Eunice descia as escadas vagarosamente, segurando as abas do roupão branco, e ao chegar à sala apertou o interruptor.
— Desliga a luz, mulher.
O marido estava sentado na poltrona, pernas escoradas na mesa de centro, skol aberta, prato com salgadinhos apoiado na barriga; na TV, Salgueiro e Central pela quinta rodada do pernambucano.
— Jonas, preciso falar com você.
Ele notou a voz grave e preocupada da esposa e automaticamente virou o rosto para ela. Eunice já havia se sentado no sofá, mãos nos joelhos, face franzida e acabrunhada.
— O que foi?
— Nem sei como falar isso com você.
— Desembucha, vai, não enrola — desligou a televisão e começava a suar frio, pensando se ela havia descoberto sua amante.
— É sobre Renato — graças a Deus o assunto era o filho. Suspirou aliviado. — O que tem ele?
— Acho que ele é.
— É?
— Acho que sim
— É o quê?
— Você sabe.
— Não sei.
— Sim, sabe, a gente já imaginava. O jeitinho dele…
— Diga: o que ele é?
— Eh…
— Fale!
— Eu acho que Renato é poeta.
Voltou a suadeira em Jonas. Sobravam desconfianças: atitudes esquisitas, histórias mal contadas, apelidos, fofocas, muxoxos, fuxicos; mas nada concreto.
— Deixe de história. Meu filho não é poeta: é macho.
— Olha o que encontrei na bolsa dele.
Eunice tirou de dentro do roupão um objeto esquisito. Eram várias folhas dobradas, costuradas e grampeadas, como que embrulhadas por duas folhas feitas de um papel mais resistente, de modo que todas as páginas ficavam compactas quando fechadas, mas era possível abrir e ver o conteúdo de cada folha. Jonas observava com curiosidade as letras em cada um daqueles papéis.
— O que é isto, Eunice?
— Leia. Qualquer linha.
— “Erros meu, má fortuna, amor ardente…”
— Sangue de Cristo tem poder!
— “Em minha perdição se con… con-ju-ra-ram?”
— Pare, pare! É demais para mim.
— Eu não acredito.
— São versos, Jonas. Versos!
— Calma, pelo amor de Deus. Isso pode ter sido presente de algum amigo. Você sabe como é que é, nessas festas se oferece cada tipo de coisa.
— Quem me dera fosse isso. Olha o que achei debaixo do colchão dele.
Ela estendeu o braço com um objeto semelhante ao anterior, era apenas um pouco maior em comprimento e possuía mais páginas. A capa era azul e branca. Nela estava escrito: “Tratado de Versificação de Olavo Bilac”.
Jonas arregalou os olhos, estupefato.
— Nunca imaginei menino meu metido com esse tipo de estripulia — levantou-se da poltrona, andava de um lado para o outro a passos curtos enquanto puxava os pêlos brancos do peito — Filho é para o mundo, a gente sabe. Eu toleraria filho ator, levaria numa boa. Músico, talvez, se tocasse na igreja. Até advogado eu aceitaria! Mas poeta… poeta não é coisa de gente.
— O que vamos fazer, Jonas? — Eunice afogava-se em lágrimas e sua voz era ouvida em meio aos soluços do choro.
— Vamos falar com o Pastor Ademilson. Ele deve conhecer a solução.
No dia seguinte, chegaram na igreja discretamente. Jonas, de camisa social cinza, topete penteado para trás disfarçando a calvície, calça de linho e sapato bico fino; Eunice, com cabelos escorridos chegando nos ombros, vestido longo até abaixo dos joelhos e Bíblia na mão; Renato, o garoto, andava meio corcunda, torto, cabelo desgrenhado, olhando para baixo, tímido — os três entravam naquela pequena casa em que uma placa grande indicava: “Igreja dos Cavaleiros de Fogo de Jesus Cristo Nosso Senhor”.
Na porta, um homem negro e alto, braços longos e bem magro, os esperava. — Entrem, meus irmãos, entrem!
Atravessaram o salão da igreja, caminharam por um breve corredor e chegaram a uma salinha reservada. O Pastor sentou-se na poltrona, a família no sofá.
— Contem, meus irmãos, o que os aflige.
— Então, Pastor — começou Eunice — estamos preocupados com o nosso filho. Você sabe como é essa juventude de hoje, tudo é novo, tudo pode. O mundo, Pastor, o mundo é terrível e está levando nosso garoto.
Enquanto isso, o menino, espremido entre os pais no meio do sofá, ficava calado, olhando para os próprios pés.
