— por René Girard
(Tradução por Renata Broock)
Na minha opinião, o tema da literatura e do cristianismo é literalmente a história de toda a minha existência intelectual e espiritual. Muitos anos atrás, comecei com literatura e mitos, e depois passei para o estudo da Bíblia e das escrituras cristãs. A grande literatura literalmente me conduziu ao cristianismo. Este itinerário não é original. Ainda acontece todos os dias, e vem acontecendo desde o início do cristianismo. Aconteceu com Santo Agostinho, claro. Aconteceu com muitos grandes santos, como são Francisco de Assis e santa Teresa de Ávila que, como Dom Quixote, eram fascinados por romances de cavalaria.
Um dos maiores exemplos em que a literatura conduz ao cristianismo está em Dante. Essa experiência é expressa simbolicamente pelo papel de Virgílio na Divina Comédia. Existem muitas razões pelas quais Dante escolheu Virgílio. Na Eneida, Virgílio faz seu herói Enéias visitar o inferno. Mais importante foi o fato de que, na Idade Média, Virgílio era considerado um profeta de Cristo, e ainda mais importante foi o fato de Virgílio ter sido muito apreciado por Dante e ter realmente desempenhado um papel, creio eu, em conduzir o autor ao cristianismo.
Que papel? Para entender, você precisa interpretar literalmente a ideia de guiar alguém pelo inferno. O mundo da Eneida é realmente um mundo de violência infernal e, segundo Dante, a função da literatura profana é nos guiar através do Inferno e do Purgatório. Foi isso que Virgílio fez por Dante, e foi de grande ajuda, porque o inferno não é um lugar muito agradável para se viver. Não é nem sequer um lugar agradável para se visitar. Se você ainda tiver um pouco de bom senso quando estiver no inferno, você vai querer sair, por razões muito egoístas.
O bom senso e o egoísmo podem ser bons até certo ponto. Este fato é reconhecido na parábola do filho pródigo. Por que o filho pródigo volta para o pai? Não por alguma grande razão mística, nem mesmo porque está arrependido. Ele decide voltar quando percebe que mesmo o servo mais humilde da casa de seu pai está em melhor situação do que ele após ter ido embora. Ele ainda tem bom senso e egoísmo suficientes para reconhecer o inferno quando se encontra nele e desejar escapar.
No meu caso, não foi Virgílio ou mesmo Dante quem me guiou através do inferno, mas os cinco romancistas que discuti no meu primeiro livro: Cervantes, Stendhal, Flaubert, Dostoiévski e Proust. Quanto mais moderno o romance, mais você desce pelos círculos de um inferno que ainda pode ser definido em termos teológicos como é em Dante, mas agora também pode ser definido em termos não religiosos: em termos do que acontece conosco quando nossas relações com os outros são dominadas exclusivamente pelos nossos desejos e pelos deles, e as relações deles dominadas pelos desejos deles e pelos nossos. Porque nossos desejos são sempre miméticos ou imitativos, inclusive e especialmente quando sonhamos ser completamente autônomos e autossuficientes, eles sempre nos tornam rivais dos nossos modelos e depois modelos dos nossos rivais, transformando assim as nossas relações num inextricável emaranhado de desejos idênticos e antagônicos que resultam em frustração sem fim.
A frustração é a regra no gênero, mas pode ser de dois tipos. Se formos impedidos pelo nosso modelo de adquirir o objeto que ambos desejamos, nosso desejo continua a intensificar-se dolorosamente como resultado da privação. Se, pelo contrário, adquirirmos o objeto que desejamos, o prestígio do nosso modelo desmorona, e nosso desejo enfraquece e morre ao ser realizado. Este é o segundo tipo de frustração, e é pior que o primeiro. Quando isso acontece, procuramos outro modelo para o nosso desejo, mas pode chegar o momento, depois de muitas dessas experiências, em que ficamos totalmente desencantados e não conseguimos encontrar nenhum modelo novo. Este é o pior tipo de frustração, aquela que os especialistas chamam de desejo pós-moderno ou pós-cristão. Talvez possamos até chamá-lo de desejo pós-mimético.
