– por Matheus Bensabat
I
Quem passasse pela Avenida Mário Viana em direção ao Hospital Santa Rosa poderia observar, destacando-se mais do que em outros dias, o crucifixo de mármore sobre o qual repousava a claridade da manhã; e logo abaixo, no pátio do estacionamento, as enfermeiras que chegavam para mais um dia de trabalho, agrupando-se em frente ao canteiro de entrada, fumando e bebendo café.
Roberto não olhava para cima. Se levantasse um pouco os olhos veria o sol despontar para os lados de Piratininga — a tessitura violácea se desenvolvia lentamente por detrás do cerro.
Encurvado, forçando a coluna numa postura defensiva, soltava grunhidos espaçados como filhote de onça brava, para depois esticar-se no banco a fim de dar a entender ao motorista que a dor era insuportável, e assim ele estaria convencido de uma vez por todas de que o passageiro estava mesmo doente, gravemente doente, e que em breve morreria tão logo chegasse à emergência.
Apoiou-se no corrimão, apalpando com a mão esquerda o quadrante direito do abdômen, para em seguida começar a subir a escadaria. Estacou a uma certa altura, movido por um sentimento estranho, para olhar o morro e os seus barracos.
Um moleque carregava um botijão de gás nas costas, envergando-se para sair de uma viela e entrar noutra — o aço, a cada pique, abrilhantava a pele bronzeada. Era um desses filhos de comerciantes que viviam por ali. Ajudava o pai, que lhe pagava pouco, e com o que recebia ia até a Cantareira para transar com as universitárias no terreno baldio da prefeitura. Carregaria, pensou, dez, vinte botijões por semana, e em pouco tempo as suas vértebras se desconjuntariam, transformando-se em farelos; e o moleque, que pela idade poderia ser seu filho ou sobrinho, logo estaria, assim como ele, subindo os degraus com a mão na lombar, apreensivo e resignado.
À medida que avançava, versos do poema de Dante vinham-lhe à mente. Os cantos que na infância ouvira, ditados pelo pai, agora pareciam-lhe tomar forma; os personagens se desdobravam pelo Hospital Santa Rosa arrastando pelo ar filetes luminosos, como se saíssem de um lago de fogo líquido…
A edição, lembrava-se bem, era confeccionada em capa de couro verde com uma marca de ex-líbris na folha de rosto. Muito antiga, herança do avô, o pai a conservava desde que tinha dez anos, até que o passara. Desde então relia o épico sempre em dezembro, poucos dias antes do Natal.
Suspirou, tentando aliviar a ansiedade, e continuou mesmo com os tornozelos doloridos.
De súbito, como se quisesse se livrar do desânimo, segurou com força o balaústre e começou a saltar os degraus de dois em dois como ele e o irmão faziam no sítio do avô, na velha escada em espiral, ou quando corriam pelo gramado, enrijecidos pelo frio da serra fluminense, contando as pétalas das begônias espalhadas em meio às folhas secas e aos excrementos dos cavalos.
As pétalas se destacavam tanto em meio à opacidade que transmitia o amálgama entre o marrom-claro das folhas e a terra batida, que ele imaginava quão belo seria se, por suas próprias mãos, pudesse um dia cultivá-las.
Todo mês de outubro o avô tinha o hábito de atirar, da soleira do alpendre, nas rendeiras que circundavam o ipê. No que ele e o irmão, assustados, corriam em direção ao poço artesiano, pulando a bastida, embora Roberto sempre se atrapalhasse, arrastando a perna no cercado, cortando-se; ou, com a pancada, sem querer alterava a posição do ripado, irritando o avô que lhe estendia um galho de brinco-de-índio, repreendendo-o.
