Ricky Gervais inaugura o ano de 2019 com a excelente série After Life, em seis episódios. A premissa é simples: Lisa, esposa de Tony — personagem de Gervais — falece por ocasião de um câncer de mama. Perdido numa vida sem sentido, Tony se vê constantemente às voltas com a ideia de suicídio.
O desejo de encerrar a própria vida após o falecimento de Lisa é o fio condutor dessa história. E desde o primeiro episódio nos perguntamos o que impede Tony de levar a cabo tal propósito. Num dos primeiros diálogos com seu apático terapeuta, Tony confessa que a única coisa que obsta o suicídio é o olhar faminto de sua cachorra. Enquanto ela existir, ele existe. Seguindo vivo, portanto, o viúvo resolve adotar uma nova postura em relação à vida: deixa a gentileza de lado e torna-se o cansado, amargo e ressentido jornalista que trabalha para o folhetim do bairro.
Gervais, que já se consagrou como um dos melhores comediantes britânicos da atualidade – quem não se lembra de The office, que estreou em 2001 na televisão britânica, e do filme David Brent: Life on the road, de 2016, que está nos catálogos da Netflix juntamente com Humanity, de 2018? – plasma com sensibilidade, em After life, a busca perene do homem pelo sentido da vida quando aquilo que mais ama lhe é tirado.
O olhar cético de Tony e seu mal humor, todavia, não são suficientes para afastá-lo de seus amigos e colegas de trabalho. E cada um, à sua maneira, quer vê-lo novamente feliz. Aliás, a relação de Tony com seus colegas leva os aspectos mais triviais da cotidianidade das relações humanas a uma delicada revelação: tudo o que o homem possui são os relacionamentos que cultiva com os outros ao longo da vida… e suas memórias.
Essa ideia é trazida com mais sutileza por Anne, personagem interpretada por Penélope Wilton, com a qual Tony se depara toda vez que visita o túmulo de sua esposa. Anne e Tony desenvolvem uma relação de empatia mútua, e entre os dois que se estabelece o melhor diálogo da série.
A questão do suicídio em After life, presente em todos os episódios da série, não representa nem a infâmia que alguns condenam, nem a apoteose que outros reivindicam. Retomando uma reflexão de Emil Cioran, filósofo romeno do século XX, pensar em morrer é justamente o que permite a Tony continuar vivendo, um verdadeiro exercício da disciplina do horror. Tony vive em conflito e prova, a cada episódio, que o trágico e o cômico podem e devem coexistir para que o absurdo da existência e a dor das perdas não se tornem demasiado insuportáveis para o homem.
Mas o primoroso trabalho de Ricky Gervais em After Life vai um pouco mais além. O ateísmo de Tony não é gratuito. Refletindo em boa parte convicções do próprio Gervais — sem a militância típica do comediante —, é por meio da mudança da postura de Tony ao longo dos seis episódios da primeira temporada que outra premissa da série se torna evidente: a capacidade de ser bom e adotar uma conduta minimamente ética não são exclusividades de quem crê na existência de Deus, podendo depender apenas da percepção de que a vida é preciosa justamente porque é breve e rara — e o mundo já está cheio de gente babaca, como lembra Anne.
Todo ser humano, crente ou ateu, está sujeito ao conceito agostiniano da graça. E a graça pode incutir o fio de esperança necessário à sobrevivência naquilo que há de mais banal na vida: um cachorro, um sobrinho e alguns colegas de trabalho. Embora Gervais não tenha ido por esse caminho de forma explícita, o britânico teve sensibilidade suficiente para expor a fragilidade do homem e plantar, no coração endurecido de seu personagem Tony, a possibilidade de ser feliz conferindo significado a outras relações afetuosas. Ao que parece é impossível, até ao ateu, viver sem esperança.