I
Uma proporção impressionante das ideias que capturaram a atenção do século XX, e por consequência, do XXI – pensemos em Freud, Einstein e Wittgenstein – foi formulada em Viena num período curtíssimo de tempo, entre a passagem do século e a Primeira Guerra. O Ulysses, de James Joyce, o poema A terra devastada, de T. S. Eliot, e o romance O quarto de Jacob, de Virginia Woolf, as três obras capitais do modernismo inglês, foram publicadas exatamente no mesmo ano, 1922. Não se trata de um fenômeno restrito ao século XX. No ano de 1806, Goethe terminava a primeira parte do Fausto e Hegel a Fenomenologia do Espírito. Por falar em alemães, as obras capitais do romantismo alemão foram escritas em um período de não mais que trinta anos, na passagem do século XVIII ao XIX, por membros de um pequeno círculo que incluía Goethe, Hegel, Kant e mais uns poucos outros. As tragédias que até hoje lemos foram produzidas em um espaço de tempo de não mais que 70 anos, durante o século V a.C., em apenas uma, Atenas, dentre umas mil cidades gregas. Setenta anos pode parecer muito, mas se se leva em conta a duração da influência que todas essas obras tiveram, é um instante. Já no século IV a.C., não eram escritas novas tragédias, apenas eram relidas as mesmas, dos mesmos três poetas, assim como fazemos até hoje.
Esses são alguns exemplos proeminentes de um fato conhecido, mas não, talvez, meditado como se deveria, da história cultural: uma tradição literária não cresce de modo estável e constante como, por alguma razão, esperamos, mas sim através de saltos qualitativos que ocorrem no espaço de uma ou poucas gerações. As formas, conceitos e atitudes que alimentam o interesse das classes educadas de uma sociedade por séculos são pensadas quase ao mesmo tempo, por poucas pessoas. O contínuo trabalho sobre esse material compacto é conteúdo de uma tradição, no sentido de tradição literária.
O fato de que o ritmo da história seja, como o dos hexâmetros gregos, composto de um período curto e um longo, impõe que a cada tradição caiba apenas um momento fundador, perfeito, o qual ela vive na forma de comemorações, comentários, glosas e disputas. Ao contrário do que pode parecer a certa concepção romântica da criatividade humana, essas práticas são absorventes o suficiente para perdurar de modo fecundo e apaixonado por muitas gerações. Não, contudo, infinitamente. O tempo longo um dia se exaure. Chega uma época em que as camadas de explicações, a atenção ao detalhe, o comentário do comentário e as disputas intermináveis aparecem como causa de obscurecimento, não de acréscimo de saber. Um grupo é, então, levado à conclusão de que a inteligência original do momento fundador da tradição precisa ser recuperada. Eis que começa um movimento de retorno aos princípios. Passado algum tempo, o próprio movimento de recuperação, que se dará em um prazo relativamente curto, de grande euforia intelectual, será visto como um “renascimento”. Se for realmente recebido pela posteridade, o renascimento, que não precisa ser chamado por esse nome, nem ser feito de forma historicamente consciente, será objeto de mais algumas camadas de comentários – até outro se fazer necessário. E assim sucessivamente. Um renascimento não é, portanto, em essência, um evento, nem uma época, mas um entrelaçamento indecomponível entre eventos, memórias de eventos, memórias de memórias, intelecções e expectativas de futuro.
A expressão mais consciente desse entrelaçamento é, talvez, o primeiro parágrafo d’A Monarquia de Dante. “É muito importante, diz, nele, o Poeta, para todos os homens em quem a natureza superior imprimiu o amor pela verdade, que, beneficiados pelos esforços de seus predecessores, trabalhem pela posteridade.” A razão de ser da recuperação do saber do passado é, como se pode ver, a possibilidade que ele abre, a uma elite de filósofos e poetas, de enviar uma mensagem para o futuro. A concepção de Dante do sentido de seu trabalho já implica todas as notas essenciais do conceito de renascimento: 1) supõe um pequeno grupo; 2) não é separada do sentido de verdade atemporal, e o diálogo entre gerações históricas que ela propõe não supõe o que depois seria chamado de historicismo; 3) envolve não dois, mas três tempos distintos; 4) convoca, e, ao convocá-lo, cria um futuro e uma tradição, o que significa que 5) se trata de um ato comunicativo que não se pode dizer consumado enquanto não for respondido e que, portanto, não pode ser historicamente compreendido se for reduzido a seu próprio “contexto histórico”. O próprio fato de o autor da Divina Comédia não constar nos livros de história como um escritor “renascentista” deve servir para nos lembrar de não nos deixarmos mesmerizar pelos rótulos historiográficos. Embora o termo esteja associado a um período histórico em particular, o renascimento das letras e das artes dos humanistas italianos do século XIV não é o único ou sequer o paradigma do que seja, de fato, um renascimento.