Desde aquela época, e por um bom tempo, imaginava-se floricultor, regando as plantas numa estufa em Campos dos Goytacazes, atendendo àquelas moças de vestido preto com bordado de margaridas que ele tanto admirava pela delicadeza. Elas o acariciavam quando o viam no colo da mãe, muito branco, rindo e coçando os bracinhos. Ele sempre gostara de ser adulado pelas mulheres. Que o tocassem, que o tratassem como criança, mesmo na adolescência, através dos diminutivos, não se importava. Sentia algo dentro de si palpitar, completamente diverso dos impulsos sexuais, como se elas redimissem os anos que vivera na solidão.
Uma delas, a Lucinha, certa noite dormira com eles na sala enorme. Ao lado do irmão, a mulher gemia como se agonizasse. Chorava pela mãe esfaqueada. Mais cedo naquele dia, ao saber do ocorrido, seu avô fora até a casa de sapê em que moravam; a poça de sangue envolvia como um manto os fios de cabelo prateados; e assustou-se ao ver Lucinha morder uma boneca de palha e esfregar os olhos como se fosse criança. Avisou aos vizinhos e levou-a para o sítio. O aspecto infantil contrastava com o porte de mulher feita, e eles não sabiam como tratá-la, se como adulta ou como menina.
Dias depois, numa tarde de junho, Roberto aproveitou a casa vazia para perscrutar a fisionomia do avô enquanto ele observava, pitando o cigarro de palha, as lavandas estendidas ao longo do anteparo da varanda. O rosto marcado pelas rugas dava ao homem de oitenta anos uma aparência mística, como se ele não fizesse mais parte deste mundo. Sentia por ele um misto de admiração e receio, de modo que nunca pôde falar-lhe com naturalidade, procurando sempre esquivar-se.
Parou perto do canteiro, com receio de encontrar, ainda no salão de entrada, a cena típica dos hospitais da cidade: pessoas abandonadas no corredor, muitas com ferimentos graves enquanto os familiares pediam ajuda e imploravam por uma cirurgia de emergência a qualquer um que passasse de jaleco. Olhou em volta: as paredes carcomidas e sem revestimento; a pintura desbotada tornava a recepção ainda mais soturna.
A recepcionista encarou-o; ele apresentou a identidade, informando o endereço. Minutos depois passou para o enfermeiro que estava sentado ao lado do balcão com o estetoscópio no pescoço.
Aferiu a pressão e voltou a esperar. Não demorou muito para que colhessem o seu sangue.
II
Olhava para as pessoas largadas no corredor como se elas fossem figuras de anúncio publicitário.
Esticou-se no assento para aliviar a dor abdominal e em determinado momento aborreceu-se com a demora excessiva. Aguardava o resultado havia duas horas.
Imaginou gotas de sangue espalhadas pela lâmina de microscopia, a moça de jaleco contando plaquetas, ajustando o macrométrico, muito compenetrada, quem sabe, a visualizar alterações no fígado, no pâncreas. Ou, com o avanço tecnológico, tão somente agruparia as ampolas numa máquina e esperaria o resultado.
Desbloqueou o celular e começou a assistir a um vídeo de um homem pálido — e talvez cardíaco —, um vampiro da técnica, que manipulava muito bem as máquinas, empunhando o colorímetro e o contador de partículas como se estivesse numa apresentação contorcionista, com o pipetador passando de uma ampola à outra, explicando, com uma voz débil, a quantidade a ser depositada em cada lâmina, e a maneira correta de esfregá-la; depois, explicou também formas de limpar a aparelhagem, o que não o interessou, entediando-o.
Mantinha o olhar fixo, à medida que o tempo escorria, nos azulejos em losango, quando voltou a lembrar dos episódios da infância, empenhando-se para manter vivas as memórias, que se tornavam cada vez mais tênues.
Dos cinco aos seis anos conservava apenas as lembranças das aulas de alfabetização. A professora, bem mais velha do que as demais, em sua maioria jovens da baixada fluminense, exigia muito dos alunos para que eles decorassem o abecedário, colando, em letras de fôrma com cores diferentes, as consoantes acima do quadro negro, e, apontando com o giz de cera, fazia com que todos repetissem, em coro, o que ela ditava. Os alunos se sentiam na obrigação de responder imitando o timbre da professora, mesmo que ela não os obrigasse.
