Dois Cristos Ciganos – uma lenda sevilhana cantada por Sophia de Mello e Bruno Tolentino

Por Jessé de Almeida Primo

Ya cerca, vio la causa de aquel llanto y de aquellos gritos. En el suelo había un hombre retorciéndose en los últimos espamos de la agonía.

Parecía querer decir algo, acaso el nombre de su matador, y alzando la cabeza dejaba escapar con trabajo los estertores de una respiracíon que se acababa. Aquel hombre era el Cachorro, el gitano que había cuumplido su cita con el destino, pagando con la vida sus secretos amores. Se le veía atravesado de pecho a espalda por una daga de rica empuñadura que su matador le había dejado hincada junto ao corazón.

Ruiz Gijón viendo este espectáculo alucinante, olvidóse del hombre compasivo que llevaba dentro y se sintió salvajemente, gloriosamente artista y nada más que artista y mientras las mujeres intentabam devolverle la vida al moribundo arrancándole del pecho el puñal, Ruiz Gijón con un trozo de carboncillo iba dibujando sobre el papel, a la amrilla luz de los candiles, la cara de agonía del gitano. Después enrolló su boceto y abandonando el grupo trágico donde ya el muerto era levantado en brazos por algunos gitanos que iban llegando, emprendió el regreso paso a paso hacia el puente de Triana, lo cruzó, pasó el Postigo del Arenal, entró en su casa y se dejó caer en la cama sintiendo sobre sí ahora todo junto, el cansancio de tantos meses de fatigosa labor. En poco tiempo Ruiz Gijón trasladó a la madera con la gubia, el boceto que había hecho aquella noche. Conseguió que la imagen tuviera verdaderamente la más exacta expressión de la agonía.

Y quando aquel año salió por primera vez en procesión a la calle el Viernes Santo, la nueva imagen de la Hermandad del Patrocinio, el vecindario de Triana al ver en la cruz el Cristo de la Expiración, comenzó a prorrumpir en gritos de admiración y de sorpresa.

!Mirad, si el el Cachorro! !Si es el Cachorro!

En efecto, era El Cachorro, el cigano taciturno, cantaor y enamorado, el que mataron por amores una noche en La Cava de Triana y que el soplo del genio del gran artista Ruiz Gijón, habia convertido en la figura del más hermoso y dramático de los Cristos Crucificados que forman el tesoro escultural de la Semana Santa Sevillana.

José María de Mena, Tradiciones y leyendas sevillanas

Buscando na internet algumas informações sobre a lenda de El Cachorro, que inspirou os poemas “O Cristo cigano”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, de 1961, e “O Cristo de Sophia”, de Bruno Tolentino, de 1964, encontrei um artigo acadêmico escrito por Bruno da Costa e Silva.1 No início, ele trata dos bastidores do poema de Sophia de Mello, ou, como ela mesma dizia, “a história anterior ao poema”.

Foi justamente a parte introdutória desse artigo que me orientou sobre como vou tratar o seguimento que Tolentino deu a essa lenda.

Inicialmente, pensei em dizer que Tolentino, embora se refira a Sophia como modelo, a começar pelo título “O Cristo de Sophia”, fez uma “livre interpretação”, uma “misreading”, segundo a expressão de Harold Bloom, que me recuso a traduzir como “desleitura”, termo que soa como puro academês. A expressão inglesa, se porventura não é corrente, não traz nenhuma confusão ao entendimento do que se quer dizer, de modo que, mesmo que não seja, soa corrente. Dependendo do contexto, entende-se como uma leitura equivocada ou confusa, uma interpretação livre, aquela interpretação que, partindo do texto, extrapola-o, seja para levá-lo ao erro, seja para enriquecer ainda mais o motivo nele contido. Se não temos uma expressão sintética como no original, paciência: é usar a forma analítica entre as apresentadas até que apareça um neologismo melhor ou que se tome conhecimento de um melhor. Dito isto, eu insistia até então que Bruno Tolentino havia distorcido a narrativa contida no poema original. Afinal, tanto o título como o primeiro verso, “A grande portuguesa diz que vira/ numa esquina obscura de Sevilha…”, nos levam a pensar que ele contou a mesma história, atendo-se à narrativa sem dela sair, ainda que à sua maneira.