— Isso é sempre uma preocupação. Mas o que está acontecendo, exatamente? — Eu nem consigo dizer, Pastor. Fale você, Jonas.
— Pastor Ademilson — Jonas inflou o peito — Temos notado certos comportamentos problemáticos no nosso filho. Amizades esquisitas, um jeito de andar, de falar, se interessando por coisas estranhas. Coisas que Deus não gosta e não quer para o homem.
— Você desconfia que ele é?
— Sim, Pastor. Aparentemente, sim.
— É, meu irmão, a vida não está fácil. Todo mês chegam um pai e uma mãe aqui com esse problema: “Meu filho é poeta!”, eles dizem, e eu sempre tento ajudar. Agora, percebo que vocês há algum tempo não vêm à igreja.
— Um ano, mais ou menos.
— Isso não pode acontecer, de jeito nenhum. Foi por isso que o demônio da poesia entrou na vida de vocês, no seio da sua família! Precisam se comprometer em voltar, vir para cá
todos os domingos, contribuir com o dízimo, quem sabe até cantar no coral? Vocês se comprometem?
— Sim, Pastor.
— Glória! Assim fica mais fácil ajudar vocês. Garoto, olhe para mim.
Renato levantou o rosto, expressão vazia, encarando o Pastor.
— Quando você começou a ter… vontade?
— Tem um ano, Pastor.
— Você procurou ver esse tipo de coisa?
— Sim.
— E o que sentiu quando viu?
— Gostei muito, Pastor, por mais que soubesse que é proibido.
— E quando você via isso?
— No meu quarto, à noite, depois que meus pais dormiam e a casa toda ficava em silêncio. Ali ninguém poderia me atrapalhar. Às vezes no banheiro.
Enquanto a conversa acontecia, Jonas e Eunice desviavam o rosto e enxugavam as mãos no braço do sofá, nervosos.
— Eu entendo, meu irmão, eu entendo. Mas você chegou a ver ou também a… experimentar?
— Eu experimentei, Pastor. Diversas vezes.
— Ah, meu Deus! — a mãe gritou, colocava a mão na testa e era acudida pelo esposo. — E geralmente eram…?
— Homens, Pastor.
— Homens?
— Sim, mais de um.
— E de onde eram?
— Brasileiros, mas também portugueses, alemães, americanos, ingleses, africanos…
Eunice, pálida, quase desmaiada, tampava os ouvidos.
— Em especial, os franceses, Pastor. Esses são deliciosos.
— Pare, em nome de Jesus, pare! — exclamou Jonas.
— Acalmem-se, meus irmãos, acalmem-se. Lembrem-se, lá em Mateus onze vinte e oito Cristo diz “Venham a mim todos os cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês”. E, no Salmo 33, o Senhor nos revela que “Ele é o nosso auxílio e o nosso escudo”. O Senhor nosso Deus tudo salva, tudo cura! Jeová Jireh Rafá!
— Aleluia!
— Glória a Deus!
Aquelas palavras relaxaram a alma dos pais aflitos, que suspiravam aliviados com o coração tocado pelo Espírito de Deus.
— Agora, meus queridos, vamos procurar uma solução — Pastor Ademilson levantou-se, Bíblia na mão — A poesia é como o demônio: um cachorro na coleira, que só morde quem entrar em seu círculo de ação. Vamos libertar esse rapaz das armadilhas do inimigo! — Ele olhou diretamente para Renato — Você quer se libertar, garoto?
— Quero, Pastor.
— Quer ser um novo homem?
— Quero, Pastor!
— Quer ver a mudança de Deus na sua vida?
— Sim!
— Quer ser um homem sem poesia, sem verso, sem rima nem nada?
— Sim, sim, sim! — Renato, já inflado como cavaleiro de fogo, fechava os olhos, uma mão no peito e outra para o alto, concentrava-se nas palavras do pastor, tentando tirar de si todo decassílabo, todo alexandrino, todo dáctilo, anapesto, espondeu, rima rica e enjambement.
O Pastor Ademilson havia crescido. Atrás dele a lâmpada da sala parecia iluminá-lo como uma auréola. Apontando o dedo para Renato, com o rosto carregado, vermelho, encheu a boca para dizer:
— Então hoje eu profetizo que estás curado em nome do Senhor!
Renato, depois daquele dia, transfigurou-se. Abandonou a timidez, as roupas pretas, os livros, as penas e os cadernos. Andava feito varão, queimou os livros de poesia no quintal da casa, arranjou namorada, igreja era todo domingo. Os pais também se tornaram mais presentes nos cultos, por mais que Jonas ainda tomasse sua cervejinha escondido, escutasse música do mundo e gostasse de futebol — mas ia para a Igreja, não faltava, ia até quando não devia, pois havia arranjado uma nova amante, uma moça do coral.
