Rilke, nas suas Cartas a um jovem poeta (consulto aqui a tradução de Pedro Süssekind),¹ diz o seguinte:
Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.
Tanto na compreensão quanto na criação. Com isso ele quer dizer que aqueles que julgam as obras de arte, sejam críticos profissionais, sejam observadores comuns, dependem também, tanto quanto os artistas, de um sincero e profundo amadurecimento interior para fazer bem o seu julgamento.
Tudo está em deixar amadurecer, isto é, em refrear o impulso de tomar partido, de entrar para o clube dos que julgam assim ou assado. Passar ao largo das repercussões e deixar a obra decantar em si mesmo. Porque uma coisa são as repercussões de uma obra na cultura, outra é a sua qualidade enquanto construção poética. Há certa relação entre elas, mas não é direta; uma obra-prima pode passar totalmente despercebida pelas pessoas, enquanto um arranjo mal feito, para a desgraça geral da nação, pode causar o maior auê e servir de ponto de partida para discussões, leis e toda uma revolução cultural.
É que o mérito de explorar as repercussões culturais de uma obra, ou mesmo de fabricá-las, cabe muito mais aos agentes culturais (e comerciais e políticos) do que ao artista, principalmente hoje, numa era em que as estratégias, as técnicas e os meios propagandísticos criam um contexto cultural em que se pode vender qualquer coisa para qualquer pessoa sem muito esforço, como se aquilo não fosse a materialização mesma da inutilidade, mas sim o elixir da vida eterna. Não é recomendável, portanto, hoje mais do que nunca, iludir-se com o clamor uníssono das massas quando esta louva uma obra de arte, porque foi-se o tempo em que a glorificação popular correspondia à qualidade artística (aliás, há controvérsias de que esse tempo tenha mesmo existido).
Mas nem tudo é truque de marketeiro. O público também tem uma parcela de culpa nessa história. Por que ele compra como ouro o que não passa de um punhado de areia?
Porque não sabe mais avaliar uma obra de arte.³
O público de hoje aprecia uma obra como quem ouve um discurso: em busca de uma opinião. Quer saber o que ela defende e o que ela ataca; o que ela propõe. Ele age como se o homem só fosse capaz de absorver uma comunicação que seja informativa; sua capacidade de captar uma comunicação poética, e portanto simbólica, cujo intuito não é o de convencer mas o de mostrar, está para ele atrofiada, em coma.
Não se sabe mais avaliar uma obra porque supõe-se, para começar, que conteúdo e forma sejam coisas distintas. O conteúdo seria então a mensagem que temos que entender — porque deve haver, tem de haver, uma mensagem, já que só absorvemos informações —, e a forma seria apenas aquilo que a obra nos causa emocionalmente. Logo, se ficamos muito emocionados e entendemos a moral da história, achamos que a coisa está bem feita e dizemos: “É muito boa”. Essa é a análise geral do público diante de uma obra de arte, mais cartesiana impossível: informações e sensações; res cogitans e res extensa. Com isso, atinge-se (de imediato, é claro, porque tudo é urgente) aquilo que se costuma considerar o ápice da apreciação artística: uma opinião.
Ou melhor, falta um elemento determinante ainda para a formação da opinião: o consenso. O espectador tira suas conclusões sobre a obra (imaturas ainda, mas pelo menos próprias), mas logo depois busca saber o que os outros estão falando dela; só então é que ele escolhe um lado e passa a criticar, negativa ou positivamente, o que viu, às vezes até contrariando suas impressões iniciais em virtude da autoridade que dá a uma figura externa, a um agente cultural. Pois é aí que se perde de vez a capacidade de formar um critério menos subjetivo de apreciação, e é nessa hora que o público, como dizia a minha avó, passa a chamar urubu de meu loiro.
Nossa época está especialmente à mercê dos agentes culturais porque não sabe mais nada a respeito de construção poética e é incapaz de discernir se a avaliação deles corresponde mesmo ou não à qualidade artística das obras. Não é mais parte da nossa cultura aprender a tocar instrumentos na infância e seguir nos desenvolvendo neles ao longo da vida, sem o menor intuito de viver disso; não temos mais o costume de cantar nos corais em vozes abertas e saber entrar em harmonia com duas ou mais linhas melódicas; não temos a menor ideia de como encontrar a cor certa, o pincel correto e a tela adequada para começar a retratar o nosso próprio quintal; não lemos mais e temos pavor de escrever (aqueles que ainda sabem); não sabemos mais, enfim, que o jeito de dizer uma coisa também diz uma coisa (forma é conteúdo). Não nos confrontamos mais, em nenhum momento da vida, com o fazer poético, e não queremos ler ou saber a respeito porque não pretendemos “viver disso” — e para a nossa cultura, só faz sentido conhecer e se dedicar àquilo que dá sustento e uma carreira.