Mesmo pensando dessa forma, não fiz objeção à qualidade do poema na época, nem o faria porque não haveria razão para isso. Pelo contrário, este é o Tolentino que, conforme o crítico Pedro Sette-Câmara observa, escreve com o coração, que ele prefere ao grande poeta pensador, cujas imagens são deveras evocativas, a um só tempo exatas e exuberantes. Insisto: é a qualidade eliotiana da chamada “clear visual images”, que o poeta anglo-americano atribuiu a Dante. Essa qualidade é típica da época em que as pessoas tinham, ainda segundo Eliot, a “capacidade de ter visões” (… in an age in which men still saw visions).2

Partindo, então, do que propõe o artigo de Costa e Silva, o próprio Tolentino deu seguimento à tradição oral, à qual Cabral também deu continuidade ao contar a Sophia uma das versões da lenda. Seguindo a “estrutura fixa”, na expressão de Italo Calvino usada por Costa e Silva (p. 4), Tolentino fez, antes de tudo, outra combinação, apoiando-se na “história anterior ao poema”.

Há também uma explicação mais simples, que não complica o que já é familiar e está muito bem encaixado na tradição de se contar uma história. O título e o que é dito nos primeiros versos justificam-se, mesmo que a história tenha tomado um rumo diferente, pelo simples fato de que o poema só existe porque Tolentino leu o poema dela, ou melhor, tomou como ponto de partida não exatamente o que ela escreveu, mas a história que inspirou o que ela escreveu, à qual fez referência, como veremos adiante. Uma leitura muito particular, e por economia lírico-narrativa, atribuiu ao poema dela a motivação para fazer seu próprio poema. De qualquer forma, não seria o caso de explicar na própria lírica que tomou a liberdade de mudar este ou aquele pormenor do poema pioneiro; isso fica a cargo da crítica ou de algum pesquisador mais curioso.

Para começar, a mesma Sophia usa a história original para estabelecer uma discussão que não está presente nela, que é a busca da felicidade a qualquer custo, ignorando-se, por meio do apelo ao cultivo obsessivo de um espírito solar, a existência da morte:

No Cristo cigano o escultor vira o seu rosto a todas as imagens do sofrimento pois a sua vida é do sol e a sua alma é da terra. Mas eis que a imagem do sofrimento nasce das suas próprias mãos em frente do homem que ele próprio matou. Porque se virarmos a cara ao sofrimento, a vaidade da felicidade perfeita nos levará à monstruosidade e ao crime. Há muitas maneiras de matar. É no sofrimento que o escultor vê aparecer a imagem que ele procurara em vão na manhã e nos campos. A imagem que, para além de todo o erro e pecado, está inscrita na pessoa humana.3

Ou na sua forma lírica:

É verdade que passas
Pela cidade às vezes
Nos caixões de chumbo:

Mas viro o meu rosto
Pois não te compreendo
És um pesadelo
Uma coisa inventada
Que o vento desmente
Com suas mãos frescas
E a luz logo apaga.

Costa e Silva apresenta duas versões (pp. 111 e 112), a de que El Cachorro, ao fim de um encontro na outra margem do Guadalquivir com uma fidalga casada, foi assassinado pelo marido dela, e o escultor, a quem encomendaram a imagem do Cristo crucificado, contemplando a “agonia e morte” (p.111) do cigano, usou seu rosto como modelo; ou, que o próprio escultor o havia matado a fim de extrair de seu rosto agonizante o modelo para sua escultura.

O que vemos em ambas as versões é uma decisão estética extremada, amoral mesmo, que reflete o estetismo delirante do escultor. A versão de Sophia, por sua vez, envereda pela culpa, a qual, poder-se-ia dizer, dirige o movimento de suas mãos a fim de que o assassino contemple no rosto esculpido de Cristo o rosto de sua vítima ou no rosto talhado de sua vítima o rosto de Cristo.

Vamos, pois, ao poema de Tolentino:

A grande portuguesa diz que vira
numa esquina obscura de Sevilha
um Cristo protetor da camarilha
mais rasteira: uma imagem que delira,

geme, sangra, contorce-se e suspira
ante o pasmo geral… É como a quilha
deste navio aquela maravilha:
sempre molhado – um rosto de mentira

carpindo seus banidos e bandidos…
Sophia Andresen parou diante
daquele amontoado de gemidos,

espantou-se e compôs no mesmo instante
a escultura de versos comovidos
em que conta uma história impressionante.

Como podemos ver pela abertura, ainda não estamos diante de um desvio, até porque a informação diz respeito aos bastidores, a uma conversa entre os dois poetas, “A grande portuguesa diz que vira”, que se refere a um momento anterior à concepção do poema que ela escreveria, e Tolentino percorre assim o mesmo caminho dela, que acrescentou um prólogo, “A palavra faca”, em homenagem a João Cabral, a quem se sente ligada por uma dívida profunda e cuja obra fez parte de sua formação e afinou ainda mais sua dicção pessoal, seguindo assim a tradição da estância dedicatória, como os épicos faziam com as musas::

A palavra faca
De uso universal
A tornou tão aguda
O poeta João Cabral
Que ela agora aparece
Azul e afiada
No gume do poema
Atravesssando a história
Por João Cabral contada.

