A Caverna – um conto de Mariel Reis

– por Mariel Reis

Selaram a entrada da caverna. A luz, conforme os soldados deslocavam a pedra, diminuía e o rosto de Antígona imergia na escuridão. Seus olhos não se habituaram logo ao ambiente, em suas mãos o jarro de vinho e o trigo. Libações aos mortos. Lembrou-se dos abutres, dos cães famintos e dos saqueadores: todos percorriam o campo de batalha em busca de butins. Polinices caiu à porta de Tebas como se tentasse subir seus degraus para rever os parentes e puni-los pela escolha de Creonte. Talvez merecessem a morte daquele que preferiu Argos e, assim, o termo dos erros de Édipo. Ao último raio de luz, recordou a si mesma cavando a terra com as próprias mãos para cumprir o rito fúnebre daquele inimigo de sangue comum.

O tempo não tinha sentido dentro da cripta, mergulhada em uma fração da eternidade. Se apurasse os ouvidos, escutaria a voz de seus antepassados. Resgatá-la-iam e a levariam à mesa onde sua fome e sua sede seriam saciadas? Diferente daquele vinho amargo e do trigo que diminuíam o sofrimento de suas vísceras durante o caminho para o Hades. Não tenha medo, minha filha! À sua frente, andrajoso, Édipo, vendado, acenou sob o cone luminoso. Antígona caminhou até o pai, certa de que não pertencia mais ao mundo dos vivos e ele desapareceu. A caverna retornou à escuridão e a heroína se devolveu ao desânimo. Não soube da morte de Hêmon, atravessado pela própria espada, ou da desgraça da cidade. Provavelmente, a escolta que a levara teria desaparecido depois de deixá-la na prisão-fortaleza.

O menino conduziu Tirésias para casa depois da negociação com Creonte. Os deuses ficaram insatisfeitos com o destino de Antígona por ter cumprido o rito funerário com o irmão caído em uma guerra fratricida; não só familiares tombados – Argos e Tebas tinham laços fortes tanto quanto os dois soldados mortos. Naquela manhã, quando consultou o oráculo, a terrível resposta do céu se materializou em um combate de pássaros em uma árvore. Não se ouvia seus gritos. Só se viam suas expressões furiosas conforme o relato assustado do menino.  Encaminhou-se ao palácio para advertir o rei que havia ajudado a subir ao trono, sem êxito. Lembrou-se de Édipo e de sua arrogância. Levantou-se uma nuvem de poeira avermelhada, cobriu os dois caminhantes. Todos jurariam uma visita à mansão dos mortos.

O deslizamento de pedras revelou uma salamandra albina feito um fogo frio. Sem olhos, percorreu com rapidez as paredes, descobriu um túnel pelo qual já desapareceria, quando pareceu convidar a hóspede para segui-la. Antígona não temeu a descida. Talvez o Hades ou uma saída indesejada. Novamente, uma voz: – Pode se aproximar. Seus irmãos fazem a refeição e há um lugar à mesa para você. Jocasta? Jocasta? A luz fria do animal apontou a escadaria. Desequilibrou-se, Etéocles a tomou nos braços e rodopiou. Os olhos de Antígona viram um longo assentamento subterrâneo iluminado pelos anfíbios com as propriedades luminosas de suas peles. Sentindo-se em casa, não fez perguntas, olhou ao redor, não viu Ismênia e se inquietou. Tranquilizou-se quando a irmã com uma terrina fumegante, echarpe sobre a marca no pescoço, disse: – É melhor comermos enquanto está quente! Ninguém argumentou em contrário.

Mariel Reis é contista e vive no Rio de Janeiro. Participou de diversas antologias literárias. É autor de Vida Cachorra (Ed. Usina das Letras)