Nesse tempo encerram-se as fofocas, os mexericos, os falatórios. Ninguém mais desconfiava de Renato: tornou-se um homem de Deus, reto e justo.
Nunca mais a palavra poesia havia sido pronunciada naquele lar.
Seguros da cura do filho, os pais relaxaram. Aos poucos, deixaram de ir à igreja. Um domingo, depois outro, depois outro. Jonas já não tinha mais motivação, porque a moça do coral casou-se e não mais se encontrava com ele. Renato tinha feito dezoito, começou a trabalhar, fazia faculdade, era homem feito, daqui a pouco casaria, vaso moldado nas mãos de Deus.
E foi aí que o demônio atacou novamente.
Era dia de ano novo. Os três foram passar a virada na cobertura de um primo na orla de Boa Viagem. Lugar espaçoso, com vários cômodos, salas, banheiros, adega, closet. Havia muitos espelhos, esculturas e quadros abstratos, uma imagem do Buda ao lado da Cruz, tapete persa, hidromassagem na varanda, janelas de vidro na sacada. O apartamento estava cheio: foram para a festa amigos, irmãos, pais, tios, primos de primeiro, segundo, terceiro e quarto grau, pets e alguns agregados.
Logo que chegaram, após cumprimentarem os familiares e donos da casa, se reuniram na varanda. Jonas pegou um champanhe e duas taças: uma para ele, a outra ofereceu a Renato. Surpreso, o garoto segurou a taça.
— Eu sei que não é muito certo, mas hoje queria beber com o meu filho. É dia de comemorar a sua superação, a sua transformação, a sua renovação.
Apesar dos olhares de Eunice, beberam. Uma, duas, três taças. Alternando com bebericos da sangria, petiscos, provando um ou outro uísque que lhes ofereciam. Jonas era forte, estava acostumado, ficava somente alegre. Sentou-se no sofá com os primos, conversavam sobre emprego, futebol, casas, viagens.
— Em julho desse ano vou dar uma passadinha em Dubai com a coroa — disse Estevão, primo de Jonas — Comprar uns tecidos, comer kibe, subir em camelo, visitar o deserto, falar salamaleico e os caralho.
— Oxe, a mulher tá querendo que eu leve os meninos na Disney. De novo. Já é a terceira vez, mas vivem pedindo. É foda. — respondeu um outro primo, Marcos.
— E tu, Jonas? — perguntou Estevão — Tá indo muito na igreja?
— Rapaz, dei uma paradinha — respondeu Jonas, sem graça por não ter nenhuma viagem para compartilhar — Eu e a mulher morgamos de ir. Fomos mais no início do ano e foi bem importante para nós. Quem sabe a gente não volte?
— É sempre bom, é sempre bom. A gente vai no centro espírita aqui do lado de casa às quartas. Nos domingos vamos na igrejinha ali da orla. É bom variar, né?
Nesse momento, uma moça loirinha, magricela, interrompeu a conversa tocando no ombro de Jonas.
— Oi, Sabrina, tudo bem?
— Tio Jonas, é melhor o senhor ir ali na cozinha.
— Porque, o que houve?
— Acho que Renato bebeu demais.
— Ele está passando mal?
— Ele…
— Ele o quê?
— Ele… bom, o senhor sabe, ele tá lá…
— Diga logo!
— Ele tá lá na cozinha dando pinta. Sabe, dando pinta?
Jonas levantou-se e marchou até a cozinha. Chegando lá, Renato estava escorado no ombro de um primo, falava no ouvido dele, torcia o pulso, gesticulava com a mão, encenava, fazia caras e bocas. Jonas conseguia ouvir:
— Um poeta é um fingidor, finge tão completamente…
— Renato, o que é isso?
O garoto deu um pulo de susto. O pai o agarrou pelos ombros, sacudia, o que está acontecendo? o que deu na sua cabeça?, gritando, juntou-se uma multidão na porta da cozinha. Enquanto isso, Renato continuava:
— Que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
— O que lhe deu na cabeça? Fazer isso na frente de todo mundo?
— No meio do caminho tinha uma pedra! — e cuspiu na cara do pai.
Jonas começou a bater no menino, até que foram apartar. Eunice já desmaiada no chão da sala, Jonas possesso sendo segurado por três homens, espumando, debatia-se e escutava o filho a declamar pela cozinha:
— Nel mezzo del cammin di nostra vita, Mi ritrovai per una selva oscura!