O soneto de Tolentino apresenta um quadro geral, um panorama de algo que será esmiuçado no soneto seguinte. Na abertura, vemos um ambiente maculado em meio ao qual Cristo se encontra. Ele é “um Cristo protetor da camarilha mais rasteira”, que veio para assistir os doentes, não os sãos. “Um rosto de mentira carpindo seus banidos e bandidos” corresponde a um “Cristo tosco”, não gracioso, conforme o testemunho veterotestamentário: “homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele. (Isaías, 53,3). Esse Cristo também se conforma ao “Já não tem o esplendor nem tem beleza (…) / Seu corpo já não lembra uma coluna / É feito de suor o seu vestido / A sua face é dor e morte crua”, que consta no décimo poema, “Aparição”, do Cristo cigano, de Sophia de Mello, de inspiração igualmente veterotestamentária. O realismo, por assim dizer, sacro, em toda sua objetividade, expressa-se com muito vigor em “Uma imagem que delira, / geme, sangra, contorce-se e suspira / ante o pasmo geral”, tamanha é sua perfeição menos renascentista que sacra, que é como se um milagre se realizasse a cada vez que essa imagem é contemplada, milagre este que parece se manifestar com intensidade ainda maior nestes versos assombrosos: “Sophia Andresen parou diante/ daquele amontoado de gemidos”, cujos recursos sinestésicos, “amontoado de gemidos”, são elevados à última potência. Não se trata de um realismo como resultado de algum truque barato, que visa convencer o observador de que está diante de uma imitação perfeita da realidade, como no cinema, que projeta imagens em três dimensões. Trata-se de uma realidade mais íntima, porém não menos objetiva, que só a rusticidade ibero-sertaneja tensa e dolorosa pode expressar.

Porém, por que um rosto de mentira? Pode o rosto de Cristo ser uma farsa? Sim e não. O elemento farsesco é circunstancial, uma vez que os modelos foram os assassinados, ou o amante adúltero, segundo uma das narrativas, ou o que “morrera defendendo” o escultor “do agressor”, como informa o soneto seguinte. No entanto, não se trata do mesmo Cristo, embora seja de fato: “Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes” (São Mateus, 25, 40). É, por fim, o rosto de Cristo que surge pelas mãos do assassino no poema de Sophia (“— Tu esculpirás Seu rosto/ de morte e de agonia.”) ou pelas mãos do amante defendido no poema de Tolentino, “um escultor/ impusera à madeira o rosto amado/ de um gitano”.

No seguinte, sabemos o que aconteceu e conhecemos as personagens desse acontecimento:

Sobre os traços de um Cristo ensanguentado,
em todas as feições do Salvador
dependurado à Cruz, um escultor
impusera à madeira o rosto amado

de um gitano: El Cachorro, o que ao seu lado
morrera defendendo-o do agressor…
Hoje aquele perfil apunhalado
une-se à lua em tardes de calor,

sobe com ela do Guadalquivir,
desse rio que é lágrima contínua,
para purificar e repetir

no ombro incandescente da colina
os soluços que agora vão cair
todos pontualmente nessa esquina.

Note-se aqui o modo contínuo de narração, que se desdobra cronologicamente, e esse modo também se evidencia na música do poema, a qual se intensifica nos sucessivos enjambements, espécie de melodia sem staccato, quase sem pausas, como se o autor estivesse, ao modo de Ariadne, estendendo-nos um fio pelo qual devemos nos conduzir na ação.

E retomando o primeiro soneto, reparem que os dois quartetos se constituem de uma única rima, a assonância em “ia” (como em “vira”, “Sevilha”, “Camarilha”, etc.), o que aumenta ainda mais o fluxo sonoro, tal qual uma corrente fluvial sem pedras que lhes diminua a velocidade no percurso. E, naturalmente, na escolha do próprio soneto, cuja melodia é muito definida, distinguindo-se, assim, da narração, por vezes elíptica, do poema de Sophia, o qual mais se concentra em evocações, em breves fragmentos de natureza atmosférica, e em nenhum momento explica as motivações do assassinato, nem expõe as intenções do assassino escultor, de quem sabemos apenas que é uma personalidade solar, que faz pouco caso da morte, que a desafia obstinadamente: “Onde estás tu morte? … /Onde a tua imagem, /onde o teu retrato,/ na manhã tão limpa?). Tudo o que nos é dado ver são predições escuras: “Por trás de um porta/ que se abre sozinha/ o destino espera, / e depois a porta/ se fecha gemendo/ sobre a primavera”. Tudo o que sabemos é que o assassino é também um escultor, como nos adverte o título do primeiro poema, “O escultor e a tarde”, e os dois versos que encerram a primeira estrofe, cuja descrição de seu ofício faz entrever uma atividade miraculosa, ou a ela se compara, não muito distante do fiat lux divino: “Tudo em suas mãos/ se multiplica e brilha. “, que evoca o símile pessoano do “processo divino que faz existir a estrada” e, mais próxima ainda, da imagem jorgeliminiana de “O acendedor de lampiões”,