Pela simples razão de que tal paradigma não existe. Um renascimento não é questão de Geschichte (os eventos históricos), mas de Wirkunggeschichte (sua eficácia na produção de novos eventos). Porquanto se trata de um esquema próprio da memória cultural do ocidente, se um determinado período deve ser visto como um nascimento ou um renascimento, um “verdadeiro renascimento”, um pretenso renascimento, não é uma questão de julgamento histórico, mas de convocações dirigidas a um público futuro fictício e respostas a antepassados descobertos a posteriori. O “renascimento italiano” só pode ser integralmente compreendido se for considerado enquanto uma resposta do romantismo do século XIX ao chamado humanismo italiano do século XVI. Os autores do chamado Renascimento do século XII não sabiam que encenavam um renascimento. Foram os medievalistas do século XX que, interessados nas questões que seu próprio tempo lhes apresentava, responderam ao seu chamado. Uma revista cursiva da tradição literária ocidental mostrará que os seus eventos fundadores, desde a Reforma Protestante até o chamado classicismo de Weimar, passando pelo iluminismo, pelo romantismo e pelo modernismo apresentam esquemas análogos quanto à sua memória, a qual, sob este ponto de vista, é a principal parte de sua história.1 O mesmo se aplica, aliás, a eventos fundadores locais, como, por exemplo, a memória da Semana de 22 no Brasil.
II
O filósofo norte-americano John Deely, autor de O que distingue o entendimento humano, publicado pela Vide Editorial, costuma ser, corretamente, apresentado como um semiotician.2 O termo ainda não tem o significado estabelecido em português – chamar um estudioso de semiótica de “semiótico” é, me parece, tão infeliz quanto chamar o estudioso de retórica de “retórico” –, mas diz respeito a um especialista na ciência da ação dos signos. Trata-se de uma das novas ciências da cultura, como o estruturalismo e os estudos de mídia, que se afirmaram na vida universitária a partir dos anos sessenta. Se o praticante do novo saber mais conhecido do público foi e ainda é Umberto Eco, Deely foi o mais profundo. E pode-se dizer que o mais entusiasmado. Ele profetizava que a semiótica teria, no século XXI, um papel cultural seminal, análogo ao papel desempenhado pela ciência cartesiana a partir do século XVI e pelas ciências histórico-culturais partir do século XIX. Foi como parte desse trabalho de proselitismo que ele lecionou na UFMG, nos anos noventa, a convite, aparentemente, da professora Lúcia Santaella Braga, maior autoridade brasileira na especialidade, sua estudante e amiga que aparece no índice remissivo da obra recentemente publicada.
Semiotician é, porém, uma designação insuficiente, que não faz jus à largueza da visão filosófica do autor. Deely é, obviamente, um estudioso de semiótica. Mas é, acima de tudo, um filósofo. Não qualquer filósofo, mas um metafísico que se ocupa das mesmas grandes questões que ocuparam os grandes pensadores da humanidade desde os tempos de Tales de Mileto: qual a natureza da realidade, qual a natureza da inteligência humana e como pode ser que esta se relacione com aquela? Em que a percepção humana difere da dos animais, existe realidade objetiva? Qual sua diferença com relação à realidade subjetiva? Dadas as respostas a essas perguntas, como pode ser contada a história do pensamento humano até agora? A semiótica é a perspectiva a partir da qual ele ataca esses problemas. Tomá-lo como um “semiótico” significaria colocar suas obras na mesma prateleira das de linguistas como Saussure, Greimas e Umberto Eco, ao menos suas obras especializadas. Não há nada errado com esses autores, mas eles não se ocupam da mesma ordem de problemas que Deely. Para piorar, no Brasil, os estudiosos do signo são leitura de estudantes dos cursos de Letras e Ciências da Comunicação. Suas ideias são frequentemente aproveitadas no estudo de subáreas de interesse marginal, como a análise literária, a publicidade, o cinema, a política cotidiana, por estudantes que têm minguado interesse nas grandes questões da tradição metafísica.
As obras de Deely devem ir para a mesma prateleira em que estão os grandes nomes da filosofia, perto das de Peirce, Maritain, Husserl, Heidegger – este último, objeto de sua tese de doutorado. Como o deles, seu trabalho sugere uma visão coerente da realidade, do homem e sua própria versão da história da filosofia. A semiótica não é concebida por ele como uma nova ciência à qual poderia talvez ser dedicado um novo curso universitário, mas como uma qualidade primária da experiência humana, o reconhecimento de qual é o único ponto de partida adequado para qualquer investigação abrangente, mas não por isso menos científica, da natureza humana. Mais do que isso: a qualidade da experiência sem a consciência da qual nenhuma investigação sobre o homem e mesmo sobre o animal, científica o quanto seja, poderá se tornar uma autêntica sabedoria. Não sendo ela própria uma sabedoria, a consciência semiótica é concebida por Deely como a porta através da qual as ciências têm de passar para se tornarem uma.
E que a palavra sabedoria não dê aqui uma falsa impressão. Deely é o exato oposto do diletante. Nem sua obra é para quem busca consolo na facilidade. A graça de sua leitura resulta, precisamente, da junção do ardor visionário do filósofo no sentido estrito da palavra, que lembra, sob certo aspecto, o clima dos anos setenta, em que a própria semiótica surgiu (e que tanto contrasta com a timidez da filosofia contemporânea), a uma linguagem não raras vezes extenuante, tanto pela complexidade do tema como pelo estilo caudaloso. Consta que o professor da University Saint Thomas escrevia prodigiosamente rápido, o que talvez explique por que ele comete os mais longos períodos jamais escritos por um filósofo norte-americano.
