se transformou num pequeno conto em que um cego oferece veneno a duas crianças ao vê-las presas dentro de uma sequoia. Influência dos Contos de Grimm. Antes de ir dormir, deixei o papel sobre a mesa da sala, queria que mamãe o lesse ao acordar. 

Na minha cômoda ficava um relógio cuco. O vai e vem do pêndulo lembrou-me a função sintática do ponto e vírgula. Olhei-o até adormecer.

A mesa do café da manhã ficava mais bonita quando ela deixava os copos alinhados e a cesta de pão ao centro, a manteiga de garrafa que eles compravam nas idas ao Nordeste, os bolos de milharina ou de leite, naquele dia de maçã com canela.

— Bom dia, filho.

— Bom dia.

Desvirei a xícara e enchi-a de leite. Parti um pedaço do bolo, colocando-o no prato. O tempo corria e ela falava pouco. Acordava primeiro que meu pai e passava sempre pela sala a caminho da varanda, gostava de acompanhar o nascer do sol. É ótimo para manter os pensamentos em ordem, dizia. Era comum vê-la de camisola, o cotovelo no mármore, o dedo indicador na bochecha, olhando para o céu, para um não sei quê que a ultrapassava. 

— Quer café?

Deixou que escorresse do bule um filete apenas. 

— Você nunca foi de beber muito café.

Perguntou se eu queria mais alguma coisa. Respondi que não. Em seguida, foi para a cozinha, segurando o bule. Um nó na garganta me fez engolir seco e eu larguei o bolo pela metade, afastando a xícara, quando vi o papel embaixo da cadeira. Caíra durante a noite. Enfiei-o no bolso e tentei não pensar mais nele. Guardei-o dentro do caderno quando voltei ao quarto. 

Ela encostou no meu ombro. 

— Quer ir ao parque comigo? 

— Quero.

6

No terreno que pertencera aos beneditinos e cuja única construção era um mosteiro, tropas de Dom Pedro I vindas da Capital para a Província, de onde chegavam rumores de um possível ataque das forças do Reino, fizeram manobras militares. A área que se estende da Praia de Icaraí até onde morávamos era um extenso areal coberto de cactos e pitangueiras, dizia a minha avó. 

A manhã estava agradável, mas as nuvens que vinham da praia cresciam sobre as árvores. Aproximamo-nos do senhorzinho que vendia água de coco em uma barraca montada ao lado do carrossel de cavalos marinhos. 

— Um copo, por favor. 

Lembro que não a agradeci, e isso agora me enche de vergonha. Deixamos o pátio para entrarmos pelos cercados cujos caminhos sinuosos terminavam em um vasto gramado, no fim do qual, como em um sonho — adoraria que a vovó estivesse viva! —, vi o mosteiro rodeado por soldados da infantaria seguindo os passos do Imperador. Os oficiais da Guarda de Honra estavam ao lado de um canhão e comandavam os recrutas que enchiam o fusível de pólvora para depois apontá-lo, como soldadinhos do cinema mudo, em direção à Praia de Icaraí. Vez ou outra Dom Pedro I olhava para o ádito: o canto gregoriano ultrapassava os vãos da janela, os beneditinos se preparavam para a primeira liturgia antes da gravidade lânguida do sino. Vestiam o hábito com o cíngulo frouxo na cintura, eram tão pequenos que me lembraram os meninos que saíam das barracas onde senhoras vendiam bolsas de concha do mar, um trenzinho feito com latas de Pepsi, um urso polar amarelo, um coelho da páscoa e borboletas coloridas… As crianças enchiam a rua que cortava o parque com uma alegria branda e contagiante. Os toldos das barracas eram verdes e neles havia placas que identificavam os artistas, no caso dos artesãos ou pintores: os nomes das obras e suas dimensões ao lado dos preços, escritos à mão.

Mamãe e eu nos aproximamos do banco. Era comum descansarmos nele após longas caminhadas. Penso que meus pais frequentavam aquele lugar muito antes de eu nascer, a universidade fica a poucos metros do parque, eles certamente passavam as tardes lá, namorando. Olhávamos para as árvores sob a claridade ambígua que as nuvens insistiam em afundar à meia-luz. Mamãe ficou quieta por um bom tempo. 

