— por Jessé de Almeida Primo
O bom ladrão
Morro sem cuidado,
ao lado do imenso
morro bem, suspenso
como o beijo ao lábioque falou-me, sábio
do que eu não sabia.
Morro de alegria,
morro bem ao ladodo que foi enfim
julgado, açoitado
e crucificado
por mim.
Lendo As horas de Katharina, de Bruno Tolentino, sou arrebatado pelo primeiro verso deste poema, “Morro sem cuidado”. O poema já começa com um dos versos mais ternos, mais doces da nossa língua, no qual o poeta usa uma expressão que é vulgarmente encontrada em textos de língua portuguesa mais antigos, ao menos entre os do século XX que não são tão contemporâneos. Não que seja uma expressão pomposa, típica de quem tem o gosto pela exibição vocabular, pelo contrário, embora não tão usual é de apreensão imediata. O que não é usual é alguém escrevê-lo, ser a primeira palavra que ocorre a quem queira expressar o sentimento de “despreocupação”, aquele sentimento de alívio, que diz respeito a um grande peso que tanto oprimia o espírito e do qual, quando menos se espera, se livra; é a mesma alegria-alívio que imagino o bom ladrão teve ao ouvir de Cristo: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso.”
É um daqueles poemas, lição de Bandeira e do modernismo inglês, em que Tolentino mostra a capacidade de dizer algo diretamente, límpido, mesmo que metafórico, da metáfora literária que se funde ao registro de comunicação imediata, como se destituído do intermédio de alguma figura de linguagem; é o mesmo princípio que rege o que ele sugere a respeito do poeta como alguém capaz de pedir uma pizza por telefone. E que discurso, afinal, dispensa metáfora? Mesmo nos poemas em que as imagens são mais exuberantes, com mais colorido, em verdade por isso mesmo, acaba por dizer algo da melhor maneira e, desse modo, exasperadamente clara: “como um louco que salta da janela/ atrás do próprio grito de agonia.”(“Um ofício de sombras”, in O mundo como ideia). Recorrendo nesses versos à sinestesia o autor atinge uma espécie de simbolismo com dicção parnasiana, dando figuração concreta, escultural a um tormento íntimo, subjetivo. Que melhor maneira para dizer o desespero extremo, sem nenhum contorno, senão dando à voz a fisicalidade corporal, que pudesse ser perseguida e alcançada por quem a emite? Nem mesmo o discurso que se pretende científico escapa a imagens, a símiles. Voltando ao poema em questão, não há uma busca pela expressão que é imediatamente ou convencionalmente perceptível como poética, lírica ou o que valha, mas sim a busca pela palavra justa, exata. De resto, ele compensa – se é que compensar é uma palavra que faz justiça – essa expressão despida com um senso rítmico-musical muito apurado, com um senso de apoio acentual de primeira:
Teodoro Adorno,
olhando em torno
eu te diria
que é mais urgente
do que impossível
fazer poesias
por estes dias.
Por esta gente.
Na falta de palavra melhor, o que está dito neste trecho de “Minima moralia”, publicado nos Deuses de hoje, é, perdoem-me o truísmo, exatamente o que estamos lendo. O sentimento, por outro lado, vai mais fundo que essa expressão despida, não a despeito dela e, sim, por causa dela, e que muito se relaciona com o poema “O bom ladrão”. Que é a impossibilidade diante da urgência? Poder-se-ia estranhar que num poeta afeito ao mundo-como-tal contra o Mundo-como-Ideia o desejo expresso pela palavra “urgente” tenha mais importância na ordem das coisas que a realidade expressada pela palavra “impossível”. Acontece que nesse contexto a palavra “impossível” é que foi corrompida por Adorno que procurou justificar seu negativismo (que é o lado crepuscular do romantismo) com os horrores da guerra. Que são, afinal, os horrores da guerra e a alegria terrena diante da eternidade que se representam pela poesia, que é a expressão mais funda do espírito humano? Diante da importância do eterno, da sua realidade extrema, por isso “última”, que é a impossibilidade diante da urgência? É exatamente o que percebemos no trecho de “Extraído a uma carta”, também de As horas de Katharina:
Do sonho mais dileto
à mais fina delícia nada aqui se compara
ao toque dessa mão no coração que pára
e quando recomeça a bater bate no teto,
ao ritmo de harmonias que jamais suspeitara!
Em tempo, com que engenho e arte ele ilustra a passagem da morte (“ao toque dessa mão no coração que pára”) para a eternidade (“e quando recomeça a bater bate no teto”). Outros versos há que expressam exatamente a mesma coisa – melhor dizendo, expressa o mesmo espírito que subjaz o já citado “Minima Moralia” – e com outra gradação: “Não é bem que prefira o amor de Deus. Quem prova/ não tem escolha…”, que abre, por sinal, os versos do mesmo “Extraído a uma carta”, que acabei de citar, em que a “impossibilidade” adorniana aí é posta nos termos de preferência e a urgência tolentiniana articula-se com “não tem escolha”, e voltando ao “Bom ladrão”, vemos a alegria que se eterniza na felicidade, de maneira que pouco importam os pregos que lhe perfuram as mãos e os pés, tudo isso nada é diante do que lhe revelou a promessa.