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Esse mesmo que vem, invariavelmente,
parodiar o sol e associar-se à lua,
quando a sombra da noite enegrece o poente.

na qual a semelhança entre o artista e Deus é mostrada de forma mais direta. Na verdade, o artista seria aí uma espécie de demiurgo, de acordo com a imaginação dos antigos gnósticos (parodiar o sol e associar-se à lua).

Como disse a poucas linhas, a intenção do escultor não se enuncia, e ele mesmo não sabe o que acontecerá nem o que fará. Podemos ver, por outro lado, que seus questionamentos provocadores o impulsionam para um fim que só pode ser a morte, que ele desafia como um ateu desafia a existência de Deus. Não há, porém, uma indicação clara de que ele vai matar alguém, ele mesmo poderia ser a vítima, alguém cuja obstinação em não querer ver o cegasse para essa realidade incontornável de tal maneira que não se perceberia vulnerável à sua foice. Na primeira quadra, como diz o título, há uma busca: “Pelos campos fora/ caminhava sempre/ como se buscasse/ uma presença ausente.”, busca esta que o põe em movimento, que leva a uma ação que até certo momento limita-se a uma caminhada constante, e mesmo sabendo que esse encontro com a morte é inevitável, “A ti me enviaram/ és tu meu destino”, sua caminhada, movida pela negação teimosa, continua: “Mas diante da vida eu não te imagino”:

A ti me enviaram
Eu sei que me esperas
Mas só oiço a verde
Voz das primaveras

Antes de concluir o percurso desse escultor epicurista, concebido por Sophia de Mello, voltemos brevemente ao poema de Tolentino. Embora seja uma narrativa de caráter contínuo, deparamo-nos, na primeira estrofe, com a ação já realizada: somos informados da escultura que o artista fez, a Quem quis esculpir (Sobre os traços de um Cristo ensanguentado) e a quem, sem esperar, acabou esculpindo: “um escultor/impusera à madeira o rosto amado/de um gitano: El Cachorro”. Já no poema de Sophia de Mello, a ação não se desdobra com rapidez, tudo é muito adiado, primeiro pela apresentação da personagem, em “O escultor e a tarde” (poema I), pela predição misteriosa do destino caracterizado como “homens escuros” (“O destino”, poema II), pelos questionamentos já mencionados e pela lenta caminhada no poema mais longo, no qual a personagem se manifesta mais amplamente (“Busca”, poema III), e no qual cada provocação ou negação é acompanhada da intensificação da sombra: “A ti me enviaram/ és tu meu destino(…)/ E sei que me esperas(…)/ É verdade que passas/ pela cidade às vezes/ nos caixões de chumbo(…)/ É verdade que passas/ pela cidade às vezes/ com teu vestido roxo/ entre velas e incenso. ”.