Em uma das carteiras próximas às pilastras — elas não eram como as de qualquer outro colégio; tinham a forma de um lápis gigante, cuja ponta tocava a parede do segundo andar e, em fileiras, estendiam-se ao longo da sala —, rente à professora, sentava-se a menina que fora a sua primeira paixão.
Antes do início das aulas, dera-lhe de presente um gatinho de plástico que ensaiava cambalhotas ao mesmo tempo que uma luz acendia e apagava a ponta do rabo. Era uma dessas lembrancinhas que se adquire em casas de antiguidades, e de que quase todas as crianças gostam, a não ser as mais exigentes.
Ela andava com um vestidinho igual ao que vira no corpo daquelas moças de Campos dos Goytacazes, sempre tímida, evitando-o com olhares furtivos para o quadro, quando ele, insinuando-se, mirava-a. Mas, de algum modo, o desdém forçado aumentara a paixão dentro dele. Eram vizinhos e saíam de casa sempre no mesmo horário. Atravessavam a rua trocando piscadelas, sem se preocuparem com a presença das mães, na intenção de se manterem próximos — e, quando por acaso se tocavam, encostando braço com braço, a simples troca de olhares dava àquelas alminhas a intuição do que os esperaria no amor conjugal.
Quando ela se feriu com a pancada sofrida ao cair no pátio, o tom malva que se formara em sua pele o preocupou, e ele se sentiu muito envergonhado por não a ter ajudado. A imobilidade frente às situações importantes o acompanharia até a morte. Ele, no entanto, não sabia dizer o que o afligia, mas algo o empurrava, à socapa, para um abismo similar ao que lera em algum canto do poema de Dante. Tinha em mente a idéia de que o inferno era uma realidade poética: pensava sempre num lugar em que o fogo, em vez de infligir às almas dores e lamentos, entorpecia-as, recusando-se a acreditar nos dogmas da religião à qual se dizia devoto; do poema, lera muito mal as outras duas partes — nenhuma delas o impressionara tanto.
Certo dia a coordenadora ordenara a mudança: a sala seria dividida entre meninos e meninas porque aqueles abusavam destas, optando sempre pelas mais tímidas, apalpando-as no joelho, na coxa e, em alguns casos, na vulva, sem nenhum pudor ou medo, com certo prazer violento… Foram, no entanto, denunciados, alguns expulsos, e no dia seguinte a nova configuração estava formada: meninos de um lado e meninas do outro. Seriam observados pelo vigilante, um senhorzinho seco que se manteve de pé por detrás deles em todas as aulas durante um mês.
Roberto não gostara. Agora estavam ainda mais distantes e não conseguiam se olhar. Precisavam desviar de cabeças e ombros para encontrarem uma fresta, no que ela o evitava, voltando a reparar nos colegas maiores que voltavam do intervalo, cada qual segurando a sua toalhinha de lancheira de tamanhos variados, com estampas de heróis, que naquele tempo era moda, e quem não os tivesse era visto como pobre.
Para os que, assim como ele, ocupavam o canto esquerdo da sala, não era difícil observar o campo sintético e o pé de jenipapo com os seus galhos franqueando as telhas de amianto da secretaria, iguais às que via agora através da báscula do corredor, preenchendo, ao longe, a visão que tinha do morro.
Não sabia por que as poucas lembranças que ainda se mantinham nítidas também estavam ligadas às partidas de futebol no campinho de terra batida, o mesmo em que o avô, antes de enriquecer, trabalhara carpindo. Os rasgos no dedão, o coágulo empedernido como casca de tartaruga, a sola do pé coberta de pequenas feridas e fendas.
Frequentemente chegavam até sua avó murmúrios de traições que um marceneiro da região trazia com a intenção de separá-los. Há anos desejava a mulher do rival, e Roberto ouvia tudo, esparramado no chão, desparafusando as rodas do carrinho de rolimã, indiferente ao falatório que se seguia às esconjurações da avó, que não queria saber de vagabundos batendo à sua porta, que ele desistisse ou iria contar tudo para o marido.