Como todos os pensadores que se ocupam de questões capitais, ele não apresenta a sua resposta à questão do que distingue a inteligência humana como um achado individual, mas como a restauração de um saber antigo, perdido durante séculos e por ele reencontrado. A particularidade está em que os séculos nos quais o saber em questão estivera perdido equivalem ao ciclo moderno da filosofia da inteligência humana; o saber reencontrado, àquele da tradição ibérica dos séculos XVI e XVII. A sua grande visão histórica pode ser descrita como chamado, dirigido ao mundo pós-moderno, a um “renascimento latino,” ou até um “renascimento português”: um retorno à sabedoria encontrada no momento fundador da cultura lusitana. É justo usar a palavra, pois se trata de um movimento de retorno movido não por motivo antiquário, mania de originalidade, ou particular paixão por Portugal, mas porque ele entende que essa sabedoria lusitana em particular oferece o melhor ponto de partida possível para enfrentar os problemas filosóficos da nossa própria época – redutíveis, segundo ele, a problemas semióticos – e transcendê-los rumo a uma visão superior que os inclua.
Como os outros períodos de nascimentos e renascimentos, a tradição a que Deely propõe o retorno emergiu, em seus traços fundamentais, em um período relativamente muito curto, foi, em um espaço muito concentrado, obra de poucas pessoas que superaram o que havia de mais alto em sua própria época. Além disso, sua influência foi tal que a tradição que fundaram não é capaz de esquecê-los sem se tornar a parte periférica e insignificante de outra tradição. O que foi exatamente o que aconteceu, a partir do século XVIII, com as Reformas Borbônicas na Espanha e as reformas do Marques de Pombal em Portugal. Um dos feitos desta última foi a expulsão dos jesuítas em 1759, precisamente os discípulos do pequeno grupo responsável, em última instância, por elevar a cultura lusa ao patamar de relevância universal.
III
O mito fundador literário que até hoje simboliza a cultura portuguesa para si mesma e para o mundo é, naturalmente, o de Luís de Camões. Os Lusíadas, publicado em 1572, são, porém, apenas o ponto alto poético da grande época da cultura portuguesa. O legado lusitano inclui, como se sabe, obras em prosa de natureza literária, como a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, escrita quase nos mesmos anos que o poema camoniano, as Décadas, de João de Barros, publicadas a partir de 1555, hoje leitura de especialistas, e o monumento, não suficientemente conhecido pelo público atual, que são as cartas jesuíticas, que enorme influência tiveram no pensamento social ocidental como um todo. Obras que, por sua vez, eram contemporâneas das de Teresa de Ávila, João da Cruz, dos poetas do Siglo de Oro e de Cervantes.
Fruto do mesmo contexto cultural é a obra que nos diz respeito: em seu nome atual, o Curso Aristotélico Jesuíta de Coimbra, historicamente conhecido como o Conimbricences.3 O curso é uma coleção de oito volumes de comentários às obras de Aristóteles concebida pelo filósofo jesuíta Pedro da Fonseca para servir de base ao ensino no Colégio de Artes da Universidade de Coimbra, mais ou menos na mesma época em que Camões escrevia Os Lusíadas,e publicado sob a responsabilidade de Manuel de Góis nos anos em que Cervantes engendrava o Quijote. Implícita na visão de Deely está a proposta de que aquele que queira ter uma visão a respeito da inteligência humana que inclua e supere as aporias da filosofia moderna deve recorrer a esse lugar e não a outro. O que é o mesmo que dizer: deve, como trabalho preliminar, cuidar da memória daquele momento fundador da cultura portuguesa.
Embora lembrado pelos conhecedores de história da filosofia portuguesa, o Curso não é suficientemente levado em consideração quando se trata de considerar a identidade da tradição cultural ibérica – o que inclui o Brasil. Não é difícil entender por quê. O fato de se tratar de um sisudo compêndio de filosofia aristotélica sugere uma erudição livresca desprovida da dignidade de um monumento de cultura. Por ser um comentário, sua inspiração parece técnica e rebarbativa. Que sejam comentários escritos em latim, não em português ou espanhol, é fato que o coloca definitivamente fora dos cânones românticos da identidade cultural, que atribuíam um valor central à língua. Por último, mas não menos importante, a fé católica e o estatuto eclesiástico dos autores o colocam fora do padrão de gosto da memória cultural moderna. Um pensador como Joaquim de Carvalho, talvez o grande filósofo e historiador coimbrão do século XX, chega a desdenhar da obra dos padres da Companhia, reconhecendo seu sucesso internacional, mas considerando-a contrária a um suposto espírito criador do humanismo.4
Nenhuma dessas razões é, porém, mais que uma explicação a posteriori. Como é sempre o caso em questões de memória cultural, não se trata de um erro de julgamento histórico por parte de Carvalho ou qualquer outro, mas do desdém de quem não participa de um projeto por não conseguir se ver como seu contemporâneo. Nada foi mais vivo, criativo e de seu tempo do que o conimbricences. Longe de ser uma empreitada de filósofos recolhidos em uma Torre de Marfim, o aristotelismo jesuíta estava para as monarquias ibéricas, mal comparando, como o idealismo estava para a monarquia constitucional prussiana. Fonseca, em Coimbra, era uma espécie de Hegel em Berlim, cortesão, administrador de instituições religiosas e pedagogo de um regime que se valia de sua ordem como elite cultural. O próprio El-Rei Dom Sebastião assistiu à sua defesa de doutorado em Évora. O instrumento pedagógico que ele concebeu servia para formar, na mais rigorosa ciência do tempo, um corpo de missionários que iria promover um dos mais ambiciosos projetos de “política cultural” da história da humanidade. Entre seus frutos contam-se as traduções de Ética a Nicômaco para o chinês e as reduções jesuíticas no Paraguai, sem mencionar a própria Ratio Studiorum, um dos programas pedagógicos mais eficazes de todos os tempos. Os jovens que eram introduzidos em sua árdua doutrina nas salas empoeiradas de Coimbra, Évora, e depois em várias faculdades jesuítas europeias, nada tinham do tipo do estudante melancólico levado entre as paredes de seu quarto, como Fausto, pelo vento de suas elucubrações. Longe de ser um fim em si mesmo, o estudo tinha a finalidade de prepará-los para enfrentar trabalhos e perigos que, vistos com os olhos de hoje, parecem quase mágicos. Nem se poderia esperar outra coisa de um ensino realista, fundado na capacidade humana de conhecer a realidade, que não poderia ter outra finalidade senão prepará-lo a haver-se com ela.