E quando pensamos que a fatalidade acontecerá em “O encontro”(poema IV), cujo título é também sinônimo de “briga”, tudo o que vemos é a apresentação de outra personagem, que estava se banhando num rio (Seu corpo surgia/ brilhante da água). A fatalidade, porém, não acontecerá nem no próximo poema “O amor”, no qual o destino do escultor parece cada vez mais evidente: “Só existe o teu rosto geometria/ clara que sem descanso esculpirei./ E noite onde sem fim me afundarei.” A busca ainda prossegue, é retomada em “A solidão”(poema VI), “E em todas as paredes te procuro(…)/ E em todas as esquinas te procuro(…)”. A disposição desse poema em relação ao quarto poema, “O encontro”, é engenhosa: no “Encontro”, o leitor e o assassino veem uma segunda personagem, que se banha num rio. Nesse poema, há um prenúncio sombrio, quando a voz lírica diz que o brilho do corpo dessa nova personagem não é apenas “semelhante à lua”, é “semelhante ao brilho/ de uma faca nua.”, é o corpo e o objeto que determina seu fim tornando-se um no outro, confundindo-se, ecoando o “qual uma faca íntima/ ou faca de uso interno,/ habitando num corpo/ como o próprio esqueleto” de Uma faça só lâmina, de João Cabral, em que o poema é inspirado. Acontece que o cruzamento entre o destino do escultor e o da nova personagem só se define incontornavelmente dois poemas depois, posto que a ação não se desfeche: antes de cada encerramento dos dísticos, cujos versos terminam com “eu te procuro”, a morte é procurada nas “paredes”, “nas esquinas” e nas “praças solitárias”, até que tudo se esclarece em “Ao longo do rio a noite acende as suas luzes/ roxas verdes azuis.// Eu te procuro.” Não estava nas paredes nem nas esquinas nem nas praças, mas o poema começa a se fechar em “ao longo do rio”, que é justamente o rio (uma antecipação do Letes?) onde a nova personagem se banhava. E reparem que “Eu te procuro” que encerra o poema não tem a mesma intensidade, melhor ainda, não expressa a mesma convicção de uma busca verdadeira que se evidencia nos versos anteriores, desempenha uma função menos objetiva que retórica, é quase que o anúncio de que algo diferente do verbo “procurar” é o verdadeiro significado, de que o encontro tão buscado finalmente aconteceu, como se a ansiedade de buscar se atenuasse diante da recordação de que ele viu sua vítima se banhando duas líricas antes(o já mencionado poema IV) , ainda que não pudesse prever o quanto aquele cigano mudaria sua vida.

No poema de Tolentino, somos apresentados a El Cachorro, o cigano assassinado, e à terceira personagem, a do “agressor”. Nesse poema, de alguma maneira, retoma algo da narrativa arcana, que relata um caso amoroso, a ter resultado num crime passional, cometido por um marido ciumento da alta fidalguia. No poema de Sophia de Mello, se por um lado sabemos que houve um impulso, o desafio obstinado à morte, a ter culminado num assassinato, por outro não sabemos ou não fica clara a razão de por que isso ocorreu, sabemos apenas da consequência da procura, não do motivo desse assassinato.

O que foi antigamente manhã limpa
Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja face não é oculta.

O amor a que refere essa quadra da portuguesa não é um amor que se traduz num relacionamento a dois, motivado pelo eros, é o amor pela vida no sentido mais imediato do termo, do amor pela vida que quer desafiar a morte por temer a ela, é o amor romântico. Mais uma vez, o que fica clara não é a motivação do assassinato, e sim o assassinato como consequência de uma busca que resultou num “encontro” (poema IV), a busca pela morte resultou numa “busca/ de um corpo cuja face não é oculta”. O corpo pode ser desconhecido, oculto, mas a “face” que se impôs, que surgiu das mãos do escultor que mata, não.

Se no poema de Sophia de Mello predomina o sacro (o rosto de Cristo que se impõe pelas mãos do escultor) sobre o humanismo (a visão solar que esse escultor tem da vida), no de Tolentino, por certa intrusão gnóstica, que parece inevitável até aos escritores católicos — entendo o gnosticismo, entre outras coisas, como um sentimentalismo religioso —, entrevê-se certo movimento romântico, há por vezes uma forte presença do humanismo, uma contrafação literária da pintura renascentista religiosa, na qual o subjetivismo religioso sobrepõe-se ao objetivismo sacro, ou por outra, em que o humano se sobrepõe à divindade mesma, a ponto de vermos na representação pictórica da Divindade mais o homem em Deus, melhor dizendo, Deus como mero pretexto para o homem, do que a presença de Deus no homem, “um escultor/ impusera à madeira o rosto amado/ de um gitano”. Recordemos que no “Cristo cigano”, quando Sophia de Melo diz “Tudo em suas mãos/ se multiplica e brilha”, expressa uma ação externa à vontade do artista, a inspiração, no jargão literário, ou a interferência divina, como se Deus lhe movesse as mãos. Reparem que esses versos que acabei de reproduzir estão na apresentação sumária do escultor, que se encontra ainda no primeiro poema, quando a personagem era marcadamente solar e fazia pouco caso da morte. Como o escultor ainda ignora o que está por vir, ainda é a alegria insolente que se impõe: o “se multiplica e brilha” é como se a inspiração fosse uma consequência natural de seu apego extremo à vida, ou seja, o homem ainda está no comando, se não é ele, o homem, que joga as cartas, é, conforme sua vaidade, a sua alegria desafiante que o faz. Porém, no segundo poema, a coisa muda de figura: “Tu esculpirás Seu rosto/ de morte e agonia.”