A mortalidade do desejo, sua finitude, é o verdadeiro problema do nosso mundo, pois desestabiliza até as instituições mais fundamentais, a começar pela família. Nossas teorias psicológicas e psicanalíticas nem sequer reconhecem a realidade deste problema. O desejo segundo Freud é imortal e eterno, pois o ser humano deseja apenas substitutos para seus pais, e não pode deixar de desejá-los. Freud não fala sobre a morte do desejo. Somente a grande literatura tem muito a dizer sobre o assunto.
O individualismo do nosso tempo é realmente um esforço para negar o fracasso do desejo. Aqueles que afirmam ser governados pelo princípio do prazer são, via de regra, escravizados por modelos e rivais que fazem da sua vida uma frustração constante. Mas são vaidosos demais para reconhecerem a sua própria escravidão. O desejo mimético nos faz acreditar que estamos sempre à beira de nos tornarmos autossuficientes através da nossa própria transformação em outra pessoa. Nossa pretensa transformação num deus nos transforma, como diz Shakespeare, em asnos. Nos termos de Pascal, torna-se “Qui veut faire l’ange fait la bête” (Quem quer ser como um anjo agindo como um bicho).
Compreender o verdadeiro fracasso do desejo leva à sabedoria e, em última análise, à religião. Muitas filosofias e todas as religiões partilham dessa sabedoria que a tendência moderna nega. A grande literatura compartilha dessa sabedoria porque não trapaceia com o desejo. Ela mostra o fracasso necessário do desejo indisciplinado. A melhor literatura mostra a impossibilidade de autorrealização através do desejo. As obsessões miméticas são terríveis porque não conseguem vencer sua própria circularidade, mesmo quando sabem disso. São a mãe de todos os vícios, como drogas, álcool, sexualidade obsessiva, etc. Não é possível sair do círculo, mesmo quando o seu raio se torna cada vez menor e o nosso mundo se torna cada vez mais obsessivo.
Ao contrário da maioria das filosofias que são fundamentalmente estoicas ou epicuristas, o judaísmo e o cristianismo não pregam nenhum tipo de autorrealização ou auto-absorção. Nem pregam a aniquilação do eu, à maneira do misticismo oriental. O cristianismo reconhece a bondade última da imitação, bem como a bondade e a realidade da pessoa humana. Ensina que, em vez de nos rendermos ao desejo mimético, seguindo a mais nova moda e adorando o mais recente ídolo, devemos imitar apenas Cristo ou modelos não competitivos semelhantes a Cristo.
Se alguém está gravemente envolvido nessa circularidade e quer sair dela, deve passar por uma experiência de mudança radical que as pessoas religiosas chamam de conversão. Na visão clássica, a conversão não é algo que fazemos, mas a intervenção de Deus em nossas vidas. A maior experiência para os cristãos é a experiência de se tornarem religiosos sob uma compulsão que eles sentem que não pode vir deles mesmos, mas somente de Deus. O que torna a conversão fascinante para quem tem essa experiência (mas também para quem não a tem) é o sentimento de que, em nenhum outro momento da vida do ser humano, Deus está mais próximo de nós e realmente intervém nas nossas vidas.
Esta experiência não é necessariamente idêntica à experiência cristã. Muitos bons cristãos nunca experimentaram isso, ou porque, desde que se lembram, sempre tiveram fé, ou porque, embora tenham se tornado cristãos na vida adulta, nunca experimentaram nada dramático o suficiente para ser rotulado como uma conversão. A experiência religiosa dessas pessoas não é necessariamente menos profunda nem menos intensa do que a experiência daqueles que se beneficiaram de uma conversão dramática.
No entanto, a ideia da conversão goza de grande prestígio perante todas as pessoas com inclinações religiosas, porque não há dúvida de que os Evangelhos enfatizam a conversão. A ideia paulina do novo homem e o tema paulino da salvação pela fé podem ser interpretados em termos de conversão radical. Quase tudo em Paulo pode ser interpretado dessa forma.