— Se você soubesse como eu gostaria de descrever estas árvores… Daria uma parte minha, a mais valiosa, para descrevê-las como elas são.

Queria que ela soubesse que naquele instante eu achava lindo os quadros que uma senhora vendia em uma barraca montada perto de nós. Quando esbocei um movimento para me levantar do banco e ir até ela, mamãe encostou duas vezes na minha mão de forma tão suave que demonstrava resignação, conformidade. Naquele momento quis ficar perto dela até o fim do dia, mas não demorou muito para que as nuvens chegassem até nós, envolvendo o gramado com uma sombra desigual e fria. Levantamo-nos, ela ajeitou-me a manga da camisa, pôs as mãos nas minhas costas – sempre me acompanhava assim, guiando-me – e saímos.

7

Meu pai estava à mesa. Eu ouvia, enquanto descalçava os tênis, o barulho dos talheres, dos movimentos que ele fazia para acomodar-se na cadeira. Ao terminar de beber o café, ele pegou o papel que estava debaixo da toalha de mesa. Assustei-me ao ver que era o meu conto. 

— Foi você quem escreveu? 

— Sim.

— Então você quer ser escritor? 

Não o respondi e fui para o quarto. A gaveta da cômoda estava entreaberta e o caderno não estava mais lá. Sentia vergonha de mim mesmo.

— Pai! — chamei-o.

A sombra esbarrou na soleira da porta e lentamente se aproximou de mim. 

— Aqui está — disse, entregando-me o caderno.

Abri e não encontrei as últimas páginas. Nelas as impressões que o brilho dos olhos dela me deixaram. Mas eu dei asas à imaginação, fui além e inventei uma história que não era real, fiz referência à coxa dela, inseri caracteres, colocando o meu tio no centro daquilo tudo. Naquele momento, assustei-me, as minhas mãos e todo o meu corpo travaram. Eu já sabia o que ele fazia com ela e tive medo. Pediu para que eu não me preocupasse, disse também que conversaria comigo no dia seguinte. Encostou a porta e voltou para a sala. Ele havia rasgado algumas páginas e riscado outras. Coloquei o caderno ao lado do relógio cuco e abri a janela. A rua estava pouco movimentada e os vizinhos não estavam em casa. Respirei fundo, suportei uma vergonha que até aquele momento desconhecia, pensei em me trancar no quarto, mas me lembrei dela. Estaria trocando de roupa, aos domingos ela usava roupas leves. Eu andava ao redor da cama, não conseguia pensar em nada, os objetos eram etéreos, a prancheta não existia mais, o relógio cuco parecia estar parado, abri o guarda-roupa para ver se encontrava os desenhos que eu fazia do meu corpo, eu os destacava do caderno para escondê-los, deixava-os dentro de uma caixa de sapatos com as fotos que ele trazia do exterior, colava-as nas laterais da caixa, queria-as agrupadas, se elas não ficassem agrupadas eu sofria, abri a última gaveta e olhei para as revistas pornográficas, passava madrugadas folheando-as. Voltei à janela para olhar as pessoas que passavam, um garotinho com o pai e a irmã, eu que não tive irmãos, só um primo antipático, os dedos dos meus pés estavam um pouco roxos, os tênis eram apertados demais, os tênis de hoje em dia não são assim, comecei a ouvir os gritos da minha mãe, ouvia-os a partir da minha angústia, o que ela iria pensar de mim, acho que sou um fraco, antes de nos casarmos a Luísa falou isso, fechei as mãos e contraí os dentes, contraí com tanta força que não ouvi mais nada, só o barulho do tímpano esmagado, um mini trovão nos meus ouvidos. Tentava me acalmar mas não conseguia, queria ir até a sala mas não conseguia, há quantos minutos estava dentro do quarto, sentei no chão e fiquei olhando para o pêndulo do relógio, quando o ponteiro marcasse dez horas eu iria me levantar. Vestia um short preto e uma camisa da seleção brasileira, os meus joelhos eram um pouco arqueados, eu era magro e ossudo, meus olhos verdes me salvavam de uma baixa autoestima, acho eles bonitos, minhas mãos também são bonitas, as da minha avó também eram, não na velhice que o corpo é um túmulo, um dia a Luísa me mostrou uma foto dela, como mudamos com o tempo, é horrível, fiquei olhando para o escudo da seleção brasileira e pensando nos jogadores ao mesmo tempo que ouvia os gritos dela, eu tinha transtorno obsessivo compulsivo e ninguém sabia, guardei a caixa de sapatos em uma das gavetas da cômoda, a minha cômoda era um mundo, guardava muitas coisas nela, com o passar dos anos ele já não me invadia, estava velho, a minha mãe não estava mais viva e eu passei a dominá-lo, quando deu nove horas eu me levantei do chão e corri, simplesmente corri, via-os da sala, eles estavam na varanda, ele esmurrava-a nas costas nuas, parecia gostar do que fazia, após alguns segundos ele tentou beijá-la, o que agora me lembra Il Bacio, de Hayez – eu era a sombra que descia as escadas.

