‘Véspera’, por Carla Madeira – resenha de Décio Machado

-Por Décio Machado

Temos duas histórias alternadas, recurso bastante manjado, mas que pode ser bem eficaz quando o entrelaçamento é bem feito. Não é o caso aqui, pois as histórias simplesmente correm em paralelo, de forma independente.

Uma delas é sobre uma mulher chamada Vedina, que está muito brava com o marido, decidida mesmo a deixá-lo. Ela está levando o filho, Augusto, para a escola, mas está nervosa; o filho não lhe dá paz nem por um minuto e, numa espécie de surto, ela para o carro e larga a criança numa calçada qualquer. Logo depois, se arrepende e tenta voltar, mas ele não está mais lá. Essa história é contada em capítulos muito curtos e cobre acontecimentos ao longo de um único dia.

A narração principal começa com o casal Custódia e Tonico. Ele é louco por sexo, quer transar com ela todo dia. Ela não gosta muito dessa atividade, tem certa repulsa, mas quer engravidar. Não consegue. Volta-se para a religião. Deus há de lhe dar um filho se ela for fiel. A relação entre eles é péssima, ela o despreza. Ele, amargurado e ressentido, bola uma vingança inusitada: quando os gêmeos nascem, ele os registra com os nomes de Caim e Abel.

O comportamento absurdo dele é seguido de uma decisão absurda dela: chamar os dois de Abel. Segundo a autora, isso é “inverossímil como só a realidade sabe ser”. Aí o leitor vai julgar. Eu não achei que essa coisa dos nomes tem muita importância para o livro. É um acréscimo gratuito. Os meninos poderiam ter outros nomes sem que se perdesse nada de relevante.

Os dois vão crescendo, e as diferenças entre eles vão ficando mais perceptíveis. Caim é alegre, extrovertido, “bom aluno”, esportista, membro do grupo de estudos avançados de matemática. Abel é sorumbático, ensimesmado, “mau aluno”, repete de ano, ressentido da vida mais fácil que o irmão leva. Os dois vão se apaixonar pela mesma moça, Veneza. Ela vai ficar com Caim, óbvio. Abel acaba ficando com Vedina (é ele o pai de Augusto, o abandonado), porém eternamente apaixonado pela mulher do irmão.

O tema da rivalidade entre irmãos é interessante, mas o livro é monótono. Caim é bom aluno; os professores e colegas gostam dele. É inteligente e extrovertido. Abel é mau aluno; o professor de matemática não gosta dele, o chama de burro. Ele é tímido, introvertido. E as páginas se sucedem, girando e girando em torno disso, explicando que o contraste entre eles é grande, porque um é bom de matemática e se vira socialmente, enquanto o outro tem dificuldade e não sabe lidar com as pessoas. E diferentes personagens explicam que professor não pode chamar aluno de burro, que existem diferentes tipos de inteligência, que os tímidos sofrem em silêncio, e ficamos sabendo, mais uma vez, que Caim é bom aluno e Abel é mau aluno, que eles são iguais por fora, mas muito diferentes por dentro, que coisa, um é extrovertido e o outro introvertido, um vai bem em matemática e o outro vai mal, e assim por diante. Página após página, assunto é dissecado e explicado ao leitor até a exaustão.

A história paralela, apesar de bem mais curta, também é assim. Vedina abandonou o filho e agora está desesperada. Quer encontrá-lo, mas não encontra. Quer ligar para alguém, mas tem medo do que vão dizer, do que vai ser acusada. Isso é o que ficamos sabendo em um dos capítulos. No outro, percebemos que Vedina abandonou o filho e agora está desesperada, quer encontrá-lo e não encontra, quer ligar para alguém, mas tem medo. Em mais outro, a história retorna para esclarecer que Vedina abandonou o filho e está desesperada, se arrepende, tem medo do que vão dizer. Já no capítulo seguinte, a mesma coisa. A verdade é que esses trechos em paralelo não acrescentam nada, poderiam ter sido cortados por um editor mais rigoroso.