Os primos tiraram Jonas dali, levaram-no para um quarto, deram-lhe água e o abanaram, deitaram Eunice numa cama e ficaram observando Renato, na cadeira de balanço, para lá e para cá, com os olhos mortos mas arregalados, catatônico, murmurando versos românticos, simbolistas, parnasianos, medievais, gregos, latinos e modernos. Alguns até pareciam ser originais.
Quando perguntaram a Jonas o que deveria ser feito, ele disse:
— Chamem o Pastor Ademilson.
O Pastor chegou uma hora depois. Tocou a campainha, quando abriram a porta, viram que ele veio acompanhado de um grupo de oração: cinco pessoas, todas de branco.
— Boa noite. Onde está o rapaz?
Apontaram para Renato e o pastor foi em direção a ele. Carregava uma maleta que pôs em cima da mesa da sala: retirou de dentro uma Bíblia, um crucifixo, óleo santo e água benta. Ungiu todos do grupo com o óleo na testa e pediu que somente eles e o garoto ficassem no quarto. Todo o resto deveria sair.
Alta noite, quarto envolto em trevas, a lua brilhava no céu como uma bacia de prata. O grupo começou a orar em uníssono, num cântico, e o Pastor observou Renato de perto. Não se movia — só a boca sussurrava versos soltos e ininteligíveis.
— Preparem-se. Ele está tomado pelo inimigo.
De repente, aspergiu água santa em cima do endemoniado. Automaticamente ele se retorceu por inteiro, braços para trás, pernas de curupira, rosto torto como se tivesse tido um AVC. Abriu a boca e dela ouviu-se um som gutural e profundo:
— O coração do Poeta é um hospital…
— Tapem os ouvidos, irmãos, todos vocês! E continuem a orar!
— Onde morreram todos os doentes!
— O Sangue de Cristo te compele! — dizia o pastor, jogando água benta, mãos postas em oração constante.
— Ó meu ódio, meu ódio majestoso — Renato jogou-se da cadeira, rastejava-se no chão, como lagarto, língua preta para fora, olhos revirados — Meu ódio santo e puro e benfazejo!
— Continuem, não parem, não parem!
— Sangue de Cristo tem poder!
— Retira-te, Satanás!
— Livrai-nos de toda poesia, ó Senhor!
Renato penetrava seus olhos negros em cada um dos membros do grupo de oração — eles se tremiam, arrepiados de cima a baixo.
— Eu sou um cemitério odiado da lua… — a voz era como faca raspando na pedra, agulha costurando os ouvidos.
— Este é um demônio fortíssimo! Aguentem firme!
— Onde como remorsos se arrastam os vermes…
— Ordeno que saia, em nome do Senhor!
— Que perseguem sempre os meus mortos mais queridos!
Houve contenda e houve tormenta. Foi verso para um lado, sermão para o outro, gritaria, chororô, histeria, bagunça, barulheira e quebra-quebra. O Pastor saiu do quarto horas depois, dia amanhecido, todo suado, camiseta rasgada. Os pais esperavam do lado de fora, cara inchada de tanto chorar.
— E então, pastor?
— Preciso pedir perdão a vocês, meus irmãos. Eu fiz tudo o que eu pude. O demônio da poesia é muito forte dentro dele.
Voltaram a chorar, puxavam os cabelos, destruídos; Jonas sentou no chão, a esposa de Estevão consolava Eunice.
— O que faremos?
Depois de muita discussão, ventilaram uma ideia: hospício. Diriam que ele sofria de esquizofrenia ou algo do tipo e o levariam para o internamento. Jonas não conseguiria conviver na mesma casa que um filho poeta e Eunice, de tanto escutar os versos, já sabia até contar as tônicas de um decassílabo heróico.
— Eu conheço uma casa que aceita poetas. Já trataram os Irmãos Campos, Paulo Leminski, Adrilles Jorge e até Bráulio Bessa — disse um dos convidados.
Logo depois chegaram os enfermeiros e levaram Renato embora numa camisa de força.
Dizem que está internado até hoje no Lar Bruno Tolentino para Poetas Loucos. Vez ou outra Eunice vai lá lhe fazer uma visita. Jonas não quer nem ouvir falar do filho. No entanto, ficou sabendo que mesmo no hospital Renato escreveu uma gigantesca epopéia, toda em fluxo de consciência, tratando da Batalha dos Guararapes, adaptando a métrica homérica à
língua portuguesa, mas utilizando uma linguagem moderna, típica da poesia contemporânea de alto nível. O lançamento do livro acontecerá na próxima semana. Ângelo Monteiro e Carlos Nejar já confirmaram presença.