Há um problema com a palavra que usamos para descrever essa experiência, com a própria palavra “conversão” ou com a palavra grega metanoia. De acordo com meus dicionários, a palavra latina conversio foi usada pela primeira vez no sentido cristão por Agostinho. Mas Agostinho, curiosamente, não a utilizou em Confissões, que é a história de sua própria conversão. Ele a usou pela primeira e última vez em A cidade de Deus (VII, 33) numa frase que se refere aos esforços de Satanás para nos impedir de alcançar a nossa conversão ao verdadeiro Deus.
O problema com a palavra latina conversio é que ela não significa realmente o que todos nós entendemos por conversão cristã e o que o próprio Agostinho sem dúvida quis dizer. Significa girar em círculo; refere-se a uma revolução circular completa que, em última análise, leva de volta ao ponto de partida. Não é isso que representa uma conversão cristã. A conversão cristã não é circular; nunca retorna ao seu ponto de origem. É aberta; caminha em direção a um futuro totalmente imprevisível. Parece-me que o verdadeiro significado latino da palavra é caracteristicamente pagão, no sentido de que reflete a concepção pagã da história e do próprio tempo, que é circular e repetitivo. Esta concepção sempre lembra aquele Eterno Retorno que pode ser encontrado nos Puranas e em outros textos orientais. Várias versões também estão presentes em alguns dos filósofos pré-socráticos da Grécia, especialmente Anaximandro, Heráclito e Empédocles.
A palavra latina conversio refere-se a ações e a processos reversíveis, como a tradução de um texto para outro idioma, e também a metamorfoses míticas. Quando os cristãos adotam a palavra, mudam sua conotação de um fenômeno circular para um fenômeno linear, que é aberto. Significa agora uma mudança que ocorre de uma vez por todas, sem qualquer retorno concebível ao ponto de partida. Portanto, deveria ser irreversível.
A palavra grega metanoia foi usada pela primeira vez nas igrejas de língua grega para designar um certo tipo de penitência. Não designa um movimento circular, mas também não é muito boa para referir a conversão cristã. É uma palavra muito fraca.
Meta-noeo significa mudar de ideia sobre algo; ter dúvidas sobre algo que parecia resolvido; perceber um erro tarde demais, quando não pode mais ser corrigido. Pode significar, portanto, arrependimento, mas nada tão forte quanto o arrependimento cristão quando o convertido ouve a pergunta que Paulo ouviu no caminho para Damasco: “Por que me persegues?”
A conversão cristã é uma transformação tão profunda que nos muda de uma vez por todas e que nos dá um novo ser, digamos assim. O resultado é tão superior que não é possível anular essa mudança, seja recuando ou fazendo um círculo. Para nós, ocidentais, andar em círculos é um destino pior que a morte. É o inferno. A ideia de conversão é muito mais do que reforma, arrependimento, reenergização, reparação, regeneração, revolução ou qualquer outra palavra com “re” que sugira um retorno a algo que existia antes e que, portanto, nos limita a uma visão circular de vida e experiência. Na conversão cristã, há uma conotação de mudança positiva que não fica presa dentro de um círculo.
Os cristãos conferem à noção de conversão uma profundidade e uma seriedade que devem ser reconhecidas para que se aprecie o significado de um episódio importante na história do cristianismo primitivo, a heresia donatista. Os donatistas eram cristãos do século IV no Norte de África que levavam a conversão cristã tão a sério que, depois da perseguição, recusavam-se a reintegrar na Igreja aquelas pessoas que não foram heroicas o suficiente para aceitar o martírio e que tinham renegado a fé. Eles consideravam a conversão cristã algo tão importante que só poderia ocorrer uma vez na vida. Não havia segunda chance. Os donatistas achavam que as pessoas que não tinham coragem suficiente para enfrentar os leões no circo romano e morrer com alegria por sua fé não serviam para serem cristãs.
