“Aníbal”: Uma novelita em três partes – por Pedro França Ayres

Um aviso aos incautos, entre os quais certamente não se encontram os leitores da Unamuno: apesar de escrita na abusadíssima chave da autoficção, a história abaixo nada tem de “auto”, salvo a descrição de um ou outro carro suíço, na futura segunda parte. É que anda muito na moda romancear a própria vida, refogando o sofrimento pessoal numa receita vagamente francesa, alla Annie Ernaux e Édouard Louis. Partindo desse molde cansado, inseri, abaixo da superfície auto ficcional, uma história terrível, inspirada em certos autores do gótico inglês, contada através de depoimentos (neste caso e-mails e arquivos de texto enviados ao Pedro de Almendra). Assim, os personagens, inclusive o narrador, nada têm a ver com os seus homônimos, vivos ou mortos. Dito de outra forma, mais óbvia, para satisfazer nosso tempo tão insensível a nuanças: o Pedro França Ayres que conta essa história não sou eu e nenhum dos Mendes Oliveira existe. E convenhamos: caso tomasse minha própria vida como matéria de romance, não acham que eu me pintaria melhor do que sou, e não o contrário? Mesmo esse expediente, o de piorar a nossa imagem em nome de uma boa história, nada tem de original. Basta folhear qualquer página de Robert Louis Stevenson (especialmente os relatos de viagem) de Javier Marías, de W.G. Sebald, de Witold Gombrowicz, de José Cândido de Carvalho, de Herberto Sales, de Maria José de Queiroz, de Jorge Luis Borges, de Georges Perec, de Marcel Proust, etc…

I

Pedro,

Obrigado uma vez mais por atender o telefone ontem à noite. Sei da sua aversão às conversas por celular e peço-lhe desculpas – desta vez por escrito – por fazê-lo perder o treino de Jiu-Jitsu na Barra Funda, embora nada me seja mais estranho que essa mania do corpo a corpo.

Mas, vá lá. Daquele nosso breve encontro no Conjunto Nacional, no ano passado, em meio as ruínas da Cultura, você deve ter entrevisto um dos meus graves desvios, se não mesmo o pior: basta uma certa afinidade anímica para que eu me transforme numa gralha sentimental, empurrando boca afora as ondas do meu sofrimento, desprezando o relógio e a pessoa que me escuta.

Abusarei de novo da sua paciência, encaminhando a você e ao Gabriel, o que ficou combinado entre nós, depois de duas horas de lero-lero.

Segue, para publicação na Unamuno, a carta que aquela porca revistinha, de cujo nome prefiro esquecer, aquela lá com nome de Estado nordestino e logotipo de animal das neves, recusou-se a publicar.

Nela, desfiz todos enganos e mentiras, burlas, engodos e aldabrices publicados na infame edição do mês passado, acerca do Dr. Roberto Mendes Oliveira, meu tio-avô.

A recusa oficial, como podem ver, me acusa de “fundamentar todas as supostas correções ao perfil de Roberto Oliveira (sic.)” em “documentos familiares que antes nunca vieram a público”, os quais, “por sua própria natureza e origem duvidosa”, seriam puramente “unilaterais”, compondo apenas uma trama de “fatos alterativos” aos que se fixaram na consciência pública da época, sem qualquer lastro de verdade, incapaz de vencer a narrativa dos jornais e dos órgãos do governo de São Paulo.

Não bastasse esse absurdo historiográfico – o de achar que as fontes do Estado e da Imprensa superam as fontes da família –, a publicação safada e mequetrefe sequer justificou o descaso para com o meu trabalho.

Para o Comitê de Verificação de Fatos da ***** (porque os covardes sempre apelam ao anonimato do coletivo) todo o meu esforço de registrar os depoimentos dos vivos e dos mortos seria inútil e talvez ridículo.

Não sou de reclamar, mas o trabalho de compilação foi imenso, custando-me, no curso de pelo menos dez anos, desde o final da adolescência, muito tempo, algum dinheiro e quase todos os meus laços afetivos.

A mera exposição desses prejuízos pessoais bastaria para fazê-lo compreender, meu xará, as dores da recusa. Afinal, você também é um lírico e, por mais que insista em se atracar, dia sim e dia não, com estranhos de quimono, não há tapume neste mundo que me convença do contrário.