Outra coisa cansativa é o quanto a leitura é deprimente. Todo mundo é muito triste: Abel é triste, Custódia é triste, Antunes é triste, Vedina é triste. Todas as relações humanas abordadas são marcadas por rancor, mágoa, sofrimento. Com exceção de Caim, não se vê ninguém que seja — nem digo feliz —, mas razoavelmente satisfeito com a vida. Os irmãos não se dão, os filhos não se dão com os pais, os casais não se dão, é tudo sempre gravitando em torno da infelicidade, de lembranças pesadas, de ressentimento. Obviamente, o escritor tem liberdade para escolher o assunto que lhe interessa. Se quer falar só disso, ficar cortando tristezas em fatias bem finas, como um salame, fique à vontade. Mas que é cansativo, é.

Ressalto um trecho do qual gostei. Uma reflexão de Vedina:

“Sentia falta de que Veneza quisesse ser, ou ter, alguma coisa que fosse dela (…) Que quisesse pegar emprestado um vestido ou uma blusa, ou quem sabe quisesse ter pernas grandes e bem-feitas como as dela. Queria ver Veneza desejar alguma coisa que só ela tivesse. Só uma pequena inveja pode sacramentar uma amizade.” A percepção da natureza transitiva do desejo é perspicaz. Infelizmente, Madeira joga essa observação meio de lado, e um tema interessante acaba desperdiçado. Aliás, num romance sobre irmãos gêmeos, é estranho que a questão da imitação e da inveja seja tão pouco explorada.

No geral, o texto se esforça demais por ser poético, por ser inspirado, lírico, inusitado. É outra característica que considero cansativa.

“Seus sentimentos tinham a liberdade do desconhecido.”

“Foi fisgado por um devir que se oferecia a ele como uma promessa.”

“A distância entre os dois pesou como um amor que escapa.”

“A paisagem infiltra-se nos gestos como os ecos da fé e o cambalear dos bêbados.”

“A privacidade, direito inalienável do que não deseja se confessar, não tem poderes de tornar o que grita invisível. E se, por um lado, pode esconder fatos, por outro, não pode dominar seus vapores.”

“Há sempre uma faixa de volume tolerado ao desrespeito, a textura da ironia consanguínea, os tons menores da tristeza e a resiliência do amor, quase sempre nas pausas, além do som, ora estridente, ora sutil, das entrelinhas.”

“O tempo, inabalável na mansa malha dos dias e das noites, nunca ofega. Inspira e expira o ventre onde tudo se cria. A mais sutil mudança na pedra, o deslocamento da menor partícula de ar divisível, o mínimo escorrer das águas, a insignificante transformação humana se dão nas tramas airadas do tempo.”

“Ignorou o fio de sangue que manchou, como um dominó, a meia branca do filho.” (Manchou como um dominó?)

“Esse pensamento dominava suas aleatórias e infalíveis insônias.” (Se são infalíveis, acontecem toda noite; então aleatórias não são.)

“Foi levando dona Custódia até a porta e se despediu misericordioso. Ela saiu caminhando sobre pernas inconformadas.” Por que não dizer que ela saiu inconformada? Para quê essa firula de dizer que foi sobre pernas inconformadas?

Caim brilha academicamente no final do ano, enquanto Abel se descobre repetente. “Uma coincidência cruel que a luz de um tenha brilhado com a sombra do outro. O que tornava a luz mais luz e a sombra mais sombra.” O leitor vai perceber isso sozinho, não precisa ficar explicando.

“Veneza (…) contou a Custódia e a Antunes exatamente o que Caim dissera a ela: que amava o cheiro da rosca que a mãe assava nas manhãs de sábado e o gosto dos biscoitos de queijo (…) que sempre adorou as mãos habilidosas da mãe e as coisas que elas eram capazes de fazer. Lembrava-se dos lençóis perfumados que ela estendia de um jeito impecável (…) e da sensação de entrar em um mundo sereno e seguro quando se deitava.” Que adolescente do sexo masculino diria esse tipo de coisa? Parece que temos aqui um aluno do ensino médio que fala como se fosse… Carla Madeira.

A autora tem sensibilidade, sabe bolar um personagem com sentimentos de verdade e maneja bem a língua portuguesa, apesar dos excessos. Se pelo menos ela encontrasse um estilo um pouco mais contido, se evitasse explicar tudo exaustivamente e desistisse de ser tão poética o tempo todo, acho que poderia criar obras realmente boas.