8

Luísa entrou segurando uma barrinha de chocolate. Pedi para que ficasse. Ela sentou-se ao meu lado e me perguntou o que eu fazia, queria saber porque fiquei tanto tempo no escritório.

— Ah… Um projeto para uma empresa de Florianópolis — respondi. 

Luísa é bem mais nova do que eu, nos conhecemos em um desses aplicativos de relacionamentos. 

— Gostei da ilustração.

Eu havia deixado o livro aberto, ela começou a folheá-lo. 

— Onde você comprou?

— Num sebo.

À minha resposta ela ficou quieta, olhando-o. Rompeu o silêncio com uma afirmativa:

— Eu conheço este livro! Me desfiz dele na nossa última mudança… — e desculpou-se por não ter tido cuidado com as minhas coisas. — Mas não é uma grande coincidência? 

Luísa me irritava. Eu não queria conversar com ninguém naquele momento.

— Você tem razão.

— O que você quer comer? — perguntou, olhando para os papéis. 

— Você decide.

Ela disse que iria pedir alguma coisa para jantarmos e saiu.

Levantei-me e fui até a varanda. Fiz meia hora de alongamento e esteira ouvindo um podcast em que falavam sobre o contrabando de animais silvestres. 

O interfone tocou e Luísa desceu para atender o entregador. Fui para a cozinha, peguei os pratos no armário e arrumei a mesa. Os pratos são bonitos, a louça é de faiança, compramos na Turquia. Luísa entrou com uma daquelas bolsas recicláveis, perguntei o que era, ela disse que era um strogonoff com carne de soja. Peguei-a pela cintura e beijei-a no pescoço, ela contraiu-se com um aspecto enjoado.

— Você não devia dar tanta importância ao passado. É o que eu acho. — E após alguns segundos, com uma seriedade que lhe era completamente estranha: — A vida está no presente, no que fazemos agora.

Quis voltar ao escritório, mas estava com fome. Durante o tempo em que comíamos quase não nos falamos. Ela rolava o feed do Instagram e eu pensava em alguma coisa muito importante que agora não me lembro o que era. 

— Olha que cachorrinho bonito o da Duda! — parecia ter esquecido do que dissera minutos antes. — Fofinho, né? 

Tinha pelos lisos incomuns à sua raça, como se o alisassem com prancha de cabelo.

— É engraçadinho.

Lavei o prato e voltei para o escritório. Antes de guardar o livro, coloquei dentro dele um retrato da minha mãe. Ainda guardo os desenhos que fiz na adolescência.

Eu arrumava a mesa quando o celular vibrou. Abri a tela de notificações, era um número estranho me enviando áudio. Bloqueio quem não conheço e não costumo ouvir áudios, mas eu queria me distrair. De início, vozes se misturavam ao estrépito de objetos metálicos. Não demorou muito para que ela começasse, desesperada:

“Luís, ela foi atropelada!”

O meu coração começou a bater forte, senti dificuldade para respirar. A menina do corpete rosa estava morta. 

9

A quem por acaso imaginar que a vida conjugal dos meus pais era um inferno, digo que não. Na maior parte do tempo eles viviam bem, estavam casados há muitos anos e se amavam. O brilho dos olhos dela era a expressão de uma apurada sensibilidade artística, a qual poucas pessoas, sobretudo hoje, têm e cultivam. Era a minha imaginação que, em parte, estava impregnada de imagens eróticas, a idade contribuía para tornar tudo muito mais difícil.