Souberam, anos depois, que o sujeito fora internado numa casa de alienados na região de Maricá; quem o viu naquele tempo relatou que o homem estava cego e não falava… Os relatos, pensou, talvez fossem verídicos.
Vez ou outra mulheres casadas desciam a encosta da Vila Ipiranga com roupas de homem pendendo dos ombros, e Agenor, seu avô, também era visto, ao mesmo tempo, correndo em direção à casa, que naquela época não era o que é hoje — o sítio dos Bezerra —, mas uma divisória de três cômodos muito bem arrumada e com luz elétrica, outrora luxo. Só faltava mesmo água encanada, porque a velha, dizia ele, não queria carregar baldes no ombro.
Os pensamentos fluíam tais quais peixes de aquário, submergindo lentamente, arrastando as barbatanas pelo quartzo rosa e branco que a mãe comprara no observatório marítimo, para depois voltarem à superfície, como na convulsão que tivera aos quatro anos de idade, no jardim de infância, com a temperatura do corpo elevando-se até chegar aos quarenta graus, quando perdeu a consciência.
Mastigava, sem ser notado pela professora, um pedaço de sabonete em forma de palhaço que fora distribuído para a turma como lembrança pelo encerramento do ano letivo, com todas as características elaboradas com perfeição: via os adornos do tecido grosso e listrado que cobria o pescoço com o revestimento acolchoado a atravessar a nuca; os sapatos vermelhos com um girassol na ponta; a gravata borboleta, que mais parecia uma boia de braço inflada, e a maquilhagem de pó de arroz com batom vermelho. Os pontinhos brancos distribuídos pelo rosto lembravam as estrelas, e a sua feição era lírica e inocente.
Quando recobrou a consciência, o que vira pela primeira vez fora um emaranhado de fios que se juntavam às partes metálicas dos equipamentos clínicos, e a figura do tio ao lado da mãe era incerta — seriam, talvez, o médico e a enfermeira.
Ao sair do hospital envolveram-no numa toalha amarela tal como no dia em que nascera, a placenta e o sangue em contato com a luva do médico e com a pele da mãe, o retinir de um choro ralo e irritante. Abriram o portão e ele, enrolado, de dentro do carro, retomou os delírios que começaram ainda no hospital, sequela da convulsão. Não mais “vovó Joana” e sim a profusão de nomes de animais silvestres que decorou nas primeiras aulas do jardim de infância e desde então passara a sonhar que estava sendo ferido por um crocodilo branco cuja mandíbula se fortalecia a cada ataque, ao que ele acordava com a camisa encharcada de suor, a mesma camisa com que chutava pela manhã, acompanhado pelo avô, uma bola no portão de madeira revestido de hera. A pele gelada e gosmenta de uma cascavel do Jardim Botânico era similar ao suor de agora, que descia da sua testa em camadas…
III
Sentado, ainda a esperar pelo exame, parou de olhar para a báscula e reparou no senhor que arrastava as unhas pela maca, toda ela enferrujada. Estava ali havia duas semanas, e cheirava mal. As enfermeiras davam-lhe banho com a mesma toalha que havia passado por outros dois, de modo que não podia tirar o suor sem ser tocado pela sujeira. Elas mergulhavam o pano encardido no balde e torciam-no para depois passar pela barriga do homem, e viravam-no, esfregando as costas, para em seguida cobri-lo com um lençol novo e limpar outro enfermo, com o mesmo pano, com aquela mesma água.
Quis desviar os olhos quando viu a água preta escorrer pela ferrugem. Ele gemia ao mesmo tempo que chorava ao ver que estava sendo cuidado. Roberto olhou para o morro e começou a recitar versos para si mesmo, e assim conseguiu desviar a atenção dos murmúrios. Quando as enfermeiras foram embora do corredor, o senhor se esforçou para se sentar e, puxando a ponta do lençol, enxugou as lágrimas. Tremendo, passava a mão pela barba, triste por não conseguir fazê-la, mas não teve forças e desequilibrou-se em seguida.
