A Cronologia da Ilíada – Por que Homero não cantou os dez anos da guerra de Tróia, mas apenas as últimas semanas?

– por Yves Augusto

“Vem revelar-me quem seja aquele homem de aspecto imponente;
como se chama esse Acaio tão belo e de tal corpulência?
Outros heróis, é evidente mais, altos do que ele percebo;
mas os meus olhos jamais admiraram tão belo conspecto
nem majestade tão grande; assemelha-se, é facto, a um monarca.” 1 Ilíada, trad. C. A. Nunes. Canto III, 166-170. Escolhi esta tradução como referência do artigo por considerá-la a mais divertida em nossa língua. Nela os gregos são referidos por Dânaos, Aquivos, Aqueus e Acaios..

À primeira vista, esta frase de Príamo pode parecer um lapso de Homero. É algo bastante inusitado que o rei Príamo, engajado há dez anos numa briga contra os gregos, chamando Helena para perto, lhe revele sua ignorância sobre a identidade de um rosto incógnito, justamente o rosto de Agamemnon, o maior rival da nação. A postura do monarca troiano em relação aos inimigos não reflete um ódio consolidado por uma década de morticínios. Antes sugere certa apreciação e curiosidade, atitudes próprias de um primeiro encontro. Ademais, Príamo ignora não somente o rosto de Agamemnon, mas o de Ulisses, Ajax, e Idomeneu, heróis de grande prestígio. Homero alega que estamos no décimo ano da guerra. Contudo, diversas vezes, na Ilíada, temos a impressão de que a guerra começa não dez anos antes, com o desembarque dos Acaios na praia de Tróia, mas no início do Canto I, como se os fatos transcorridos antes da captura de Criseida, evento que marca a abertura do poema, não tivessem muita repercussão na narrativa. E essa impressão não é totalmente falsa. O autor parece poupar-nos dos detalhes históricos da luta, ou mesmo conduzir a narrativa por um caminho que dispense sua menção, muito embora, vez ou outra, ele nos revele generosamente vislumbres desse passado. Talvez assuma que o público tem uma tal intimidade com a história, que um mergulho no passado seria perda de tempo.

Pode-se ter a impressão de que o poeta grego, na pressa por escrever as partes mais interessantes de sua obra, tenha se esquecido de manter a coerência interna entre os eventos narrados e a cronologia do épico — hipótese que considero absurda —, e que esse esquecimento, plantado em sua mente no início da redação, tenha espalhado seus erros por todo o percurso. A curiosidade de Príamo, transmitida a Helena em tom de segredo, não é o único lance que dá respaldo a essa hipótese. Uma fala de Helena, poucos versos depois, parece dar testemunho da mesma ideia, e nos deixa com o pé atrás, desconfiando da lucidez do poeta:

“(…) ser-me-ia mui fácil nomear a eles todos.
Só perceber não consigo os dois chefes insignes de povos,
o domador de cavalos Castor e o belaz Polideuces
o pugilista, os meus caros irmãos duma só mãe nascidos.
Ou não vieram da terra saudosa de Lacedemónia,
ou para aqui os trouxeram as naves de rápido curso,
mas resolveram de todo evitar as batalhas dos homens
envergonhados da grande desonra que a todos fui causa.”2Ibid. Canto III, 235-239.

Os gregos cercam a cidade, e Helena, debruçada no parapeito do muro, persegue a fisionomia de seus irmãos, e não consegue avistá-los. Suas conjeturas transmitem um certo ar de novidade. Em seus raciocínios não se vê o desgaste natural de uma dúvida antiga, já corroída pelo tempo. Assemelham-se mais a uma inquietação recente, cheia de vida, como se enxergasse, na presente ocasião, uma oportunidade rara de obter notícias dos gêmeos 3. rmãos de Helena, Castor et Pollux, da constelação de Gêmeos. O tradutor utilizou a forma Polideuces, do grego Πολυδεύκης, ao invés de adotar a forma latina clássica Pollux.

Ademais, a cena em que Helena solta esta frase é preâmbulo do duelo entre Menelau e Páris, tramado com a finalidade de determinar o resultado da guerra, até então indefinido, entregando Helena ao vencedor do torneio. Levando em conta que já estamos no décimo ano do conflito, o pacto selado entre o esposo ludibriado e o amante medroso pode parecer, aos olhos do leitor, uma demonstração de bravura excessivamente tardia, senão despropositada. No mínimo, um mau exemplo de estratégia diplomática.