No soneto de Tolentino, o verbo “impor” se destaca, “um escultor/ impusera à madeira”. É o homem que está no centro, é o “vim porque a Paixão/ me chamou pelo nome”, como anos depois aparecerá em “Ao divino Assassino”, que se sobressai, com a diferença de que nessa elegia Tolentino deixa patente a luta entre o “reconhecimento”, no sentido de conversão, e o já mencionado sentimentalismo gnóstico. Talvez seja leviano dizer que essa paixão, nessa sentida elegia, é a paixão puramente humana, não a Paixão de Cristo. Acontece que Tolentino, apesar de escrever essa palavra com “p” maiúsculo, joga com a ambiguidade, que a sonoridade permite, a fim de nos fazer perceber o sentimento de revolta por trás da “paixão”, com p minúsculo, até que tudo se esclarece com o que vem imediatamente a seguir, e dessa maneira o “mal entendido” revela-se um jogo retórico: “e a alma obedece/ e aceita suar sangue.” No dito soneto, é a paixão com p minúsculo que impõe “à madeira o rosto amado”. É exatamente o mesmo sentimento que décadas depois vai ser explorado, em todos os seus francos pormenores, na Imitação do amanhecer”, da recusa em perder o ser amado que se traduz no desespero de perpetuar um instante de felicidade: “Fizemos um do outro, um no outro, tão juntos/ como os abraços imortais da estatuária, /a perpetuação perfeita da precária/ unidade do amor… (II – 103)”

Dito isto, no poema tolentiniano percebe-se o sentimento que se traduz em dizer que aceita, sim, o que lhe foi imposto, mas desde que seja como ele quer, e com o rosto de quem ama, como se respondesse, num só golpe, ao assassino e ao “divino Assassino”, que permitiu que isso acontecesse. Talvez não seja por acaso que a palavra “escultor” encerra o terceiro verso, põe-se em evidência, impondo-se também sonoramente, ao rimar com “Salvador”, que o antecede, e que “rosto amado”, igualmente em evidência, de quem estava mais próximo, apareça logo em seguida prolongando um esquema de rima, rimando com “ensanguentado”, como se desenhasse uma descida do sacro para o humano: “Cristo ensanguentado” para “o rosto amado” e “Salvador” para “escultor”, que são paralelismos perfeitos, por assim dizer, a única maneira que o escultor encontrou para expressar o ser amado em agonia, que morreu por ele, foi esculpir o seu rosto no corpo de Cristo; e “Salvador”, também Criador, liga-se, na rima, a “escultor”, em cujas “mãos” tudo “se multiplica e brilha”.

Há dessarte um desvio significativo nessa narrativa: a morte do cigano não tem nada que ver com a busca de um modelo humano pelo qual se possa esculpir o rosto de Cristo, conforme se encontra na lenda que inspirou os dois poemas, tampouco com o rosto de Cristo que surge das mãos de um escultor, que desafiando a morte, acabou matando alguém cuja feição dolorosa serviu como modelo para a escultura, mas sim com uma rixa em que um deles estava em perigo e o outro, saindo-lhe em defesa, morre. É uma história de amor que ganha destaque nos sonetos tolentinianos, não a história da inquirição de uma alma que por fim encontra quem não queria encontrar ou quem não esperava encontrar, que vai ser explorada, de resto, nas Horas de Katharina; é a narrativa de um idílio a dois que se interrompe numa justa gitana. Tolentino recorre, sem nenhum pudor, a uma convenção romântica, temperada pela relação homossexual e pelo sentimento gnóstico de revolta, para desenvolver sua trama lírica, que termina por ganhar um contorno bizarro, que se expressa até mesmo numa revolta luciferina, beirando o “non serviam”, que é o já mencionado sentimentalismo religioso levado aos extremos: a não aceitação da morte do ser amado leva-o a esculpir-lhe o rosto no rosto que deveria ser o de Cristo, para assim perpetuar a memória de El Cachorro não apenas numa escultura, mas, como quem busca garantir a eternidade que nem as obras de arte asseguram, perpetuar-lhe a memória no rosto de Quem, após uma morte cruenta, ressuscitou e subiu ao Céu, cujo efeito da presença é sentido por nós. Afinal, a eternidade da escultura e das artes em geral é formal, matemática, já a de Cristo é um fato; logo, é essa eternidade que o escultor ambiciona, à qual se apega com todas as forças, e que resulta num milagre:

Hoje aquele perfil apunhalado
une-se à lua em tardes de calor,

sobe com ela do Guadalquivir,
desse rio que é lágrima contínua,
para purificar e repetir

no ombro incandescente da colina
os soluços que agora vão cair
todos pontualmente nessa esquina.