Tampouco deve iludir o leitor o fato de tratar-se de comentários. Originalidade é uma noção elusiva na história da filosofia. Nem o uso de uma terminologia nova, nem a pretensão, comum a partir do século XVIII, de fundar uma nova disciplina filosófica, significam por si mesmas que um filósofo é autor de uma visão pessoal. E vice-versa: um comentário não é necessariamente uma repetição estéril. A boutade de Whitehead, de que todas obras filosóficas da humanidade são um comentário a Platão, é mais verdadeira do que pode, talvez, parecer à primeira vista. Como sabem muito bem os historiadores da filosofia da Idade Média, época dourada do gênero, a exposição fiel, para fins pedagógicos, de uma doutrina, é não poucas vezes ocasião de inovações de caráter epocal na história das ideias.
Este é, precisamente, o caso do Curso Aristotélico coimbrão, que além de ter sido um manual de enorme sucesso editorial, usado em faculdades de toda a Europa por vários séculos (Marx chega a citá-lo em sua tese de doutorado, defendida em Jena, em 1841), foi um marco na história do pensamento lógico.
IV
Uma das maneiras de definir o significado histórico do conimbrences é dizer que ele foi o primeiro programa filosófico a interessar-se consistentemente pelo modo como o pensamento lógico enraíza-se no homem. A ordem tradicional dos estudos lógicos era, e ainda é, começar das regras básicas do raciocínio e daí prosseguir, cumprindo a finalidade da disciplina de ensinar o bom uso da razão. Sem intenção clara de abandonar esse uso, ocorreu, porém, aos mestres de Coimbra, guiados pela inspiração da época e lugar, colocar, ainda de modo tateante, a pergunta preliminar de se o pensamento lógico não estaria fundado em uma operação anterior da inteligência, pré-lógica, mas já não irracional.
É na investigação dessa questão que consiste a semiótica.
A nova disciplina parte da averiguação de que, antes de fazer uma inferência lógica, que vai de um conceito para outro, o homem faz uma inferência a partir de signos (em grego semeion). Ocorre que a inferência por meio de signos tem, com a realidade, uma relação distinta dos conceitos com que opera a lógica. A fumaça não guarda com o fogo a mesma relação que o nome fogo. O conceito de fogo, pressuposto tanto no nome quanto na figura, diz mais a respeito do fogo que a fumaça. A prova é que podemos descobrir aspectos de um fenômeno apenas sabendo que se trata de um fogo (como conhecemos o aspecto de uma pessoa apenas examinando sua imagem), mesmo que não tenhamos uma experiência direta dele.
Essa vantagem vem, todavia, à custa de uma desvantagem. O uso dessas “imagens mentais”, que são os conceitos, requer do sujeito pensante que ele se isole momentaneamente em seus pensamentos, que se distancie do fogo real apresentado pela experiência para refletir sobre o fogo conceitual. Como este não é o fogo, mas só o fogo pensado, nada impede que ele siga pensando, deduzindo coisas que já nada têm a ver com a realidade de fora de seu espírito, como um motorista que, olhando para o mapa, esquece de olhar para a estrada. A partir dessa possibilidade, muitos pensadores concluem que o mapa, isto é, o conceito, não tem originalmente nenhuma relação com a realidade exterior, que não a representa de modo algum, mas é uma pura construção do espírito que lhe é sobreposta. É o ponto de partida da tradição filosófica moderna.
Que se trata de uma conclusão precipitada que gera mais problemas do que é capaz de resolver, não é possível discutir aqui. Basta mencionar que, com o uso dos sinais, dá-se o oposto do que se dá com o conceito: a fumaça é um sinal do fogo, mas não um conceito. Isso significa que apreender uma noção não conduz ao entendimento do outro. Embora fumaça e fogo estejam conectados na experiência, e daí na memória, o conhecimento da fumaça não leva ao mesmo tipo de conhecimento do fogo que o simples conceito fogo leva. Para dizê-lo de outra maneira: conhecer o fogo por meio do conceito de fogo não é o mesmo que conhecê-lo pela fumaça (a real, não a conceitual).