No Canto II, há uma descrição da chegada dos navios em Tróia, e uma catalogação dos heróis que vieram, de vários cantos da terra, tomar parte na luta por Helena 4. Cf. Ibid. Canto II, do verso 484 até o fim do canto. Somente no Canto V, quando testemunhamos a queda desses mesmos heróis enaltecidos no Canto II, é que nos damos conta de que, durante quase uma década, a maioria deles não foi afetada pelos combates, e que, só agora, após a desavença de Agamemnon e Aquiles, eles começam a sucumbir, um por um, no campo de batalha, vítimas do morticínio anunciado no começo do épico. 5. Cf. Ibid. Canto I, 1-7. Nos primeiros versos do poema, Homero anuncia que a ira de Aquiles causou a morte de inúmeros heróis, atirando suas almas ao Hades. E nisso sugere um agravamento inesperado da rixa. LESKY. ALBIN., em Iliad’s material and composition, partilha dessa mesma opinião. E aqui está a pista que soluciona o aparente contra-senso do poema. Homero compôs uma melodia fúnebre: a Ilíada é um cântico de morte, e entoa o desfecho de uma tragédia 6.Conforme a narração avança, ficamos cada vez mais certos de que Tróia está prestes a sucumbir. As reviravoltas que sucedem no percurso são apenas atrasos, intervenções dos deuses para adiar o desenlace inevitável. Cf. BOWRA. C. M, The tragedy of Hector. O próprio Heitor às vezes o reconhece, como no Canto VI, 447-449: “O coração claramente mo diz e a razão mo confirma:\ dia virá em que Tróia sagrada será destruída,/ bem como Príamo e o povo do velho monarca lanceiro.” Mas logo depois se enche de esperança, comovido pela companhia da esposa e do filhinho, nos versos 486-487: “Minha tolinha, por que desse modo afligires tua alma?/ Homem nenhum poderá, contra o Fado, mandar-me para o Hades(…)“

O poema começa com a declaração de que a cólera de Aquiles causou a morte de inúmeros heróis, apontando que o sangue que fora poupado, até o presente momento, pelo ritmo sonolento e preguiçoso das batalhas, será, doravante, derramado por toda a faixa de terra. Tudo indica que, antes do Canto I, no decorrer da longa estadia dos Acaios na praia, as ocasiões de conflito direto com os troianos foram raríssimas, ou nulas. Oficialmente, a guerra durou um decênio, mas começou, na prática, após a cólera de Aquiles. O suposto deslize de Homero é, na verdade, um elemento consciente e intencional do poema. As atividades militares de Agamemnon e seus aliados, desde o desembarque das tropas até o início da narração, estão resumidas no episódio de abertura do Canto I: investidas contra burgos mais próximos, e negociação de reféns. A coleta de mantimentos, indispensável à nutrição das tropas, e o roubo de animais destinados ao culto dos deuses eram frutos do saque a cidades como Crise, mencionada no primeiro canto, cujo sacerdote, em vingança da recusa do resgate de sua filha, suplicou a Apolo que precipitasse fogo do céu para consumir os Acaios.

Mais de uma vez, na Ilíada, se nos mostra a pouca timidez com que os Acaios esbanjavam do vinho nas libações, e da carne nos holocaustos, cumprindo, sem nada poupar, tudo que a religião lhes prescrevia. É difícil acreditar que os baús transportados de Esparta, Micenas, Ítaca e outras cidades tenham bastado a suprir tamanhos excessos durante uma década. O vinho lhes chegava da cidade de Lemnos, comprado a um dos filhos de Jasão, com o dinheiro dos espólios.7.Cf. Ibid. Canto VII, 472-475. “(…) Vinho soíam comprar-lhe os Aquivos de soltos cabelos;/ uns davam bronze de volta, outros barras de ferro brilhante,/ peles de bois alguns poucos, e reses ainda, outros com vida,/ ou mesmo escravos.”

Não há dúvidas de que, por todo esse tempo, o saque de pequenas cidades constituiu o centro das preocupações dos Aqueus. A maioria dos Acaios, se tinha notícias dos grandes muros de Tróia, era só como um ponto de referência longínquo, cujo porte elevado, marcado no horizonte a muitas léguas de distância, lhes indicava a direção do continente, servindo de alarme para o recuo das tropas. Os vilarejos, repletos de ouro e riquezas, como se erguessem à beira do litoral, estavam em lugar de destaque, e foram logo alvo de incursões. Os Mirmidões 8. Pequena legião encabeçada por Aquiles., sozinhos, derrubaram vinte e três cidades, onze por terra, e doze por mar. É o que nos conta Aquiles, prezando-se de seus esforços:

“Com minhas naus destruí doze grandes e fortes cidades
e onze por terra, asseguro-o, nos plainos fecundos de Tróia.
De todas elas voltei carregado de espólio magnífico,
que sempre ao filho de Atreu Agamémnon, era uso, levava,
o qual soía ficar para trás junto às céleres naves.”.9.Cf. Ibid. Canto IX, 328-332.