O poeta que vive em você e o prosador que vive em mim só querem esse estranho prazer que vem do lume, de publicar nossas obras e, com isso, acabá-las de vez, cessando o inferno que é trabalhar nelas, nunca satisfeitos, trocando vírgulas e palavras, desesperados, remoendo o dia em que decidimos começar a escrever; tudo isso enquanto fugimos do desejo da aniquilação.

Além disso, Pedro, preciso confessar o motivo maior do meu contato: a história do Tio Bobó é, de certa forma, a história da minha vida. Ao menos, dos meus primeiros anos de maturidade. E a Unamuno tem de me dar a chance que a ***** tirou. Eu imploro.

Mostrei a carta-resposta para minha família. O consenso, entre os que leram e os que não leram, foi o de que arruinei minha reputação perseguindo a tola história do meu tio-avô. Indispus-me com todos, inclusive com os meus confidentes, e acabei expulso da casa dos meus pais. Proscrito dos casarões do Jardim Europa e do Jardim América, tornei-me um pária quatrocentão.

Arranjei um emprego na Faria Lima, vendi meu título na Sociedade Harmonia de Tênis e estou aos poucos pagando o amargo preço de me tornar um burguês em quase tudo, exceto na fascinação gratuita pelo passado da família.

Sei que não posso cobrar dos vivos o perdão por meus atos, mas senti-me obrigado a defender os mortos, os meus mortos, pelo menos, dos ataques contínuos daquela revistinha.

Como sei que você estuda na USP e não está dispensado de cultivar uma espécie de petit progressisme chic, talvez acompanhe as publicações daquele periódico lamentável.

Desde o início do ano, a ***** tem jogado ao mundo “perfis críticos da tradicional família paulistana” (sic.), dedicados, a cada mês, a “desmistificar” certas figuras e a expor “a violência por trás dos grandes nomes da cidade, cujos descendentes passam as tardes à beira das piscinas dos clubes exclusivos dos Jardins (sic.), impunes e inconscientes.”

Por conta dessa “linha editorial”, a história privada da minha família, dos Mendes Oliveira1, já fora duas vezes alvo desse assédio jornalístico.

A primeira vítima, por uma espécie de cavalheirismo inconsciente, foi uma mulher, Lúcia Augusta Mendes Oliveira. Esse mítico nome, entoado durante as liturgias domésticas da minha infância, sempre que se serviam pratos e mais pratos de queijo branco e goiabada cascão, sobremesa que ela comia, segundo minha mãe, belisco por belisco, cedendo homeopaticamente à tentação agridoce e carmesim – teve revisitadas todas as suas filantropias.

Segundo o periódico, todas as obras de caridade de Lúcia Augusta, et non paucas, pecaram por sua “incompletude racial”, seja lá o que isso queria dizer. Ao que parece, essa publicação destinada a lavar a consciência culpada dos filhos de banqueiros, não se satisfez com a generosidade oliveirense para com os mais necessitados, os quais calharam de sempre sair, segundo uma tia minha, “esbranquiçados” nas fotos.

Ora, aqueles pobres coitados, por mais negros ou pardacentos que fossem, ostentando írises de profundo castanho, eram esclarecidos pelas limitações fotográficas da época (circa 1940, 1950), segundo me garantem alguns parentes contemporâneos, inconformados com as acusações da revista *****, mas sem a coragem de enfrentá-la.

Eis a explicação, mais do que razoável, da “branquitude absoluta (sic.)” da filantropia de Lúcia Augusta. Não fosse por isso, podemos sempre apelar ao sobrenatural, à aura própria dos quatrocentões.

Afinal, outras fontes, mais afastadas da família, residentes do Burghölzli, em Zurique, garantiram-me que esse efeito “era causado pela própria Dedé, dona de uma beleza radiante e radioativa, cheia de luz e brilho”, testemunho corroborado pela imprensa contemporânea, entrando para o rol dos faites accomplis, já que Lúcia Augusta Mendes Oliveira ficou em terceiro lugar no 1o Concurso Miss São Paulo”2.

Como você deve imaginar, essa anedota mística, de todo significativa para livrar seu nome de todos os pecados dos nossos tempos, escapou aos repórteres da revistinha.

O segundo a ser sacrificado no altar daquela infame publicação foi Rodrigo Cândido Mendes Oliveira. Sócio oculto de Joaquim Eugênio de Lima e o verdadeiro criador da Avenida Paulista, esse visionário tornou-se, para a revista *****, o “principal responsável pelo projeto de criação de um bairro de luxo, longe do populacho que assomava os Campos Elísios e o Higienópolis”.