Outro exemplo: o conhecimento que temos da presente aparência de uma mulher através dos vestígios em seu quarto vazio, como nas cenas dos filmes noir, não é o mesmo que temos pelo retrato. Não resta dúvida de que as pistas, os perfumes, as roupas espalhadas e os restos de maquiagem permitem ao detetive ter algum conhecimento de sua atual aparência, mas esse não é do mesmo tipo que se obtém ao ver a sua imagem. O conhecimento pelos vestígios trás menos notas do objeto a que ele refere, mas é mais realista. Ao contrário do retrato, que pode ser falso, o vestígio não mente. Ele não prende quem o estuda em seus próprios pensamentos, mas o arrasta para o mundo exterior. Histórias de detetive costumam jogar com diferença, tanto na mente do detetive como na do leitor.
A diferença entre o conhecimento por sinais e o conhecimento por conceitos é a que existe entre duas operações mentais, a de significar e a de representar. A fumaça e os vestígios significam o fogo e a aparência da mulher, mas não a representam. A relação entre ambas não é de oposição, mas de gênero e espécie. A representação é um tipo de significação. Toda representação é uma significação, mas nem toda significação é uma representação.5
A distinção entre significação e representação é o ponto de partida privilegiado a partir do qual se deve considerar a natureza da inteligência humana, pois tanto o homem como o animal são capazes de significar (na verdade até as plantas o são), mas só o homem é capaz de representar. O uso de conceitos é próprio da racionalidade humana, mas o uso de sinais é comum a homem, animais e plantas. Começar o estudo da lógica pelo estudo da semiótica significa acenar para a possibilidade de integrar a disciplina da lógica, disciplina que estuda a conexão entre os termos, à antropologia, a ciência do homem – e de seu maior mistério, a inteligência.
Não era assim que a matéria era tratada nas obras filosóficas no tempo do Curso Aristotélico. O modo de tratar o tema deixava parecer, sem afirmar, que há um salto entre a percepção da realidade propriamente humana – a que representa – e a percepção animal, a dos sentidos, que também está no homem. A tradição do Curso foi a primeira a chamar atenção para o fato de que, entre o que sentimos e o que inteligimos, está o fato de que significamos. É nesta operação que vamos identificar o ponto em que a inteligência humana se distingue da “inteligência animal”, de que trata a obra de Deely.
Numa época de obscurantismo antropológico induzido, em que o tema da natureza humana, por isso mesmo, tornou-se o mais urgente, nada é preciso dizer para encarecer a importância de colocar o problema corretamente, mérito de que a tradição do conimbricences pode se congratular.
Por conta de sua perspectiva inovadora, a obra dos padres de Coimbra é, seguramente, um dos cumes da tradição latina do pensamento filosófico, distinta tanto da grega como da moderna, e complementar às duas. A tradição filosófica grega estava principalmente interessada na realidade que o homem representa com suas ideias, e não com a representação mesma. Já a filosofia moderna interessa-se muito pelas representações e pouco pela realidade extramental, ao ponto de colocar a questão de sua existência entre parênteses. O realismo da filosofia clássica não se ocupa do fato de que o espírito humano constrói, em algum sentido, o mundo por meio de signos que não são conceitos e que não representam, portanto, a realidade exterior. A filosofia moderna e sua consumação pós-moderna, para a qual tudo são signos, e a realidade a que fazem referência ou não existe ou não importa. O estudo da operação dos signos é a única perspectiva que oferece uma descrição do espírito humano que, sem deixar de levar em conta o fato de que ele, assim como os animais, usa signos, e afirmando, como o pensamento moderno, que ele não tem um acesso imediato à realidade exterior, converge com a tradição realista que afirma que é capaz de conhecer essa realidade.
Para nós, o século XX aparece principalmente como um período de crise e encerramento epocal, mas ele talvez seja visto, no futuro, como o de um período de renascimento. A filosofia de todos os seus pensadores representativos encerra, como resposta à crise moral e existencial a que a consumação do projeto moderno levou, um programa pedagógico de retorno à tradição. Contudo, eles diferem com respeito a qual seja essa tradição. Heidegger clamava a um retorno ao pensamento pré-socrático, Eric Voegelin, Leo Strauss e Hanna Arendt à filosofia das escolas atenienses. Alguns, à sabedoria perdida do oriente. Os neo-tomistas, ao aristotelismo escolástico.
Deely, que se doutorou em um dos centros desse renascimento clássico, a universidade de Chicago – onde lecionavam, além do neo-platônico Leo Strauss, o neoaristotélico Mortimer Adler –, é, essencialmente, um filósofo neo-tomista da linha de Jacques Maritain. Vista em seu contexto mais amplo, sua obra é parte da resposta católica à crise do iluminismo do século XX iniciada por este último. Sua peculiaridade está no otimismo com que ele convoca o retorno ao passado – de todos, o seu programa de renascimento é o mais orientado ao futuro –, e no fato de que o retorno, tal como ele o concebe, passa pelas raízes intelectuais do Brasil.