Roberto levantou-se para buscar água e, enquanto caminhava pelo corredor, começou a invejar as enfermeiras, os maqueiros, os médicos. Caminhavam sem aquela dor aguda na barriga — sequer arquejavam — e gesticulavam despreocupados. A sombra da morte não os encostava; iam e vinham, faziam uso das articulações com propriedade; os órgãos, é certo, sem máculas; os músculos trabalhavam sem a fraqueza causada pelas enfermidades. Todas aquelas pessoas cumpriam a tarefa para a qual foram designadas, o que seria, talvez, a vocação de cada uma delas.
Invejou, sobretudo, a disposição no cumprimento dos deveres, dos quais ele sempre se esquivara, e que, agora, pareciam ser a coisa mais importante do mundo.
Queria se livrar da dor e viver com intensidade, voltar às atividades às quais estava acostumado, tirar de si o obstáculo que o atrapalhava, retornar às festas da cidade, entreter-se novamente com mulheres casadas, gastar o dinheiro aplicado — uma vez que não deixaria nada para o governo. Aprenderia a surfar e se dedicaria mais aos assuntos da fé…
Pensava em tudo isso, mas em determinado momento assustou-se terrivelmente ao perceber que enxergava a sua vida em retalhos, e que nela não havia um acontecimento decisivo, algo ao qual pudesse se agarrar com todo o seu ser — via-se apalpando as trevas do passado como um bêbado…
Colocou a mão na calça e sentiu o terço que, antes de entrar no carro, colocara no bolso, esquecendo-o. Ao se lembrar de que o comprara na Basílica Velha de Aparecida, suspirou, pensando nas velas votivas que as senhoras empunhavam, outrora vistas por ele como mero enfeite, mas que adquiriam agora a sublimidade das begônias do avô.
Voltou para o assento. Quis afrouxar o cinto para aliviar a pressão no abdômen, mas não o fez por sentir vergonha da senhora que velava, havia três meses, de casa para o hospital e do hospital para casa, carregando lençóis e roupas, o marido internado na Sala Vermelha: “Foi acidente de moto. Só andava sem capacete, e eu avisei, avisava sempre: não acelera, vai devagar…”.
Limpou o suor da testa pela décima vez. Incomodava-o o peso no quadrante direito como se alguma parte do seu corpo se transmutasse em chumbo que, derretido pelo calor, dissolvia-se internamente, estendendo-se até a coxa. A quentura cozia-o como se estivesse recostado em um caldeirão medieval.
Uma moça de preto acabara de sair do consultório, arrastando as sandálias e balançando as ancas. Ele seria o próximo. Passou por um moleque que dormia com a cabeça no colo da mãe, que por sua vez folheava as páginas dos exames com alívio. Teria ele somente uma gripe, nada grave; e a moça, uma infecção qualquer, que desapareceria facilmente com o uso de antibióticos. Mas aquela dor, o edema, as sensações estranhas se arrastavam havia dias e apontavam para algo maior.
Olhando para a cabeça do menino, voltou a lembrar dos momentos de convalescença que se seguiam aos acessos de febre que tivera quando pequeno.
Deitara-se no sofá, enrolado por um edredom, com a televisão ligada num programa de desenhos animados, talvez o primeiro a passar em rede nacional. Arrepios, tosse, fadiga — os sintomas desapareceriam em poucos dias, já estava acostumado. Comprimia-se trincando os dentes, esfregando os pés, e voltava a esticar-se, bocejando. Gostava de ouvir o estalar das juntas quando puxava para si a ponta do cobertor, encostando-a nos lábios. Quando a tosse o angustiava, a mãe trazia-lhe, numa caneca de porcelana estampada por pássaros diversos, vitamina de banana com aveia, e, à noite, a gemada, que sobre o peito deixava esfriar. A canela em pó flutuava sobre a espuma e ele se distraía contando as pequenas ilhas que se formavam na superfície.