Eles tinham uma visão tão exaltada da conversão cristã que a ideia de que ela acontecesse duas vezes era uma blasfêmia. Para eles, isso desvalorizava todo o processo e ridicularizava a fé cristã. Os donatistas foram condenados pela Igreja e certamente estavam errados do ponto de vista evangélico. Se seu princípio absolutista tivesse sido aplicado a Pedro na noite da prisão de Jesus, após a sua tripla negação de Cristo, ele não teria sido reintegrado. Nunca teria se tornado o líder da Igreja. Os donatistas estavam errados. Condenar a sua intransigência era certamente a coisa certa a fazer pela Igreja primitiva, mas seu apelo junto a grandes cristãos como Tertuliano nos dá uma pista do quanto a Igreja primitiva levava a sério a noção de conversão.
O aspecto da literatura que corresponde a essa visão, a essa visão absoluta de conversão, é a crença, que defendo, de que as formas mais notáveis de criação literária não são, via de regra, o produto meramente do talento nativo, do puro dom de criação literária, embora esse dom exista. Também não são o produto de uma habilidade ou técnica adquirida, embora nenhum escritor possa ser realmente bom a menos que tenha habilidade suficiente como escritor.
Os escritores que me parecem os maiores não consideram o que chamamos de gênio um dom natural com o qual nasceram. Eles veem isso como uma aquisição tardia, o resultado de uma transformação pessoal que não foi obra deles, que se assemelha a uma conversão. No que diz respeito à relação entre literatura e cristianismo, o meu principal interesse tem sido a relação de uma certa forma de criação com esta noção de conversão religiosa e especialmente cristã.
O romancista que me fez ficar interessado nessa relação foi Marcel Proust. Em Proust, é claro, o protagonista e o escritor são um só, mas não simultaneamente. O protagonista vem primeiro, e depois o escritor assume o controle no final do romance. Graças a uma quebra, a uma ruptura que o romancista experimenta, o protagonista se torna o romancista. Mas essa não é uma conquista do romancista. Ele sente que teve pouco a ver com o acontecimento que o transformou em romancista.
Quando eu estava escrevendo sobre Proust, já estava na moda dizer que o narrador Marcel é pura invenção do romancista, que a arte de um escritor nada tem a ver com a sua vida. É claro que isso não é verdade. O romance, embora não seja cristão, é, em suas crenças, em sua moral, e em sua metafísica, uma autobiografia estética e até espiritual que afirma estar enraizada numa experiência pessoal, numa transformação pessoal estruturada exatamente como a experiência que os cristãos chamam de conversão.
No início do último volume, O tempo reencontrado, o protagonista sofre uma grave doença e se encontra em estado de profunda depressão. Ele não espera mais que, algum dia, se torne um grande escritor. Então, no momento de total desânimo, até mesmo de depressão, acontecem-lhe alguns incidentes triviais, como andar na calçada irregular do pátio dos Guermantes e recordar-se da mesma experiência do passado. Esse tipo de lembrança desperta nele uma iluminação estética e espiritual que o transforma completamente. Este pequeno acontecimento lhe dá seu assunto inteiro, a dedicação necessária para escrever o livro e, acima de tudo, a perspectiva certa, uma perspectiva pela primeira vez totalmente livre da compulsão do desejo, da esperança de realizar-se através do desejo.
Os títulos escolhidos por Proust para o romance como um todo e para o último volume do seu romance, que é o primeiro, claro, no sentido de que narra a experiência criativa, são altamente significativos. O romance inteiro é intitulado À la recherche du temps perdu, que significa literalmente “em busca do tempo perdido”, do tempo que o herói perdeu e desperdiçou até o momento da conversão. O título do último volume, que foi verdadeiramente o primeiro a ser concebido e escrito, pelo menos no seu esboço principal, é O tempo reencontrado. É a história daquela morte e renascimento espiritual a que acabei de aludir. É realmente o início do grande período criativo da vida de Proust.
Assim, temos duas perspectivas em Proust e em outros grandes romances de conversão romanesca. A primeira é a perspectiva enganosa do desejo, cheia de ilusões quanto à possibilidade de o protagonista se realizar através do desejo. Essa foi a perspectiva que o aprisionou num processo estéril de saltar de um desejo frustrado para outro durante um período de muitos anos. Tudo que o narrador não conseguiu adquirir, ele desejou; tudo que adquiriu, ele imediatamente deixou de desejar, até cair num estado de tédio que poderia ser chamado de estado de desejo pós-mimético.