Para formulá-lo num simbolismo caro aos pensadores que procuraram responder à crise da cultura do meio do século com uma ideia de retorno, podemos dizer que, se para alguns o movimento de retorno às raízes passa por um retorno a Atenas, para outros a Jerusalém, ou à Paris medieval, para Deely, passa pela Coimbra do século XVII.
V
Deely não tem nenhum interesse na memória da cultural portuguesa em particular, ou mesmo na obra dos jesuítas de Coimbra. Seu trabalho não versa sobre história da cultura em sentido amplo. A teoria do signo não consta no Curso como vai formulada acima. Estritamente falando, não se pode nem dizer que a semiótica tenha sido uma criação intencional de Pedro da Fonseca ou de Manuel de Góis. Na verdade, o primeiro autor a tratar do tema, um dos poucos que os latinos não herdaram dos gregos, foi Agostinho. Depois dele, a preocupação com a operação dos sinais permaneceu de modo implícito durante toda a Idade Média. O próprio Curso aborda o problema de modo apenas marginal. O mérito de tratar da questão de modo cabal, pela primeira vez na história do pensamento humano, cabe a um aluno de Coimbra formado no Curso, o dominicano português João de São Tomás, nascido João Poinsot.6
É à obra de Poinsot que a de Deely constantemente se remete. Ele não apenas compilou e traduziu seus escritos sobre o signo, recompondo o que é o primeiro tratado semiótico da história, mas reescreveu a história da filosofia ocidental, na monumental Four Ages of Understanding, conferindo um lugar central ao pensador português. Seus escritos certamente fizeram mais do que os de qualquer outro pela glória daquele que é, talvez, o maior gênio filosófico ibérico (o granadino Francisco Suárez, que também lecionou em Coimbra), quando não fosse por outra razão, pelo simples fato de fazê-lo para o público anglofalante.
E mesmo no que diz respeito à obra de João de São Tomás (chamemo-lo como ele é conhecido em Portugal), as preocupações históricas de Deely são apenas diacrônicas. Ele se ocupa com o passado e o futuro de suas ideias, mas não com seu contexto. Ele observa, por exemplo, que o Tractatus de Signis foi escrito em 1630, a mesma década em que René Descartes – outro aluno dos jesuítas e leitor do Curso, aliás – escreveu suas principais obras, inaugurando um outro modo de conceber o funcionamento da inteligência humana, inteiramente centrado na operação lógica. A obra do sábio português, o canto de cisne da tradição latina em filosofia, ficaria dormente mais de duzentos anos até ser descoberta pelo filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce. Como o próprio Peirce era, por sua vez, um sábio à frente de seu tempo, seus escritos também ficaram dormentes um bom número de décadas, até serem descobertos nos anos vinte do século XX. Eles serviram de fundamento para autores, como Thomas Sebeok, sistematizarem, a partir dos anos cinquenta, a disciplina da semiótica que, para Deely, é o paradigma científico do século XXI.
É uma história fascinante e não há dúvida de que é a que deve ser contada para o público americano. Mas isso não quer dizer que seja a única que deva ser contada. Ao público cuja história intelectual foi marcada pela obra da ordem jesuíta, cuja educação literária consistiu durante gerações (hoje não mais) na leitura de Camões e Antônio Vieira, escritas no mesmo idioma e na mesma época cultural em que a obra de João de São Tomás, interessa conhecer o contexto cultural em que elas puderam surgir. Pela simples razão que esse contexto é o da formação de sua própria tradição filosófica e literária. A questão de saber se a semiótica é, estritamente falando, criação de Poinsot ou do Curso, ou de qual autor do Curso, é inconsequente, pois o fato é que pertencem ao momento inaugural do que é a mesma tradição, que é a única tradição intelectual que não é, no Brasil, uma importação estrangeira. O que não quer dizer que não se tenha tornado estranha, e que não precise, para reencontrar-se, ser reintroduzida de fora.
Reintrodução que não pode acontecer a não ser que seja precedida por um trabalho de memória. Quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur: aquilo que é recebido, é recebido ao modo do recipiente. O axioma escolástico vale também para os traslados culturais. Para o público brasileiro do século XXI, tão importante quanto saber que o Tratado sobre os Signos é contemporâneo das obras de Descartes e que foi esquecido e recuperado duzentos anos depois por Peirce, é saber que ele é profundamente influenciado pelo Curso de Coimbra e é, em sentido amplo, contemporâneo das obras fundadoras da cultura portuguesa e espanhola. A Segunda Parte do Dom Quixote é de 1610, as primeiras tragédias de Calderón de La Barca, dos anos vinte. Não por enfatuação, mas porque a memória do Barroco está viva na cultura hispânica, da qual a brasileira é parte, de um modo que não está na América de Deely. A riqueza especulativa de sua obra deveria, graças à existência dessa memória, integrar-se à cultura literária de modo mais completo do que na sua própria, na qual o seu papel está restrito ao de uma especialidade universitária entre outras. E vice-versa: o estudo de suas ideias deveria ter o poder de reanimar a memória dormente da tradição filosófica hispânica, não para satisfazer nenhum complexo de inferioridade, mas por que, segundo o próprio Deely, no renascimento dessa tradição está a chave do futuro da filosofia.