A infame magazine esqueceu-se de que coube a Rodrigo Cândido, e não a José Borges de Figueiredo, a criação de um dos cartões postais da cidade, o vão livre do MASP.

Aliás, não falta quem hoje defenda, sobre as origens dessa afetação arquitetônica, uma história ao mesmo tempo oficial e alternativa. Oficial, porque repetida pela imprensa, pela academia e pela boca miúda quatrocentona; alternativa, porque completamente mentirosa.

Trata-se do mito que envolve aquele bendito lote de terra: José Borges de Figueiredo, o sócio mais ostensivo de Joaquim Eugênio de Lima, teria negociado a venda do antigo Belvedere Trianon com a Prefeitura de São Paulo, sem nada dizer sobre a vista e o destino último do imóvel.

Uma hipótese chã, desprovida de qualquer graça ou beleza, consagrada pela intelligentsia uspiana desde 2019, por conta do livrinho mal escrito do Sr. Pisani.3

Na verdade, o terreno foi doado à prefeitura sob a condição de que a vista fosse mantida, pois o meu tataravô (avô do Tio Bobó), alma profundamente artística, gostava de olhar os pássaros voando pela Serra da Cantareira: os gaviões precipitando-se sobre as pombas, as pombas se estrebuchando entre os ratos, tudo isso era flagrado por ele, que morava praticamente em frente e colecionava binóculos.4

As acusações de racismo e “nojo social” não provocaram a mínima reação em minha família, malgrado minhas indignações durante os jantares. Para ser sincero, havia muito de performance na minha irritação, pois nenhum desses dois parentes me era tão caro quanto o Tio Bobó.

Aliás, ninguém me era tão importante quanto ele, apesar de eu nunca o ter conhecido. Com as histórias do Tio Bobó aprendi tudo o que sei a respeito da natureza humana. Elas me ensinaram a superar meus próprios limites, em busca da perfeição no ofício.

Tudo o que fez o Tio Bobó, conforme pude apurar, era marcado por uma consciência fixa, quase obsessiva, de perfeição. Antes de sumir de São Paulo – e talvez do Brasil –, foi um monge trapista do divã, o atleta olímpico da psiquiatria, maior que Nise da Silveira e Juan Cesar Müller.

Por isso, eu jamais poderia aceitar o perfil publicado na *****. Nele, falta muita verdade e sobra muita mentira. Leia e publique a carta-resposta que acompanha este e-mail, Pedro. Por favor.

Só assim, você e o mundo inteiro saberão que o Tio Bobó foi muito mais do que um simples canibal.

1 Meu nome real, em que estão dispostas todas as marcas do passado, é Pedro França Mendes Oliveira Ayres. No que por anos imaginei ser apenas um surto compreensível de pragmatismo, minha mãe, Maria Eugênia, sobrinha do Tio Bobó, privou-me de todos os seus sobrenomes, deixando apenas os do meu pai. A justificativa oficial, repetida por anos como um refrão na cantilena da nossa mitologia familiar, era matemática e econômica: evitar com que eu perdesse tempo escrevendo meu nome nas provas do colégio e nas repartições públicas. Mais tarde, o que me foi revelado durante minhas pesquisas tornou a imposição da minha mãe algo cruel e imperdoável. Não quero, contudo, me adiantar. Tudo será explicado na carta-resposta.

2 A história de quem me prestou esse depoimento, da alma sã e sensível que tentou encurtar seu tempo entre nós jogando-se sobre os carros da 23 de maio, frustrada pela copa de uma árvore e o diâmetro do seu guarda-chuva, será contada num volume ainda a ser publicado da historia familiaris dos Mendes Oliveira.

3 PISANI, Daniele. O Trianon do MAM ao MASP: Arquitetura e política em São Paulo (1946-1968). São Paulo: Editora 34, 1ª ed., 2019.

4 Minha tataravó, em carta à irmã da mãe do Tio Bobó, ofereceu uma hipótese com certeza caluniosa para o vão: havia, lá pelas tantas do horizonte, um convento tão isolado que as freiras se furtavam de descer as cortinas, circunstância que se casava muito bem com os óculos de enxergar à distância de Rodrigo Cândido Mendes Oliveira.