«Machado de Assis. Histórias de Terror, Horror e Mistério. (Org. Matheus Araújo, Gabriel Santana) Curitiba: UBIQ!, 2024.»
Machado de Assis é, sem superlativos, um dos grandes contistas de toda a literatura. Compara-se a Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Flannery O’Connor, Anton Tchekhov, James Joyce, Jorges Luis Borges e Julio Cortázar. Suas histórias curtas, de Contos Fluminenses (1870) a Relíquias de casa velha (1906), formam uma enorme coletânea de quase duzentos contos que refletem o tamanho deste autor: passando pelos mais diversos momentos da literatura brasileira, até chegar num ponto de ruptura e inovação, as pequenas narrativas de Machado são empreendimentos de um gênio que não procurou o simples, o fácil, o lugar-comum — antes de tudo, experimentou e reinventou sua forma de narrar, resultando em uma obra maior da nossa língua.
Neste sentido, é possível identificar através dos contos as características marcantes de Machado autor: sua participação no momento romântico, o duplo-cinismo dos narradores e personagens, o pessimismo da sua narrativa, o autoengano, a formação política e social brasileira e, por que não?, o flerte com o mistério e o sobrenatural.
Seu primeiro livro de contos é publicado justamente um ano após o “fim” da geração ultrarromântica. A nossa literatura, naquele momento, já estava imbuída em autores como Lord Byron, Edgar Allan Poe e Johann Wolfgang von Goethe; em que o suicídio, a perda da pessoa amada, a aproximação com o oculto e até mesmo o satanismo tornaram-se elementos estéticos, filosóficos e ficcionais. Álvares de Azevedo e seu “Noite na Taverna” eram um reflexo disso, assim como toda a sua “geração maldita”. Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, no mesmo período, publicaram “O Mistério da Estrada de Sintra”, uma original abordagem da narrativa policial.
A partir desse contexto, Machado de Assis escreve contos que, para além das evidentes temáticas sociais — tão abordadas, estudadas, criticadas e difundidas —, trazem uma aura de mistério, e por vezes terror, pouco observada na fortuna crítica machadiana.
Desde sua sátira satânica “A Igreja do Diabo”, passando pela narrativa quase policial em “A Cartomante”, chegando ao horror de “Sem Olhos”, Machado explora os limites da consciência e do desconhecido, trazendo elementos que flutuam entre o familiar e infamiliar, a luz e a penumbra. No entanto, essa característica não exclui as demais já citadas: o oculto em Machado serve como ferramenta ficcional para expressar suas temáticas já recorrentes — o adultério, a corrupção, o ser e o não-ser.
Nessa perspectiva, o Bruxo do Cosme Velho se aproxima do Bardo Inglês: Shakespeare, em suas peças e poemas, faz uso de elementos sobrenaturais para expressar a psicologia das personagens. O espectro em “Hamlet”, as três bruxas de “Macbeth”, o lenço perdido em “Otelo”, o onírico em “A Tempestade” e o fantástico em “Sonho de uma Noite de Verão” são componentes fundamentais para a construção dos dramas interiores shakespearianos.
Porém, Machado utiliza tais estratégias de maneira tão singular, representando um avanço significativo nos gêneros de terror, horror e mistério, que o estranho soa como ordinário, o insólito passa a ser habitual.
A fim de despertar os leitores para a veia macabra e extraordinária do filho do Morro do Livramento, reunimos nesta edição alguns de seus contos mais célebres, constando em seus principais livros e antologias, e outros menos aclamados, tendo sido somente publicados avulsamente em jornais e revistas.
Certas narrativas já são bastante conhecidas do leitor machadiano — outras nem tanto. A presente edição é um convite ao público para observar a obra de Machado em outra perspectiva; tentar buscar, além do que comumente é comentado acerca de seu trabalho, uma parte mais sombria e infelizmente esquecida.
Também inserimos, ao final da coletânea, a clássica tradução de “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, feita por Machado de Assis em 1883 — a primeira em língua portuguesa —, com o objetivo de que o leitor entenda também o trabalho de verter um clássico poema de língua inglesa para o nosso idioma como um componente da produção de terror, horror e mistério do nosso bruxo.
Adverte-se ao leitor: as páginas a seguir contém altas doses de bruxaria. Leia por sua conta e risco.