Mas para que haja a mínima probabilidade de que essa possibilidade possa vir a realizar-se, não basta a memória de um passado glorioso já esquecido. É preciso algo mais que o simbolismo depauperado dos nomes dos heróis lembrados como nomes de ruas. Deve haver uma continuidade mínima entre o momento fundador e o presente, que possa fazer as vezes do que, em arquitetura, é a ruína. A construção que, inutilizada, é superior como modelo pelo fato de que representa um elo com o passado e, portanto, com o futuro.
A primeira coisa que devemos fazer para receber de modo fecundo a visão histórica de Deely na cultura brasileira do século XXI é descobrir quais obras do passado recente, se é que há alguma, guardam a herança da escolástica barroca a que a restauração semiótica que ele propõe faz referência. Los libros están cargados de passado, dizia Jorge Luís Borges. Só faz sentido falar em uma memória, ainda que dormente, da tradição do Curso e da filosofia de João de São Tomás, se existirem, na cultura brasileira e portuguesa, obras significativas, não só que a estudem insipidamente, mas que estejam carregadas com o mesmo passado, que façam parte da mesma tradição.
VI
Tal como vejo, o tratado de Deely vem juntar-se, no trabalho de herdar o mesmo passado, a quatro monumentos das letras filosóficas em língua portuguesa do século XX. O fato de que sejam monumentos mais ou menos esquecidos não os torna, por causa disso, menos monumentais. Ainda que não lembrados, são dignos de memória. São, no bom sentido da palavra, ruínas. São eles, e não outros, cada um em seu gênero, o que, na nossa tradição filosófica, está carregado de passado e, portanto, apto a inspirar o futuro.
O primeiro é a própria tradição do neo-tomismo universitário, até hoje o ponto alto da filosofia universitária luso-brasileira, e a única realmente congruente com sua cultura. O neo-tomismo é tão brasileiro quanto o samba. Não temos, talvez, muitos grandes filósofos dessa escola, mas quase tudo o que na filosofia brasileira foi grande foi inspirada, em alguma medida, por ela, desde os tempos da colônia. De Leonel Franca a Lima Vaz, entre tantos outros. A tal ponto que não penso que seja exagero dizer que o declínio da influência escolástica dentro da Igreja Católica teve entre seus efeitos colaterais o declínio da cultura filosófica brasileira (e quem sabe quantas outras). Desprovida da fonte de seus mais arraigados hábitos universitários, sobrou para os filósofos brasileiros elaborar fragmentos de tradições importadas e não assimiladas, e, a partir delas, produzir obras individuais meritórias, mas sem continuidade, fruto estéril de erudição desprovida de horizonte superior ao pedantismo. O ecletismo, o positivismo e as ciências socais, tendo-se enraizado culturalmente, são filosofias essencialmente secundárias, insuficientes como inspiração de uma tradição especulativa poderosa. Um público filosoficamente educado à brasileira, que, se ainda existisse, seria um público escolasticamente educado, seria capaz de apreender o teor e o alcance de ideias como as de Deely e de continuá-las criativamente. Mas não é à brasileira que os estudantes de filosofia são educados no Brasil.
O segundo é a obra de Gustavo Corção. Autor de um livro de memórias e um romance que se encontram, ambos, entre os clássicos da literatura brasileira, Corção foi principalmente um ensaísta. É dele aquele que é, provavelmente, o maior exemplar do gênero em língua portuguesa: A técnica de Deus, sua arte e seu amor,7 uma reflexão sobre a providência divina cujo argumento se funda no ensaio de Jacques Maritain Signe et symbole, o qual, por sua vez, funda-se na obra de João de São Tomás. Não apenas este ensaio em particular, mas, de certo modo, todos os ensaios políticos e literários de Corção partem da centralidade da ideia de sinal. É a ideia de sinal que está no centro, por exemplo, de sua interpretação metafísica – a meu ver, substancialmente correta – do ceticismo de Machado de Assis, em Desconcerto do Mundo. Deste ensaio, se pode dizer que é uma interpretação do maior romancista do idioma por um dos seus maiores estilistas, inspirada nas ideias do maior filósofo português. Mais do que em qualquer outro prosador brasileiro, a obra de Corção deixa evidente o quanto as abstrações do realismo escolástico podem servir de fundamento para obras literárias atadas à realidade concreta, vivas, isentas de todo doutrinarismo.
O terceiro monumento são os três volumes da obra do “mais competente teórico da linguagem de língua portuguesa”8, José Gonçalo Herculano de Carvalho, Teoria da Linguagem: natureza do fenômeno linguístico e a análise das línguas.9 Nascido em Coimbra, professor na mesma universidade dos autores do Curso seiscentista, cujo nome permanece, não surpreendentemente, esquecido pelos filósofos num século em que o tema da linguagem foi dominante, Herculano de Carvalho foi um dos primeiros redescobridores do pensamento de João de São Tomás no século XX, cujo pioneirismo é reconhecido pelo próprio Deely. Como ocorre com a obra deste último com relação à semiótica, o interesse das ideias de Herculano de Carvalho transcende o da pura ciência linguística.