Um milagre mesmo ou uma assombração? Nesses versos Tolentino desdobra as imagens do poema “O encontro”, do “Cristo cigano”,

Sozinho o cigano
Sozinho na tarde
na margem do rio

Seu corpo surgia
Brilhante da água
Semelhante à lua
Que se vê de dia

que descreve o momento antes de esse cigano ser assassinado pelo escultor. Os versos de Tolentino traduzem uma manifestação emocional exasperada, a ilustração de uma alma que se prende ao local de onde não queria sair, que representa a um só tempo um local e um momento de felicidade tão tragicamente interrompida, que essa, não podendo mais prender-se ao corpo a que tão bem se conformava, prende-se, tal fosse um último recurso, ao rio Guadalquivir que, repetindo por um fenômeno natural as circunstâncias do assassinato, acaba, nas “tardes de calor”, vaporizando-se, deixando tão relutantemente seu corpo-rio (desse rio que é lágrima contínua), “unindo-se à lua”. E que força têm estes versos, que sabe a um milagre-assombração de feição ibérica: “os soluços que agora vão cair/ todos pontualmente nessa esquina.”, e quão admirável é a articulação semântica de “soluços”, espécie de batida do relógio em expressão orgânico-biológico, com “cair” (embora regido por “soluços”, atrai a imagem da “lágrima contínua” que é o rio Guadalquivir), e a precisão matemática do advérbio “pontualmente”. Todo o lugar assume a identidade do cigano ou, quiçá, até mesmo se deixa possuir, no sentido da possessão, pela alma do cigano ou, ainda, podemos dizer que, se a alma do cigano assassinado não se prendeu ao local, seguindo assim uma convenção das narrativas sobrenaturais, o seu amante de alguma maneira consagrou amorosamente o lugar à sua memória. Se é um milagre que descreve ou uma assombração, não me é dado saber e talvez seja essa a intenção do autor, ao misturar sentimentos pessoais, sensuais, com a descrição das manifestações sobrenaturais, como de resto sói acontecer nas famosas lendas de inspiração cristã, que formam o riquíssimo imaginário católico, e nessa tensão reside a grande força do poema, como de resto essa tensão está presente na ária amorosa de Tristão e Isolda, quando esta, com o corpo de seu amado ao colo, canta até se transfigurarem, como se este amor não tivesse lugar neste mundo.

Se o elemento romântico, misturado a certo sensualismo, tem uma presença significante no poema de Tolentino, no poema de Sophia, posto que o elemento romântico se apresente mais pela negação da morte ou do sofrimento, também lança mão do elemento erótico, que se articula com a forma como o corpo era visto pelos olhos renascentistas, ao qual se acrescenta certa influência decadentista: “Na margem do rio/ alguém se despia…///Seu corpo surgia/brilhante na água/semelhante à lua/ que se vê de dia.”, e, aos poucos, essa visão estética assume uma rugosidade barroca, de linhagem ibérica: “Já não tem esplendor nem tem beleza/ já não é semelhante ao sol e à lua/ seu corpo já não lembra uma coluna/É feito de suor o seu vestido/ a sua face é dor e morte crua.”

Embora a lenda, e também o poema de Sophia de Melo, conte que o escultor matara El Cachorro e informe que este, esculpindo Cristo, acabou por esculpir o rosto de sua vítima, o poema dela parece seguir outro caminho ou, ao menos, outros elementos parecem se manifestar:

E devagar devagar o rosto surge
O rosto onde outro rosto se retrata
O rosto desde sempre pressentido
Por aquele que ao viver o mata.

Parece haver uma espécie de superposição de imagens e acontecimentos, tal houvesse uma divisão de telas que nos permitisse ver duas imagens paralelamente, o antes e o depois em operação simultânea, é como se a um só tempo víssemos o rosto do Cristo em agonia surgindo no rosto de El Cachorro (lembremo-nos de que Sophia fala do encontro com Cristo), que está morrendo, e o rosto de El Cachorro, também em agonia, surgindo, como por milagre, no corpo de Cristo que ora está sendo esculpido. Se a mesma autora fala do encontro com Cristo não é apenas o rosto do cigano que deve surgir nas mãos do escultor, e sim o rosto de Cristo que se revela tanto pelo engenho artístico como se revela na dor e agonia esculpidas da vítima ou, valendo-me aqui dos versos de Tolentino, retirados ao terceiro e último soneto, “Um rosto humano/ transfigurado um dia pela dor/ da agonia convulsa”.

E que dizer dos arremates, ou melhor dizendo, dos epílogos?