Agora bem, a rica pilhagem obtida nas invasões aos povoados foi formando, no decorrer dos anos, o patrimônio pessoal de cada um dos chefes Acaios, mormente do rei Agamemnon, que levava a melhor parte em todos os saques, não obstante tomasse parte muito modesta nas lutas. No Canto IX, Agamemnon negocia os termos da volta de Aquiles ao exército, e eis o que lhe oferece como paga: caldeiras brilhantes, trípodes, mulheres, sete cidades etc.10.Cf. Ibid. Canto IX, 120-160. , presentes de altíssima monta, contra os quais dificilmente o cabedal de outros chefes poderia competir. Se, por um lado, o acúmulo de relíquias tornara-se coisa banal, por outro, o ponto de partida da Ilíada coincide com o esgotamento dos recursos disponíveis para novas pilhagens, e a subsequente exaustão das táticas até então adotadas pelos Acaios. A filha do sacerdote Crises, cujo rapto serviu de faísca para despertar a contenda entre os gregos, habitava na única cidade que ainda dispunha de seus pertences e que, por isso mesmo, esteve na mira das tropas. Quando os soldados arrematam o ataque à cidade de Crise, justamente no ponto onde Homero começa a narrativa, já não há mais locais intactos na região. Só lhes restava, pois, coligar as esperanças numa possível derrubada de Tróia 11. Ou seja, dar continuidade ao propósito inicial da guerra: arrombar as portas da cidade e recuperar Helena, cujo saque, em tese, saciaria definitivamente a ambição de todos:

“(…) Filho notável de Atreu, mais que todos os homens avaro,
por que maneira os Aqueus poderão novo prêmio ofertar-te?
Conhecimento não temos de espólio abundante ainda intacto,
pois das cidades saqueadas já estão distribuídas as presas,
nem há-de o povo querer novamente reunir isso tudo.
Ao deus entrega a donzela, que três e mais vezes, sem dúvida,
te pagaremos os nobres Aqueus quando for da vontade
de Zeus potente que os muros dos Troas alfim conquistemos.”12.Cf. Ibid. Canto I, 122-126. Neste trecho, Aquiles se posiciona favoravelmente à devolução da filha do sacerdote, opondo-se a Agamemnon. E lhe promete, em troca, recompensas, fiadas à base de um possível triunfo sobre os troianos. Agamemnon, enfurecido, talvez pouco confiante na vitória, preferiu antecipar a presa, tomando a escrava de Aquiles, Briseida.