A médica saiu do consultório com uma pasta debaixo do braço. A esposa do motociclista foi até ela, muito nervosa e cansada, percebia-se — teria com certeza emagrecido; se continuasse assim, morreria.
— Doutora — disse, ofegante. — A senhora tem notícias dele? Estou há dois dias sem notícias…
— O quadro é o mesmo. Traumatismo craniano. Está em coma.
IV
O médico chamou-o. Era um sujeito gordo, tão gordo que teve a impressão de que o jaleco poderia rasgar a qualquer momento.
— É coisa ruim, hein, doutor! — brincou ao sentar-se, disfarçando o nervosismo.
Não respondeu. Sem tirar os olhos da tela do computador, perguntou:
— Sente coceira nos pés?
— Não, não.
— A boca está seca?
— Também não.
— Bom, os exames acusam uma alteração nas enzimas do fígado, mas é preciso investigar — disse, sem tirar os olhos da tela.
Arriou a máscara e esticou-se no assento, movendo os ombros e o pescoço.
— Está bebendo muito, não é? — E riu, de lado, à procura do estetoscópio. — Se piorar, só no Antônio Pedro. Ademais, não temos recursos.
— Mas, doutor…
Sentindo-o estranho, o médico pediu para que se deitasse na maca. Apalpou a barriga com os dedos cruzados, fez com que se sentasse e bateu com o celular em seu joelho, ao que ele respondeu com um espasmo. Examinou os olhos com uma lanterna miúda e azul, mediu a pulsação sem usar o oxímetro e, de frente para ele, com as mãos enfiadas no jaleco, disse:
— Vá para o Antônio Pedro. O seu quadro é indefinido e não temos recursos aqui.
Deu-lhe, antes de dispensá-lo, uma caixa de ansiolítico, o mais forte que tinha.
Roberto levantou-se do assento, cumprimentou-o e, mirando os azulejos em losango, transpassou a ala dos consultórios, passando pelo homem do banho, que finalmente conseguira sentar-se na maca, mas não o olhou. Pôs os pés do lado de fora do hospital sem saber qual direção tomaria. Sentou-se na marquise do canteiro.
Confuso e estranho chegava-lhe o mundo. Olhava agora para os barracos, como se a sua ansiedade participasse das coisas, limitando-as. Trêmulo, abriu o aplicativo e selecionou o endereço de casa enquanto arrastava a língua pelo céu da boca.
Ignorou a indicação médica de que precisaria fazer novos exames e decidiu-se. Dobrou os papéis e colocou-os no bolso da calça junto com a caixa de ansiolítico.
O moleque de há pouco descia, degrau por degrau, com o último botijão do expediente, esgueirando-se, quase a tropeçar, não fosse a iluminação do poste.
Desbloqueou novamente o celular, abriu o aplicativo e esperou, com a boca entreaberta, olhando para as nuvens que se destacavam cada vez mais volumosas como se fossem desabar sobre o cerro — cairiam na cabeça do moleque e ele estaria curado, milagrosamente, sem saber de quê. Viu-o coberto pela composição da nuvem. Um pó branco, pensou, recusando-se a acreditar que a nuvem é composta de água e gelo.
Mirou-o ainda por um tempo. Quando ele já estava na parte baixa, o carro com a placa indicada no aplicativo parara à sua frente.
Levantou-se. Limpou a calça jeans, espalmando-a; amassou ainda mais as páginas do exame, trincando o maxilar.
Entrou no carro.
V
Orla de Piratininga. São Francisco. Icaraí.