A segunda perspectiva é aquela que surge do final do romance, do ponto ômega da conversão, que é a libertação do desejo. Essa perspectiva permite ao romancista retificar as ilusões do protagonista e fornece-lhe a energia criativa de que necessita para escrever o seu romance. A segunda perspectiva é altamente crítica em relação à primeira, mas não é ressentida. Embora Proust nunca recorra ao vocabulário do pecado, a realidade do pecado está presente. A exploração do passado se assemelha muito à descoberta da própria pecaminosidade no Cristianismo. O tempo desperdiçado está cheio de idolatria, de ciúme, de inveja e de esnobismo; tudo termina numa sensação de completa futilidade.
A palavra “conversão” é indispensável porque Proust descreve, em geral verdadeiramente, a reviravolta na sua vida e a grande onda de criatividade que lhe permitiu tornar-se o grande romancista que não poderia ter sido antes. Tudo na vida e na lenda de Marcel Proust se enquadra no padrão da conversão. Ele ingressa na grande literatura assim como, antes, poderia ter ingressado na vida religiosa. Há algo de quase monástico no relato, em parte mítico, mas ainda assim autêntico, de como passou o resto da vida isolado do mundo, no seu quarto forrado de cortiça, acordando no meio da noite para escrever seu romance, tal como os monges acordam para cantar suas orações.
Há muitos indícios de uma grande mudança em Proust. As pessoas que trabalharam nos arquivos proustianos dizem que é possível distinguir, apenas olhando, os escritos pós-conversão dos escritos pré-conversão. Seu grande romance foi inteiramente escrito com a letra convertida. A interpretação da grande criação proustiana como conversão foi proposta por alguns dos primeiros intérpretes de sua obra, especialmente Jacques Rivière. Tudo o que fiz foi voltar a essa teoria munido de mais fatos biográficos, de Jean Santeuil, e, claro, da grande quantidade de escritos que Proust produziu naquela época e depois descartou. A principal diferença entre Jean Santeuil e a obra-prima posterior é o desconhecimento do autor do seu próprio desejo mimético.
Não afirmo que Proust tenha se tornado santo após sua conversão ou mesmo que tenha tido uma conversão religiosa. Ele não teve. É inquestionável, porém, que naquela época, e pela única vez em sua vida, ele se interessou pelo cristianismo. Ele sentiu que o cristianismo poderia ser relevante para sua transformação. Buscou ajuda e, sendo totalmente ignorante sobre o assunto, teve a curiosa ideia de consultar, entre todas as pessoas, André Gide, um protestante que apostatou. André Gide desincentivou-o de investigar mais o assunto.
O que realmente afirmo é que a experiência criativa de Proust é verdadeiramente comparável, em muitos aspectos, a uma conversão religiosa, da qual não se pode dizer que tenha falhado, mas que produziu apenas frutos estéticos e nunca resultou numa conversão religiosa. Funciona como uma conversão religiosa, e certamente não há razão para desconsiderar a voz do próprio romancista, especialmente na grande quantidade de manuscritos agora publicados, do mesmo período em que escreveu O tempo reencontrado.
Antes de sua grande mudança, Proust era um amador de talento. Sua conversão o transformou num gênio. Quando André Gide leu o manuscrito do primeiro volume de Proust para sua editora, rejeitou-o imediatamente. O autor, a seus olhos, era uma figura da sociedade, mas alguém intelectualmente insignificante, que não se transformara num grande escritor da noite para o dia. Esse tipo de metamorfose é realmente muito raro, e Gide estava estatisticamente correto ao escolher não acreditar nisso. Ele era um editor ocupado; nesse caso, porém, errou.
