A lei da física – conto de Rafael de Souza

– por Rafael Teixeira de Souza

sim, pelo menos para si mesmo, ele estava perto de um bom destino, embora as ondas trouxessem aquela aragem amena, quase gelada e salobra, do início do entardecer, a vontade de jogar-se era maior que o medo de sentir frio, como aquele filme no qual o homem, para salvar a mulher amada, deixa-a flutuar sobre uma porta que, sob o peso dos dois juntos, porventura os faria afundar, e morrer junto de alguém, naquela conjuntura, seria exagerada humilhação, não para ele, mas para a pessoa que o estivesse acompanhando, isto queria dizer que se achava menor que todos, menor mesmo que uma formiga, um piolho ou um ácaro, menor inclusive do que muitos animaizinhos que conhecia e pelos quais se afeiçoara com o tempo, na sua profissão de renomado biólogo, o sentido, aquilo que vibra no interior de cada organismo vivo e que o faz alimentar-se, respirar, sentir-se bem, encontrava-se totalmente ausente de si, e adiante, como aquele oceano de águas azuladas que separa a américa de baixo da europa, contempla as marolas do rio sob o olhar curioso de um ou outro motorista que, por certo, estranha ver um automóvel parado no acostamento, e o seu dono a observar não sei o quê nas águas do rio, alguns, que pouca importância davam, achavam que qualquer coisa de errado tinha acontecido, ou um pneu furara, e ele esperava alguém vir ajudá-lo, ou se tratava de outro detalhe do gênero mecânico ou elétrico, que o obrigava a aguardar, já outros, mais observadores, divisavam algo estranho nos gestos do homem, suas feições eram a bem dizer indecifráveis, em razão de estar virado de costas para o asfalto, mas a inquietação buliçosa de seus movimentos fazia despertar nos atentos a iminência de um ato insano contra a vida, não é possível, pensavam os incrédulos, depois de matutarem por instantes, ninguém, tampouco um homem de semelhante porte e tão alinhadas vestimentas, teria coragem suficiente para cometer tamanho desatino, o que acontece é que a imaginação dos que estão ocupados, justamente por se encontrarem nesse estado, reduzem sua capacidade de reflexão a cogitações de caráter infantil, neste caso, por ser de dia, duas horas quase pontuais, a possibilidade de um ato cabal contra a vida era bem menor, haja vista que a maioria dos suicídios, de acordo com recentes estatísticas, ocorre no período da noite, para desta maneira não dar tanto nas vistas, no entanto, no caso específico desse homem, lógica nenhuma se encaixa, os próprios pensamentos seus, a propósito, há minutos estavam tão baços quanto um vidro transparente no qual se sopra hálito, não passava pela sua cabeça que, àquela hora, a hora típica de a sua esposa ligar, ela mesma, do outro lado da cidade, estranhava o fato de o marido não ter atendido às suas ligações, mesmo depois de duas chamadas que tinha feito, e, como aqueles motoristas que atravessam o caminho do homem sobre quem pensa, quer dizer, os mais atentos, a teoria pior, que diz respeito à consumação da vida, como que se aninhava em seu coração temeroso de esposa, uma vez que há semanas, quiçá meses, atentara para a conduta estranha do marido, não, não pode ser verdade, mentia para si mesma, ele não é homem dessas coisas, sabe o valor da existência, os bons frutos que ainda pode colher, ou melhor, que já colheu e que decerto ainda colherá, e mesmo assim se aflige por efeito de seus modos taciturnos, porque a suspeita causa inquietações dessa natureza, mas eis que a mulher resolve se ligar à sua fé, aquela fé inabalável que a induz a acreditar que tudo chega a bom termo e que tudo que ocorre, do céu para baixo ou para cima, é pela vontade de deus, e o homem, por ocasião de uma coragem repentina, coincidentemente se dirige agora para a beira da ponte, lugar suspenso por cabos de aço de resistência infinita, entremeados, como tranças ou barbantes, a outros cabos mais finos, e, segurando-se neles, suspende-se de pé na lateral da ponte, está mudo e treme-lhe o maxilar, seus movimentos são ao mesmo tempo decididos e vacilantes, mas com efeito mostram a irreversibilidade da sua resolução, um sopro úmido e fugidio acerta o seu