Desceu na Praia das Flechas e enquanto caminhava pelo calçadão viu uma menina que conversava com um rapaz de boné azul tirar um maço de cigarros do bolso. Fez menção de pedir um, mas desistiu. A moça, de cabelos cacheados, sobraçava um livro antigo, adquirido no sebo. Parecia aquela mesma edição do poema de Dante…
Agora, ainda mais do que no hospital, começou a invejar as pessoas com uma intensidade feroz. Queria, como um possesso, livrar-se das preocupações clínicas e voltar para a vida que tanto amava, e isso seria feito através de um pacto demoníaco, pensou. Com a ajuda de determinadas forças, tomaria para si o aspecto saudável e tranquilo dos corpos sãos…
À medida que avançava pelo calçadão via-se pisando em pedaços de um fígado apodrecido. Cuidou para não escorregar. O órgão se desmanchava pelo passadiço e misturava-se à areia da praia; os albatrozes bicavam a mistura pastosa e inflavam…
Atravessou a pista e entrou na Praça Getúlio Vargas, olhando, por entre os galhos das árvores, para a lua que avançava pelas nuvens. O Museu de Arte Contemporânea diminuíra, o crepúsculo encobria-o com um manto rubro.
Apalpou o bolso esquerdo à procura do ansiolítico, passando o dedo indicador pela tarja em braile. Ao se encaminhar para a saída lateral, notou que um mendigo dormia aos pés da escultura de Nossa Senhora do Carmo. Vivia ali desde que o Morro do Bumba desabara; perambulava por Icaraí e pelo centro de Niterói. Quando Roberto se aproximou, ele tentava dormir, mas não sem antes rezar o Ângelus, como a catequista ensinara. Pela prática aprendera a contar sempre com a bondade de Deus. Já não pensava mais no que fizera, entretendo-se com o livro do Gênesis, doação da paróquia.
Lia-o na praça, fumando, escondido dos transeuntes. No entanto, às pessoas que passavam vez ou outra, sobretudo jovens escolhidas a dedo por ele, dizia:
— Sou um morcego que voluteia entre os pássaros!
Enfatizava o verbo, emocionado, como se a pronúncia da palavra o tornasse célebre.
Instintivamente, Roberto jogou sobre ele uma nota de cem reais e moedas de dez centavos, assim como seu terço. O ruído acordou o mendigo, que olhou para cima — o olho esquerdo possuía a alvura de certos mármores brancos usados em esculturas antigas, o branco thassos, o mesmo, talvez, com que os helênicos erigiam colunas em estilo dórico — e agradeceu-lhe, levantando o polegar. “É cego de um olho”, pensou.
As grades do pátio, em forma de placas, estavam cobertas de musgos que absorviam o suor nos dias quentes. Os mendigos passavam as noites de verão sobre o frescor da superfície pegajosa, esfregando as costas nuas, as feridas que, abertas de tanto coçar, apenas começavam a cicatrizar e estouravam de novo. No entanto, sentiam-se aliviados como se lhes dessem com o que matar a fome.
Atravessou a praça e entrou no Ponto Jovem, passando os olhos pelas mesas vazias. Uma funcionária limpava a chapa de hambúrguer. Achou-a de uma beleza transparente como a de certos animais exóticos naturais de países como Tunísia, Azerbaijão, Hungria, Moldávia… Escolheu a mesa dos fundos, colada à parede. Pediu uma garrafa de água com gás e um cookie de chocolate com cobertura de morango.
Os pequenos blocos adquiriram um sabor incomparável — “o doce, o doce…”, repetia para si mesmo, esfregando a língua pelos lábios.
Limpou os dedos no guardanapo e abriu a caixa de ansiolítico. Destacou os comprimidos e, com a mão em concha, levou-os à boca, confiante de que aquela quantidade não o mataria.
Enquanto isso o mendigo repassava as contas do terço, mas em determinado momento apenas gaguejava. Uma bala perdida transpassara seu fígado, fazendo jorrar, em esguicho, um sangue preto, ignóbil. No que ele, perdendo as forças, roía os lábios murchos.
Aos poucos, Roberto começou a sentir o efeito da benzodiazepina. Não demorou muito e o seu ombro encostou no ladrilho, e ele cedeu, repousando também a cabeça enquanto comia o pedaço que restara no prato, ouvindo lá fora os ecos da gritaria que se seguiu aos tiros.