Insistir na palavra “conversão” é como cutucar uma onça com a vara curta. Em meu primeiro livro, não cutuquei a onça com uma vara, mas com cinco, já que apliquei essa noção não apenas a Proust, mas também aos outros quatro romancistas que estava estudando: Cervantes, Stendhal, Flaubert e Dostoiévski. Veja Dom Quixote, por exemplo. No leito de morte, ele se arrepende e diz que gostaria de ter tempo para ler bons livros em vez dos romances de cavalaria que o transformaram num lunático, num fantoche cujos cordões eram puxados por um titereiro que nem existia, Amadis de Gaula. Veja Julien Sorel, prestes a ser guilhotinado em O vermelho e o negro. Veja Madame Bovary, quando ingere o arsênico que está prestes a matá-la. Flaubert já é proustiano o suficiente para não apenas dizer: “Madame Bovary, c’est moi”, mas acrescentar que durante a criação da morte de sua heroína, sentiu gosto de arsênico na boca. Em outras palavras, ele compartilhou a morte criativa de sua protagonista. O mesmo acontece com o exílio na Sibéria de Raskólnikov na obra de Dostoiévski Crime e Castigo.
Em todos esses escritores, senti que havia uma obra central, que é o romance de conversão: O vermelho e o negro para Stendhal, Madame Bovary para Flaubert, Crime e castigo para Dostoiévski. Em todos esses escritores, encontrei as mesmas duas perspectivas do grande Proust: a perspectiva pré-conversão e a perspectiva pós-conversão que retifica a perspectiva pré-conversão, que é sempre uma espécie de autoengano.
Fui guiado por Proust quando cunhei a noção de uma conversão romanesca. Na grande quantidade de manuscritos associados a O tempo reencontrado, há um texto que compara o último e o primeiro volume do grande romance, ainda por escrever, com as conclusões de muitos grandes romances do passado e de algumas obras que não são romances. Cervantes está lá, e Stendhal, e Flaubert também. Há também outros romancistas que não mencionei, como George Eliot.
A noção de conversão dá à obra um passado e um futuro, com seu “tempo humano”, a profundidade temporal que os romances não convertidos não têm. A segunda perspectiva distancia o escritor da experiência que narra. Grandes romances são escritos dos dois lados ao mesmo tempo. Poderíamos dizer que existe, primeiro, a perspectiva do herói não iluminado, e depois, a perspectiva ômega, a perspectiva onisciente que vem do fim.
Quando publiquei meu primeiro livro, meu bom amigo John Freccero, hoje presidente do Departamento de Estudos Italianos da New York University, apressou-se em apontar que meu último capítulo não mencionava o trabalho mais importante relacionado à tese, o trabalho que inventou a autobiografia espiritual e se baseia numa grande experiência de conversão: as Confissões de Agostinho. Essa obra é o primeiro e maior exemplo da dupla perspectiva numa obra. Deve ser considerada a primeira grande autobiografia literária num sentido que a antiguidade realmente não conhecia.
Antes de todos esses exemplos e do seu modelo final vêm os próprios Evangelhos, e se os olharmos de perto, veremos que também temos neles a dupla perspectiva. Nos três Evangelhos sinóticos, mas especialmente em Marcos, os discípulos são representados como incapazes de compreender o ensinamento de Jesus no momento em que o ouvem da sua própria boca. Eles não estão realmente convertidos, nem mesmo Pedro, embora ele seja capaz de reconhecer Jesus como o Messias.
Os apóstolos não entendem muito enquanto ouvem Jesus. Eles entendem tudo errado. Acreditam no Messias triunfante segundo o modelo davídico, em vez do Messias sofredor segundo o modelo do Servo de Javé no livro de Isaías. Somente depois da morte e da ressurreição de Jesus eles são capazes de entender o que primeiro ouviram sem entender. A ressurreição para eles é uma experiência de conversão, o que é a mesma coisa que a descida do Espírito Santo no Pentecostes, quando foram preenchidos por uma graça que não tinham quando Jesus ainda estava vivo. A verdadeira definição de graça é que Jesus morreu por nós e, embora o seu próprio povo, como povo, não o tenha recebido, ele tornou aqueles que o receberam capazes de se tornarem filhos de Deus.
Texto originalmente publicado em
A Mimesis and Theory, Essays on Literature and Criticism, 1953-2005