Não devemos aprender a esperar.
Devemos, sim,
esquecer as coisas esperadas.
Lições Tardias, Alberto da Cunha Melo
Era no tempo das radionovelas.
Terça-feira, pouco mais de meio-dia. O Rio de Janeiro estava quente, quente pra diabo. E o Largo do Machado estava lotadíssimo — horário dos almoços rápidos, horário das conversações urbanas e horário das muvucas.
Mas nosso personagem não estava almoçando, não estava conversando e não fazia parte da muvuca dos trabalhadores. Ele, o personagem, poderia ficar sem nome, inclusive preferiria permanecer no anonimato, como sempre esteve. Porém, por questões dramáticas e para não gerar ansiedades no leitor, direi mesmo assim. Antônio José, advogado esporádico e observador contumaz, é o nosso personagem. E estava, como todos os dias de sua vida, observando e observando. Os óculos de armação grossa e preta, o bigode um tanto espesso e o cigarro aceso pendurado no canto da boca formavam mais ou menos o cenário do rosto de Antônio. Contava com vinte e muitos anos, aparentava trinta e poucos — à época, o tempo cavava mais rápido suas estradas, parece. Estava sentado num banquinho de concreto, sob a sombra de uma árvore da praça. Não suava, apesar do terno. Ao seu lado, no banquinho, um copo de café fazia par com um exemplar das Peças Completas de Jean Racine, edição rechonchuda e com páginas a não acabar.
Estava mais viciado no livro do que no café que descansava no banquinho de concreto e no cigarro que dormia no canto da boca. As tramas pouco importavam para Antônio José. O que o perturbava há meses — ele lia e relia todos os dias as mesmas peças, os mesmos cenários e diálogos — eram aquelas mulheres das obras. Na verdade, por precisão da escrita, os seus nomes, os títulos das peças, que o intrigavam. Andrômaca, Ester, Fedra, Atália, Ifigênia, Berenice… brotavam ao menor descuido na caixa preta mental do nosso Antônio. E ele pensava, pensava, olhando para dentro de si com os olhos da consciência, imaginando aquelas mulheres e aqueles tempos áureos pintados pelos versos do francês Racine. Os olhos cravados na face não observavam menos por conta disso — nos intervalos dos pequenos descuidos, observavam a realidade também visível a todos os outros que não eram Antônios Josés. Muitas vezes, se pegava observando os dois mundos ao mesmo tempo, sem muita confusão. Nomes das personagens racinescas, um pássaro bicando uma laranja. Uma sedução teatral, um acidente de trânsito numa esquina de Laranjeiras. Para sorte de Antônio, uma confusão controlada. Os pensamentos, sabe-se lá como, não se cruzavam.
Como há de se deduzir, com tantas linhas de ideias, percepções e pensamentos, não havia tempo para conversar com pessoas de carne e osso. Não, Antônio José não era de conversas. Falava o mínimo possível, respondia usando as palavras mais curtas e com o sentido mais claro. Não suportava repetir o que acabara de dizer. Era, em suma e aos olhos dos outros, um chato. Chato e esquito, vale completar. Difícil julgar quem o via assim — ele mesmo sabia que era um chato-esquisito, mas não fazia questão de mudar. Por isso mesmo, seguindo nas deduções lógicas, não era bom com as mulheres, nem tentava ser bom. Ficava sempre calado, soltando as sílabas necessárias para resolver uma demanda jurídica ou burocrática. Bastava para Antônio José, e ele estava muito convicto disso, as mulheres de Racine. Fedra, Atália, Andrômaca…
E era assim que ele estava na praça do Largo do Machado. Observando e pensando, pensando e observando. Na cabeça, pensamentos e eras distantes. Na boca, gosto de café misturado com tabaco. Nas lentes dos óculos e nos olhos, centenas de pessoas andando pra lá e pra cá, comendo, conversando.
Mas havia algo de sobrenatural naquele horizonte da praça. Antônio cerrou um pouco os olhos, deu um traguinho leve no que restava do cigarro e diminuiu o ritmo dos pensamentos. Estava querendo observar mais do que elucubrar. Ainda sentado, começou a passar os olhos por toda a praça. Pessoas e mais pessoas, pés e mais pés, cabeças e mais cabeças. O que havia de diferente na pintura urbana?
