Apenas os detalhes importam – em torno de “A verdadeira vida de Sebastian Knight”, por Vladimir Nabokov

– por Daniel Lopes

“… a influência da minha época no meu presente livro é tão insignificante quanto a influência dos meus livros, ou pelo menos deste livro, na minha época.”
V. Nabokov numa introdução de 1963 a Bend Sinister (1947)

Decidi reler A verdadeira vida de Sebastian Knight após onze anos para tentar identificar o que exatamente nesse livrinho havia feito com que ele me marcasse tanto. Eu não lembrava de nenhum diálogo marcante dessa obra. Lembrava do desenvolvimento da história apenas em termos muito gerais. Mas sempre lembrei de algumas sensações físicas que ele provocou em mim, como sempre lembrei da cadeira dobrável com espaguete roxo e da rede azul em que o li. Lembro do horário em que fiz a leitura de poucos dias: entre dez da noite e uma da manhã. Acho que não lembro todos esses detalhes a respeito de nenhum outro livro que eu tenha lido há mais de cinco anos. 

Na minha cabeça, o romance, o primeiro escrito por Vladimir Nabokov em inglês, e publicado em 1941, tem dois polos, ou duas duplas de personagens: Sebastian e seu meio-irmão (o narrador, que não revela o nome); e o sr. Goodman (ex-secretário de Sebastian) e uma russa que foi um antigo amor de Sebastian. Penso em termos desses dois polos, porque o projeto – não: a missão – do narrador é recuperar a imagem de seu irmão, manchada perante o mundo por uma biografia ressentida escrita por seu ex-secretário e retratada com indignidade pela amante russa quando o narrador a localiza e a encontra.

Sebastian Knight é um escritor russo. Nascido em 1899 e morto em 1936, publicou cinco romances, um menos convencional que o outro. Em 1919, no rescaldo da revolução bolchevique, Sebastian, o irmão e a mãe do irmão (sua madrasta) fogem para Paris, mas logo Sebastian segue sozinho para Londres. Ele volta intermitentemente a Paris: em 1922 para o funeral da madrasta; em 1924 com sua companheira mais longeva, Clare; em 1929 vindo de estadia em um hotel na fronteira entre Alemanha e Áustria – onde ele encontrou a russa que não saiu mais de sua cabeça e o fez largar Clare no ano seguinte.

Também no ano seguinte, Sebastian sofre seu primeiro ataque cardíaco. Agora sem o auxílio da ex-esposa, que fazia os serviços de secretária, ele contrata o sr. Goodman, que vem a ser demitido em 1934.

Goodman é um daqueles intelectuais mocorongos para os quais um artista tem que estar engajado com as “questões de seu tempo”, ou coisa que o valha, caso contrário sua obra não possuiria grande valor. “A indiferença é um pecado capital”, escreve ele em seu livro sobre Sebastian, “numa época em que uma humanidade perplexa se volta avidamente para os seus escritores e pensadores, e exige deles atenção, se não a cura, para seus problemas e feridas (…) A ‘torre de marfim’ não pode ser aturada a menos que seja transformado em farol ou estação de transmissão.” Que tal? O sr. Goodman parece uma das criações do próprio Sebastian, que, de acordo com seu irmão, às vezes “usava a paródia como uma espécie de trampolim para saltar para a região mais elevada da emoção séria.”

Em sua obra, Sebastian não “refletiu” sobre o “pós-guerra”. O que importa para ele são as questões de qualquer tempo, não as questões-do-nosso-tempo. Como diz maravilhosamente o narrador, “o tempo para Sebastian nunca era 1914 ou 1920 ou 1936 – era sempre ano 1”. E o que é atemporal, permanente, constante, em sua riqueza de manifestações, se deixa entrever nos detalhes do mundo, não em discursos. Sebastian em um de seus livros: “Uma pessoa que não percebe o lábio leporino de um motorista de táxi, porque ela está com pressa para chegar a algum lugar, é para mim uma monomaníaca.”

Bem cedo em sua narrativa, o meio-irmão de Sebastian diz ser credenciado para escrever a biografia que temos em mãos por possuir um “conhecimento interior” do escritor russo. Mais que isso: um “ritmo comum”. Ao descobrir vários atos de Sebastian – principalmente ao entrevistar a senhorita Pratt (amiga de Clare) e o poeta P.G. Sheldon (que foi íntimo de Sebastian) – o narrador acredita que ele próprio teria agido da mesma forma dentro daquelas circunstâncias. “Isso poderia explicar”, confessa, “o curioso ‘sentimento-isso-já-aconteceu-antes’ que me acomete quando sigo as curvas de sua vida.”

Na infância, Sebastian era distante e desinteressado do irmão, que o amava, mas que não recebia em troca “nem reconhecimento, nem provisão”. Podemos apenas imaginar o dilaceramento na alma do narrador após a série de desencontros épicos que não lhe permitiu atender a tempo ao chamado do médico de um moribundo Sebastian – os capítulos 19 e 20 da Verdadeira vida… estão entre os momentos mais inspirados de toda a obra de Nabokov.

Ao longo de sua investigação do passado de Sebastian Knight o narrador consegue esclarecer os principais mistérios da vida do irmão? Não importa. O que importa é a investigação. O que importa são as impressões recolhidas na investigação. Os sentimentos desencadeados por imagens singulares. Se Sebastian Knight não perdoa quem se distrai dos detalhes – digamos, do lábio leporino de um taxista – seu irmão e narrador, tampouco. Para não falar do criador de ambos. Aqui estão algumas linhas de Nabokov, no decisivo capítulo 17 em que o narrador pega um trem de Paris para o interior francês, para encontrar uma figura chave da história de Sebastian:

O tempo estava bom e cada vez que o trem parava eu ​​parecia ouvir a respiração leve e irregular da primavera, ainda pouco visível, mas inquestionavelmente presente: “bailarinas de membros frios esperando nos bastidores”, como Sebastian disse uma vez.

Mesmo capítulo, três páginas adiante:

Sentei-me e fumei. A poeira se avolumava num raio de sol oblíquo; volutas de fumaça de tabaco juntavam-se a ela e giravam suavemente, insinuantes, como se pudessem formar uma imagem viva a qualquer momento.

Uma página depois – realmente sequer precisamos sair desse capítulo:

O “domínio” consistia no jardim e no bosque que eu já havia notado. Estava tudo muito quieto. Os ramos negros, aqui e ali salpicados de verde, pareciam escutar sua própria vida interior. Algo sombrio e monótono pairava sobre o lugar. A terra havia sido escavada e amontoada contra uma parede de tijolos por um jardineiro misterioso que havia esquecido sua pá enferrujada.

Você deveria voltar e reler essas três citações. E depois de novo. Meus parágrafos nesse texto foram apenas migalhas de pão que coloquei no caminho para trazer você até esses trechos.

Eu havia escrito algumas notas na última folha em branco da minha antiga edição da Verdadeira vida…, e deixei para olhá-las apenas após concluir a releitura, imaginando que elas diziam muita coisa sobre o enredo, talvez insights que eu tive onze anos atrás. Mas no final das contas elas diziam quase nada. Registrei apenas duas curiosidades da história, que definitivamente não têm nada a ver com o motivo real do livro ter ficado gravado em mim – o motivo real, agora não tenho como duvidar, foram as metáforas e símiles, as cenas pintadas com minúcias. Esses elementos entraram no meu organismo e ficaram gravados na minha memória implícita, deixando explícito apenas as sensações e objetos que envolveram a leitura original. Agora espero que eles entrem no seu organismo.