rosto, fricção suave e refrescante de nervos que reforça a boa escolha que fizera, porque não há, segundo ele, morte mais deliciosa que aquela em que se morre por meio da água, substância de ordem divina da qual mais necessita o corpo, neste mesmo instante de distração, todavia, ele segue de pálpebras cerradas, sem ter certeza do que acontece às suas costas, ou mesmo no entorno, mas não deixa de atinar que algo acontece, ouvem-se murmúrios de contido espanto, tanto de mulheres como de homens, estas últimas vozes como a deslizarem sub-repticiamente em sua direção, escute, senhor, uma voz se articula atrás de si, e ele, em pé e ainda seguro com as duas mãos num dos grossos cabos, atiça os ouvidos, escute, senhor, repete a mesma voz, e ele sente passos se acercarem, sem no entanto abrir os olhos, senhor, por favor, não faça isso, outra voz se pronuncia, desta vez uma musical fala feminina, e prossegue, ouça senhor, se tranquilize, embora não saibamos o porquê de o senhor estar aqui, sabemos porém que a sua vida não tem sido fácil, entretanto a de ninguém é fácil, problemas são tão ou mais naturais que o próprio exercício do viver, um não vive sem o outro e o outro não vive sem o um, ele ouve, mas finge que não ouve, dando um passo adiante e elevando uma das pernas ao rio, como assim executam as bailarinas, sem dúvida com maior requinte e naturalidade, neste instante se apercebe de que já se encontra uma aglomeração à sua retaguarda, talvez a menos de vinte metros, talvez duas dezenas de homens e uma dezena de mulheres, sem contar aquelas dezenas de carros que estão parados logo atrás e logo à frente, fazendo crescer o engarrafamento, e de longe e de perto se ouve o romper frenético de buzinas e vozes embevecidas a exigirem que o trânsito ande, que para isso acontecer que morra aquele que quer morrer, aliás porque já estão a par do que está sucedendo, e em consenso sentenciam que a vida não merece ser mantida a quem quer tirá-la de si próprio, e ele, sentindo que já tem chegado longe demais, não quer chamar a atenção de mais ninguém, julga que é chegada a hora de saltar, mesmo porque já se ouvem as sirenes da polícia e alguém, àquela altura, por afoitamento ou mera vontade de tornar-se herói, poderia tentar segurá-lo, e ele salta, mergulho desavisado e de olhos fechados que faz com que todos que o contemplam, à exceção daqueles que estão nos extremos da ponte, que quase nada podem ver, não consigam distinguir mais que um vulto cinzento a jogar-se n’água, e, no trajeto ligeiríssimo do solo às ondas, ele ainda é capaz de ouvir assustados sussurros, que lhe são tão longínquos e sutis quanto as formigas às quais se comparava horas antes, sim, tinha dito ele a si pouco antes de saltar, lá vou eu assinar o último decreto da existência, a cláusula definitiva do adeus, que me leva a despedir-me de toda essa multidão, da minha esposa, dos meus pais e do restante da família, de forma honrada e afortunada, nada mais que afortunada, pois não há contentamento maior e mais duradouro que não alcance o seu auge com a morte, que o diga aqueles que viveram no tempo do pentateuco, e, antes que se decida pela abrupta morte por ingestão excessiva de água, pensa na mulher, no que está fazendo naquele momento, se está ou não está pensando nele, está feliz, deduz com seus botões, ou se não está ficará, pois sabe o quanto ela se sente satisfeita com as suas realizações, uma vez que jurara no altar partilhar momentos maus, que dirá bons, de glória sublime e completo arrebatamento, e sua atitude final é dilatar a abertura da boca e dos ouvidos, para que, enquanto lentamente submerge, se deixe tomar pela substância que dá vida, e, como num aforismo científico, pensa, não há nada melhor do que ir por intermédio daquilo que faz surgir e subsistir, porque tudo o que sobe tem que descer, e, pela mesma lei da física, o mesmo que abona, de um jeito ou de outro, sempre toma de volta

Rafael Teixeira de Souza tem 30 anos e nasceu em Pedra, no Agreste de Pernambuco. É mestre doutorando em Literatura Comparada pela UnB. Já publicou três coletâneas de poesia, além de ter alguns poemas publicados em revistas eletrônicas.