Entrevista com Karleno Bocarro

Karleno Bocarro nasceu em Fortaleza e mudou-se, aos 23 anos, para a Alemanha, como bolsista do governo Alemão, e formou-se em História, Ciência da Cultura e Filosofia na Universidade Humboldt de Berlim. Com muito empenho, Karleno iniciou um mestrado em Filosofia, com o tema “A Vontade de Criar – Um Estudo da Estética de Friedrich Nietzsche”, de onde tirou a matéria-prima do que seria a base de seu primeiro livro, Escritos de Obsessão. Pouco tempo depois, o jovem escritor retorna ao Brasil e dedica-se a escrever o seu primeiro romance, As Almas que se Quebram no Chão, ambientado na Alemanha Oriental e um dos livros mais sombrios da literatura brasileira. Não demorou muito para que o romance viesse a ser elogiado por inúmeros leitores, que aguardam a publicação de seu terceiro livro, O Advento. Bocarro também é professor e tradutor. Traduziu autores importantes, como Viktor Frankl e Franz Kafka. Atualmente, Karleno traduz os quatro tomos da “História da Cultura Grega”, de Jacob Burckhardt. 

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  1. Como foi a sua infância em Teresina e quando surgiu o seu interesse pela literatura?

Bem, não foi das mais felizes, embora estudasse em um dos melhores colégios da cidade. Morávamos em uma parte do Centro que ficava na fronteira entre dois mundos: o que levava à minha escola, que era melhor organizado e limpo, e um outro que afundava em direção a um universo céliniano, violento, promíscuo, doentio, e aí eu padecia como poucos, principalmente por gostar de ler. Em um meio assim, a leitura é algo estranho, ofensivo, sinistro… E sobretudo de e para mocinhas.

2. Os livros lidos na infância influenciariam a sua produção literária?

Sim, em especial os Contos dos Irmãos Grimm. Nos meus romances sempre há a presença do terrificante, e isso talvez venha desses Contos. Também prezo muito pela ideia de que existe o Bem e o Mal, que o Mal reina quase por absoluto no mundo e em nossas vidas. Porém, ao fim, acaba por pagar por seus erros, sucumbe. Ao menos é o que se espera. Nos meus romances, contudo, talvez isso não seja assim tão simples… Mas não deixa de ser um princípio que move a minha pena durante a escrita: o Bem está lá, está aqui, pálido, mas não inteiramente morto. 

3. Quais são as principais dificuldades de um bolsista estrangeiro em um país tão adverso como a Alemanha Oriental?

Na época, certamente com o idioma. Quando eu cheguei lá não sabia uma palavra em alemão. Isso me trouxe diversas dificuldades no início, mas como tínhamos aulas, para aprender o idioma, de segunda a sábado aos poucos fui melhor compreendendo as coisas e me comunicando satisfatoriamente. Outras dificuldades eram de ordem prática, no dia-a-dia. Em um sistema comunista reina uma burocracia desenfreada, uma escassez de produtos e um medo em escolher e dizer a verdade. Exemplo, não era fácil encontrar uma simples lanchonete para saciar uma momentânea “fome de estudante”. E pouco adiantava reclamar, o Estado reina soberano e sabe sempre o que é melhor para seus “citoyens”. 

4. O seu primeiro livro, Escritos de Obsessão, foi publicado em 2002. Nele é possível notar uma forte influência nietzscheana. O que deu origem ao livro e como você o classifica?

Sim, é verdade. Nietzsche era para mim na época o maior dos pensadores. E eu ainda me encontrava, quando o escrevi, fortemente impactado com suas ideias acerca da arte, pois não fazia muito tempo que tinha concluído o mestrado sobre a forma como ele vê, concebe e compreende a arte. 

Durante os meus anos de estudante, quando tinha que ler muito, faltava-me tempo para escrever. Mas enquanto estudava ou andava pelas ruas de Berlim sempre tinha momentos de inspiração, que me levaram a escrever pequenos textos… O livro é basicamente uma compilação desses textos cuja autoria não é minha, mas de uma personagem. Como eu o classifico? É uma obra pretensiosa, mas com algumas boas tiradas… Algo diferente na literatura… Pretendo um dia republicá-lo. 