Entretanto, Tróia já não gozava do esplendor de outros tempos. A duração da guerra, se deixou marcas profundas no humor dos Acaios, esvaziou de jóias os antigos salões de Príamo, cuja opulência, carcomida, dia após dia, pela erosão dos tempos difíceis, desbotava.13. Cf. Ibid. Canto XVIII, 288-292. “Antes os homens falavam na rica cidade de Príamo,/ em ouro e bronze abundante, e trabalhos de fina feitura;/ mas actualmente vazias de jóias as casas se encontram,/ pois foram todas vendidas na Frígia e na Meónia agradável,/ desde que Zeus poderoso ficou irritado conosco.” Veja o excerto no Canto XVII, versos 220-228, em que Heitor confessa haver extorquido alimentos e relíquias do povo troiano para sustentar os aliados.Os custos da guerra haviam aberto enormes ferimentos no patrimônio nacional. Já o preço pago pelos Acaios era menos de cunho material do que moral. Prendia-lhes o medo de tornarem-se alvo de humilhações e de opróbrio. A derrota de um grande exército contra tão poucos inimigos sairia, em termos de reputação, muito caro.14.Cf. Ibid. Canto II, 119-122. Agamemnon, encenando perante a assembléia dos Dânaos, conta-lhes: “Até mesmo aos pósteros há-de chegar o labéu vergonhoso/ de que um exército acaio de tantos e fortes guerreiros/ haja, sem êxito, feito essa guerra, conquanto lutando/ contra tão poucos imigos, sem nunca lhe vermos o cabo.” Todavia, os ataques encabeçados pelos chefes dos povos, como Ulisses e Menelau, eram realizados por pequenas turmas. Não era necessário, para a tomada de burgos ou vilarejos, marchar pelo território com um exército numeroso. A caminhada debaixo do Sol até as muralhas de Tróia, e a convocação de todos os chefes com o propósito de um ataque final e definitivo à cidade altaneira, tal como Agamemnon propõe no Canto II, é um passo incomum e inesperado. E não, como se poderia acreditar, um movimento frequente e previsível. Não é surpresa, pois, que Príamo, já em idade avançada, escondido atrás das muralhas, sem nunca tirar os pés da cidade, ignorasse o rosto de seu rival Agamemnon. Do mesmo modo, antes do décimo ano, talvez jamais ocorresse a Heitor levar as tropas troianas até a entrada do acampamento grego, para espremer os inimigos contra o mar, ou atear fogo sobre os navios.15.Cf. Ibid. Canto IX, 351-53. Fala de Aquiles: “Mas nem assim pôde a força deter desse Heitor homicida./ Enquanto parte eu tomava nas lutas ao lado dos outros,/ nunca ele quis combater muito longe dos muros de Tróia.” Ademais, já no Canto X, os troianos cercam o acampamento grego, e lhe armam tendas ao redor. A cena inicial deste canto se passa de noite, e mostra Agamemnon quase arrancando os cabelos, sem pregar os olhos, transparecendo um total despreparo para esta situação. Parece ser um fato sem antecedentes na guerra. Ao contrário, designava aliados 16.  Cf. Ibid. Canto V, 480-481. “Muitos aliados se encontram na grande cidade de Príamo,/ de diferentes países e línguas de vária estrutura.”, vindos de inúmeras partes do mundo, como reforço às cidades menores, que iam conduzidos por algum comandante troiano, para ministrar o socorro às populações indefesas. O fundador de Roma, que à época estava à frente dos Dardânios, parentes de Príamo, encontrou-se com Aquiles numa dessas missões, como ele mesmo diz, dirigindo-se a Licáon:

“Filho de Príamo, qual o motivo de assim me incitares,
contra o meu próprio desejo, a enfrentar o terrível Pelida?
Não seria esse o primeiro recontro que tenho com ele.
Já doutra vez sua lança comprida terror infundiu-me
no Ida abundoso de fontes, ao vir assaltar-nos o gado,
e de Lirnesso e de Pédaso os muros destruir. Mas salvou-me
Zeus poderoso, infundindo-me força e presteza nos joelhos.” 17Cf. Ibid. Canto XX, 87-93.

Se, antes da ira de Aquiles, as incursões dos gregos resumiam-se a pequenos circuitos militares, visando somente a pilhagem, não é absurdo crer que um soldado como Ajax, muito embora fosse bastante proativo, jamais tenha dado na vista de Heitor, ou de outros chefes troianos, durante essas campanhas, e que Diomedes, no meio do fogo cruzado, tenha reconhecido pela primeira vez a Glauco, que pelejava contra ele no palco da luta18Cf. Ibid. Canto VI, 119. Neste verso Homero inicia a narração do encontro de Glauco e Diomedes. Diomedes descobre que seus avós deram acolhida aos ascendentes de Glauco. . Poucos haviam tido a sorte de participar de combates acirrados como o do Canto VIII, e de presenciar duelos como o de Heitor e Pátroclo. Quando houve enfrentamento, os dois lados estavam desfalcados. Jamais ocorrera embate franco e total, all in. O sobressalto causado pelo avanço de Aquiles no Canto XXI é mais um sinal de que os troianos não haviam provado da força do inimigo em sua amplitude máxima. Apoiado nesta ignorância fundamental, Heitor, a princípio, julgara-se capaz de defender a cidade unindo-se, tão só, a cunhados e irmãos, dispensando a assistência de outros aliados. 19 Cf. Ibid. Canto V, 472-474. Diz Sarpédon: “Para onde foi, divo Heitor, a coragem que sempre mostraste?/ Não afirmavas que até sem aliados, sem povo, podias,/ só com os cunhados e irmãos, defender a cidade altanada?” Trata-se de uma expressão hiperbólica e brincalhona, mas assinala o descaso do príncipe. Ademais, como o histórico da luta carecia, até então, de episódios muito traumáticos, é possível que os chefes troianos, lá no começo da guerra, não tenham dado ao caso a atenção merecida.

O material da Ilíada é inédito, não aos olhos do público, mas dos próprios personagens. A surpresa de Príamo, o colóquio de Glauco e Diomedes, a curiosidade de Helena, a hombridade tardia de Páris, e inúmeros outros sinais de um suposto tropeço de Homero, longe de configurarem um caso histórico de deslize narrativo, são, na verdade, marcas propositais de um velho artista.