Assim termina a lenda
Daquele escultor:
Nem pedra nem planta
Nem jardim nem flor
Foram seu modelo.

É um daqueles casos em que o elusivo menos esconde que revela, o rosto se revela não pela descrição explícita de qual rosto é extraído à madeira pelo escultor, e sim pelo descarte de possibilidades, que nenhuma das coisas nele enumeradas “foram seu modelo”, e esse recurso elusivo está também presente na “Morte do cigano”(poema IX), cujo assassinato é descrito tão somente pela modulação do brilho da faca, “Brancas as paredes viram como se mata/ viram o brilho fantástico da faca/ A sua luz de relâmpago e a sua rapidez.”, e dessa forma resgata toda resistência solar que o escultor opusera à morte e à verdade, até que, derramando sangue inocente, descobre seu modelo real, ou simplesmente “seu modelo”; adaptando, pois, à circunstância o que Tolentino disse do poeta no prefácio à Balada do cárcere, ele deixou de ser esteta para ser escultor de fato, tornou-se um verdadeiro artista.

O Cristo apunhalado no cigano!
No altar da rua, onde anda o pecador,
onde soluça e sangra e morre o amor
em defesa do amor… Um rosto humano

transfigurado um dia pela dor
da agonia convulsa, o mesmo pano
que guardara a Verônica: o arcano
no inanimado e a ovelha no pastor!

Vou subir dentro em pouco aquele morro.
Vou lá gemer também, chorar um pouco
ante aquela mistura de um amor louco

com um Cristo que é a cara de um Cachorro!
Irei curvar-me ante esse Cristo tosco
na emboscada em que o amor pede socorro.

Quanto ao de Tolentino, “O Cristo apunhalado no cigano!”, tem um caráter bem evangelista, daquele princípio defendido por Cristo, segundo o qual, conforme já foi dito a alguns parágrafos, o mal ou o bem que se faz ao próximo é o mal ou o bem que se faz a Ele, e da mesma forma que a vítima se tornou Cristo em sua agonia, a rua se sacraliza, torna-se altar, assume a um só tempo as feições de Cristo e de El Cachorro e da mesma maneira que o epílogo da poetiza portuguesa termina com a tensão entre a solaridade e a descoberta da verdade, este soneto resgata a tensão entre o romantismo mais desbragado e o sacro: “onde soluça e sangra e morre o amor/em defesa do amor…(…)/ Irei curvar-me ante esse Cristo tosco/ na emboscada em que o amor pede socorro.”, e nesses versos se percebem a um só tempo algo do sensualismo trágico, a que também se acrescenta o que Oscar Wilde chamou de “o amor que não ousa dizer seu nome”, e o amor que Cristo revelou ao morrer na cruz; e após toda essa tensão, mesmo com a intrusão gnóstica das lendas, o rosto verdadeiro é o que fica, mesmo que por linhas tortas, ou mesmo por causa delas: “Se a História fosse apenas uma charada triste,/ uma tirada à parte do Todo, à criatura/ ainda lhe restaria aquela Cruz em riste/ de encontro a um Céu em derrocada(…)”(II—64, “As antífonas”), como tão bem é apresentado na Imitação do amanhecer.

Em meio a uma busca contaminada de insolência pela verdade (“O Cristo cigano”), e o desafio gnóstico quase luciferino a Deus ao impor o rosto de um cigano assassinado no corpo de Cristo, é Este, qual “espigas” que crescem “entre escombros humanos” (A imitação do amanhecer, “Em frontispício”), que no final das contas mais se revela. A tentativa desesperada de reproduzir o rosto em agonia do ser amado, em todos os seus doridos pormenores, acabou por revelar não exatamente o rosto desse amado, embora esse, de fato, tenha sido esculturalmente figurado, e sim a dor de Cristo na Cruz. O que buscava o escultor de Sophia e o que tentou construir o escultor do poema de Tolentino, como tão bem nos expõe mais uma vez A imitação do amanhecer, acabaram por ser não “uma personagem ou uma noção (…)”, mas “um quisto, uma intrusão carnal por sob o imaginário”(II-63). E que melhor maneira há de figurar esse Cristo, ou esse “quisto”, senão, por incrível e escandaloso possa parecer, um “Cristo com a cara de um Cachorro”?

1 “Sophia de Mello Breyner Andresen e a história por João Cabral contada”, in http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/view/6467

2 “Dante”, Select Prose of T. S. Eliot, ed. Frank Kermode, Faber and Faber, 1975, p. 209

3 O cristo cigano – Edição definitiva, Editorial Caminho, 2003, p. 34