O público se tornou incapaz, então, de discernir o que é bom artisticamente e o que não é, o que vale a atenção e o que não vale — e já que é assim, passou a discutir o que é tido por bom. Passou a se interessar mais não tanto pela obra, mas pelas repercussões dela, extraídas ou fabricadas; passou a analisar e a discutir temas, ideias, projetos culturais e políticos, teses de opinadores e colunistas, mas não parou mais para absorver o impacto não-discursivo das obras. Para essa concepção de mundo (porque isso não é só um ponto de vista, é toda uma concepção de mundo), a função da obra de arte é ser ponto de partida — fazer pensar, trazer para a discussão, servir para uma análise crítica. E o que mais? Nada mais.
(Não digo que ela não sirva para isso, mas sim que não serve só para isso, e nem essencialmente para isso. Teria Camões escrito Os Lusíadas só para trazer uma ideia à discussão? Os Concertos de Brandenburgo foram compostos para fazer as pessoas pensarem? Não seria mais fácil mandar uma carta?)
O problema piora. Nós estamos nessa há tanto tempo que boa parte do que se produz artisticamente hoje é feito dentro dessa mesma concepção. O artista não quer mais do que provar um discurso e servir de bomba emocional para empurrar as massas para lá ou para cá. Não é nem mais o caso, portanto, de o público estar, por conta da atrofia de suas faculdades intelectuais, vilipendiando as produções e rebaixando os artistas — eles mesmos é que fazem questão de se rebaixar e rebaixar o que fazem, por motivos cuja exploração não cabe aqui mas que não são tão secretos ou obscuros aos mais atentos.
Passa muito longe de nós e dos nossos artistas a concepção de Rilke:
Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo isso diariamente, aprendo em meio a dores às quais sou grato: a paciência é tudo!⁴
Mas não é possível ter paciência se devemos discutir, propor, analisar.
*
Uma obra de arte não deve ser e nem ser vista como um discurso. Ela não deve vir e nem ser usada para provar nada. Não deve se limitar a prestar um favor às discussões reinantes servindo apenas como ponto de partida ou de exemplificação desta ou daquela opinião. Se tudo o que ela faz é isso e dela não se tira mais nada, ela é formalmente pobre. Se dela tiramos apenas mensagens e um punhado de sensações, mas jamais uma experiência transformadora de aumento da consciência em virtude da intuição de uma realidade que nos transcende, ela é formalmente pobre.
As grandes obras de arte são raras oportunidades que temos de crescer em espírito, naqueles âmbitos mais profundos e determinantes da experiência humana na terra, por meio do contato que podemos fazer com realidades que não conhecemos ou que fazemos questão de ignorar. Esse contato só é possível devido a um cuidado extremo por parte do artista com a forma pela qual ele vai se comunicar conosco, porque ele entende que não basta nos dizer de qualquer jeito o que ele (a duras penas!) viu e descobriu; se bastasse, ele escreveria um recadinho, faria um depoimento ao vivo improvisado. Mas o que ele viu e descobriu não é apenas um conteúdo discursivo; é uma realidade integral, que exige os mais variados recursos, materiais e técnicas para ser expressada — e que será melhor captada à medida que o espectador conheça os recursos, materiais e técnicas utilizados pelo artista.
Daí a importância do aprendizado poético, de conhecermos — razoavelmente, que seja — alguns princípios de construção poética. Sem esse conhecimento, mesmo diante de um grande artista e de uma grande obra nós não seremos capazes de captar o que estamos presenciando. Continuaremos vivendo, nos movendo e sendo cartesianamente, ao prazer daquilo que nos emociona e nos convence.Vale repetir: uma boa obra de arte nos conduz a uma experiência transformadora de aumento da consciência em virtude da intuição que nos proporciona de uma realidade que nos transcende; ela não carrega apenas um conteúdo discursivo, mas sim a expressão formal de uma realidade integral, captada e “representificada” pelo artista por meio dos mais variados recursos, materiais e técnicas, e que será melhor captada à medida que o espectador conheça os recursos, materiais e técnicas utilizados pelo artista. Ou, em outras palavras: “Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz”.
Notas
- Porto Alegre: LP&M, 2009.
- P. 36.
- Aqui vale o termo “produção artística” também, para que não pareça que estou falando só de grandes obras; estou falando de qualquer produção artística de qualquer gênero.
- Rilke, idem.