Treinado nos métodos mais modernos desta disciplina, especialista em dialetologia, Herculano de Carvalho era ao mesmo tempo um filósofo de rara inteligência sintética, capaz de, sem o mínimo espírito de escola, integrar as categorias do pensamento escolástico à pesquisa linguística mais avançada. Quando morreu, estava escrevendo uma crítica à linguística cartesiana de Chomsky, a escola dominante de seu tempo, a partir do pensamento de João de São Tomás. (Que o paradigma da gramática gerativa tenha sido contestado pela investigação conduzida por Daniel Everett entre nos Pirahã da bacia do Maici, bem mostra a fecundidade científica do pensamento escolástico, o qual tornou possível a Carvalho chegar, por meios puramente especulativos, às mesmas conclusões que Everett chegou por meios empíricos quanto aos limites da ciência chomskiana).
Era, enquanto filósofo, um mestre. Seu tratado, em particular o primeiro tomo, é, ao mesmo tempo uma proeza pedagógica e especulativa, segundo a tradição de sua universidade. Escrito para seus alunos de graduação, a obra consiste, nominalmente, numa introdução geral à linguística. Sua profundidade é tal, contudo, que se pode dizer que se trata de uma obra de antropologia filosófica com foco no tema da linguagem. É certamente a maior do gênero nas nossas letras, inclusive pelo estilo claro e sereno de sua prosa, exemplo de exposição filosófica numa cultura em que tais modelos não abundam. Deveria ser leitura obrigatória não apenas dos estudantes de linguística, mas de ciências humanas em geral.
Por último, consta que Mário Ferreira dos Santos, cujas dezenas de volumes da obra vem sendo reeditados em edições inclusive luxuosas, obra esta que vai finalmente sendo reconhecida como o maior monumento de nossa tradição filosófica, tinha em mente traduzir o Tratado dos Signos de João de São Tomás quando morreu.9 Filho de portugueses e aparentado de Camilo Castelo Branco (que era padrinho de seu pai), educado por jesuítas, Mário Ferreira era talvez o maior conhecedor de seu tempo da escolástica portuguesa, da qual ele foi certamente o grande representante no século XX. Não por coincidência, tanto a revisão do significado de sua obra como a publicação das obras de Deely se devem ao patrocínio de Olavo de Carvalho, pensador que, se andava longe da escolástica quanto à forma de expressão, não o era quanto aos princípios filosóficos, além do que escrevia em um estilo imbuído do espírito do Barroco.
VII
Esta lista de “monumentos literários” não é exaustiva nem é a enumeração dos membros de uma escola filosófica. Estes autores não se conhecem nem se referem uns aos outros em suas obras. Seus nomes vão aqui como provas do fato de que este documento do momento fundador da cultura luso-brasileira, o Curso Aristotélico Jesuíta Conimbricence, ainda no século XX, vive na forma de uma memória cultural dormente, mas ainda capaz de inspirar, mesmo que de modo esporádico, obras que estão entre o que de mais elevado se escreveu nesse século. Se de uma memória viva se tratasse, uma obra como a de Deely viria a encontrar, aqui, a recepção fecunda que ela não pode ter na sua cultura de origem, no contexto da qual ela representa uma performance extraordinária, certamente, mas não um chamado de retorno ao momento fundador daquela tradição cultural como um todo.
Como não é esse o caso, a publicação pode ter três resultados: ser ignorada (o mais provável); ser recebida como mais uma novidade, adotada por curiosos estudantes de pós-graduação, que sobre elas escreverão teses de doutorado, tornando-se depois franqueados na feira de autores que é o sistema de ensino de filosofia no Brasil, ainda hoje organizado em uma ecologia da esterilidade, já descrita por Guerreiro Ramos nos anos cinquenta.10 Ou servir para despertar a memória dormente de sua própria tradição filosófica, não por patriotismo cultural, mas por que, na recuperação desse passado, está um dos futuros possíveis da filosofia.
_________________________________________
Notas:
1 Ver Rosenstock-Huessy, Eugen. Filhos da Revolução: autobiografia do homem ocidental, Vide Editorial, 2023.
2 Deely, John. O que distingue o entendimento humano, Vide editorial, 2024.
3 Cujos volumes vêm sendo reeditados sob a direção de Mário Santiago de Carvalho. Ver o volume introdutório de sua autoria, Curso Aristotélico Jesuíta Conimbricence, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019.
4 De Carvalho, Joaquim. Sobre o Humanismo português na época da renascença. In: Obra Completa vol. II, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 43.
5 Deely, John. O que distingue o entendimento humano, p.
6 A relação entre Deely e o Curso é estabelecida na bela introdução de Robert Junqueira: As fontes latinas de Deely:
o caso do Curso Conimbricence. Op. cit.
7 Em Fronteiras da Técnica, Vide editorial, 2021. Original de 1963.
8 Bechara, Evanildo. Herculano de Carvalho: In memoriam (1924-2001), In: Revista Veredas: revista da associação internacional de lusitanistas, Tomo II, Volume 3, Porto, Fundação Antônio de Almeida, 2000. 9 Atlântida Editora, 1967. A edição mais recente é a da Coimbra Limitada, de 1983.
9 Amsterdã, Elvis. Vida e obra de Mário Ferreira dos Santos, Danúbio, 2023.
10 Em Introdução crítica à sociologia brasileira, UFRJ, 1995.