5. Nietzsche ainda é uma influência? 

Talvez sim, mas inconsciente. Ou em outras palavras, como algo presente na percepção que possuo da existência: a arte, como era para ele, é o grande estimulante que mantém viva a vontade de viver. Contudo, faz tempo que não leio nada dele…

6. O seu romance, As Almas Que se Quebram no Chão, foi publicado em 2010. A segunda edição, revista e ampliada, saiu em 2014. Escrevê-lo foi um desafio?

Em parte sim, pois escrever é sempre um desafio: é difícil saber onde vai dar o impulso primeiro que inspira a escrita em seu momento inicial. Mas foi o romance que menos trabalho me deu para escrever: levei poucos meses, ainda que bem intensos. Escrevia o dia todo, dormindo pouco e me sustentando à base de café e tabaco.

7. Você tem quantos livros inéditos? Pretende publicá-los?

Três, e no momento escrevo um… Sim, pretendo publicá-los, mas não encontro editoras interessadas. Ou nem tanto, deixei de procurá-las. Estou passando por um período de cansaço e desilusão. Talvez em alguns meses eu recupere o ânimo e torne a bater na porta de algumas delas…

8. O que é narrado em O Advento?

Prefiro que o leitor descubra quando for publicado.

9. Você participou do júri de diversos prêmios literários, entre os quais o Prêmio São Paulo de Literatura e o Prêmio Literário Biblioteca Nacional, tendo analisado centenas de romances. Quais são as suas impressões sobre o atual momento da literatura brasileira?

Há boas e poucas exceções… Mas a maioria é de uma chatice sem igual. O escritor brasileiro parece ter apenas duas preocupações: fazer denúncias contra aqueles que ele julga monstruosos e corrigir o mundo… É de um didatismo dantesco! Acho isso bem coisa de adolescente. Há muito que deixei tal pretensão para trás cultivando uma lição: a maioria das pessoas é medíocre, estúpida, “monstruosa”, e o mundo não merece e nem pode ser corrigido. A mim interessa outras questões: a existência do Mal, a angústia existencial diante de um mundo aparentemente sem sentido, a persistência em fazer o Bem quando tudo ao redor parece agradar-se das piores baixezas, a dor e a alegria que o amor provoca, as escolhas erradas que fazemos e que já não podem mais ser corrigidas, merecendo de nós apenas uma postura estóica etc. 

10. Como foi traduzir O Processo, de Franz Kafka? 

Mais difícil do que eu esperava. O estilo de Kafka é apenas aparentemente fácil, límpido. Mas afora isso, gostei muito de tê-lo traduzido. Kafka, ao contrário do que se pensa, é um escritor com um senso de humor profundo e inigualável.

11. Você leu recentemente os Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov, em seis volumes. Foi uma boa leitura?

Meu Deus, isso é literatura de primeira. Como esses russos escrevem… Mas igualmente triste, sufocante… A Rússia parece tirar forças para sobreviver como nação do sangue derramado de inocentes. Lá o Estado está sempre pronto para violar a vida do indivíduo… Foi um milagre que Chalámov tenha escapado com vida do inferno de Kolimá. Desde que o li, e quando passo por momentos difíceis, costumo dizer para mim mesmo: “Aguenta firme, Chalámov passou vinte anos em campos de concentração stalinista sob um frio de menos 50 graus. Teu sofrimento é um detalhe perto do dele, e um dia as coisas sempre mudam, oxalá para melhor.

12. O que você está lendo?

A Esperança, de André Malraux, e o último volume, O Fim, da hexalogia do escritor norueguês Karl Ove Knausgard, Minha Luta. 

13.  Qual conselho você daria a um escritor iniciante?

Leia bastante, e não apenas os ditos clássicos; há uma infinidade de escritores pouco conhecidos que merecem e muito serem lidos, mas igualmente obras de não-ficção, e procure escrever todos os dias. Além disso, viaje, conheça pessoas, visite cemitérios e mercados públicos. Aprenda um ou mais idiomas, e, se possível, more um tempo no exterior. E por fim saiba: publicar um livro no Brasil é uma das coisas mais difíceis que há no universo. Portanto, é preciso persistência, e a paciência de uma montanha.

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Entrevista concedida por e-mail a Matheus Bensabat