Cerrando os olhos mais um pouco, Antônio entendeu. No meio da praça, no meio daquela multidão de andantes, havia uma mulher sentada na beira do chafariz da praça. O chafariz, apesar de atração recente, já estava incorporado à cena cotidiana da praça, ignorado por quase todos que por ali passavam. Mas aquela mulher iluminada pelo sol não fazia parte do Largo do Machado. Antônio nunca a vira na praça, no chafariz, na vida. Ela vestia uma camisa branca leve, uma calça cinza listrada que ia mais ou menos até canela — um cinto bem fino unia essas duas peças de vestuário. O cabelo era curto, cortado na altura do ombro. Estava sentada com as duas mãos para trás, apoiando o corpo na mureta do chafariz. Olhava para o nada, quase tão estática e contemplativa quanto uma estátua. Não reparava no sujeito sentado à sombra. Este sujeito, Antônio, é que reparava nela, em estado de semi-encantamento. Deu, sem tirar os olhos da moça, um último beijo no cigarro, jogou-o fora, deu um último gole no café — ainda estava quente, para a surpresa de Antônio, que teve as lentes dos óculos embaçadas pelo vapor do café.
Se levantou, um pouco confuso com a própria decisão, meditou por alguns segundos, em pé, e foi em direção à moça. Esta, ainda apoiada na mureta do chafariz, foi ficando cada vez mais perto de Antônio José, que andava em pequenos solavancos atrapalhados. No caminho, curto em distância mas longo em pensamento, Antônio foi se preparando — em sua cabeça mil possibilidades apareciam, sumiam e se diluíam em tantas outras.
Finalmente, ficou defronte da garota. O que dizer? O que pensar além do que já pensava? Qual comentário fazer? Afinal de contas: como puxar conversa com uma mulher daquelas, iluminada por não sei quantos sóis?
— Licença — perguntou Antônio, ligeiramente trêmulo na fala e sentindo as primeiras gotículas de suor em meses.
A moça, ignorante do que se passava na cabeça daquele rapaz magro e bem vestido, sorriu. Os dentes brancos, naturais e alinhados desconcertaram mais um pouco Antônio.
— Oi! O que foi? — perguntou, contendo nessa pergunta um mar de ingenuidade e beleza.
Antônio, parado como um esquisitão, se encontrava encantado por aquela figura. Mas não se amedrontou externamente — estava apenas dentro de si.
— Posso saber seu nome? — como foi difícil falar todas essas sílabas! Mas falou, ora.
Recebeu como primeira resposta mais um sorriso, tão meigo e ingênuo quanto o primeiro.
— Julieta. E o seu? — respondeu a moça, era boa de papo.
Ju-li-e-ta. Dessa vez, foi Antônio quem sorriu. Não era um nome teatralizado pelos franceses, mas gostou mesmo assim.
— Antônio. Me chamo Antônio, Julieta. — disse, bem mais confiante.
Julieta, olhado Antônio debaixo para cima — ela continuava sentada, apoiada na beira do chafariz —, estendeu sua mão. Antônio, com resquícios de atabalhoamento, demorou um pouco para entender o prenuncio de um aperto de mãos, mas completou o gesto.
— Você tá todo dia aqui? — perguntou Julieta.
— Sim, sim. Venho pra cá na hora do almoço. Fico pelos cantos — disse Antônio, que realmente só ficava nos cantos, quinas e bancos do bairro.
Olhando em direção ao céu, Julieta cerrou os olhos um tanto.
— Acho que tá dando a minha hora — disse, se levantando da mureta. O movimento, aos olhos de Antônio, foi singelo demais, quase uma partitura musical transcrita num salto de mureta. — Se você estiver aqui amanhã, posso falar com você? Mais cedo, aí a gente conversa mesmo.
Empapado de suor — por sorte apenas debaixo do terno, nada visível aos olhos de Julieta —, Antônio disse sim com a cabeça. Gesto muito discreto e controlado. Julieta sorriu, deu um tchauzinho com as mãos e seguiu para algum lugar do Rio de Janeiro. Já Antônio, ainda sem acreditar na cena que acabara de vivenciar como personagem principal, caminhou até seu banquinho de concreto, protegido pela sombra de uma das árvores do Largo do Machado.
E lá ficou um tempo. Pensando, observando. Às vezes só pensando. Olhou um pouco a capa do livro de Racine, Peças Comp — nem leu o título todo. Dos nomes que antes martelaram sua criatividade e seu sossego, não restava mais nenhum. O nome que importava agora era outro, de outra tragédia, de outra mente poética e dramática. Deixou o livro no banquinho, sacou um cigarro e o pôs entre os dentes. Estava feliz como há muito não ficava.
O Rio de Janeiro estava quente, quente pra diabo. Mas o Sol, além do calor e do suor, trouxe para alguns bons prenúncios nos ventos.