As mulheres de Eça de Queirós

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por Igor Barbosa

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Assim dizia um sucesso do Grupo Revelação: “Ô Queirós, traz essa mulher pra nós”!

Se o leitor mais afeito ao surrealismo sugerir que era ao Eça de Queirós que Xande de Pilares e seus parceiros invocavam, não estará só, pois é essa a tese que defendo nos parágrafos seguintes.

Queirós, com sua pena rica de recursos expressivos, trouxe para nós algumas mulheres tão memoráveis que praticamente somos levados a pensar em todas no mundo como tendo de ser uma Maria Monforte ou uma Luísa – adúlteras, debochadas, penitentes –; ou de uma titia Patrocínio, aquela beata chatíssima cujo coração de pedra  foi camuflado pelos sinais exteriores do cristianismo oficializado(por isso prostituído). Ou mesmo a outra Luísa, a rapariga loura singular que deixa um impulso cleptomaníaco corromper uma felicidade nascente.

A julgar por sua obra, o Queirós trazia as mulheres, mas não as guardava para si, porque não gostava da fruta. Um misógino? Um homossexual enrustido? Se o intuito for entender, o aspecto biográfico é desalentador.

Aos vinte e trinta anos, feroz inimigo das instituições burguesas, entre as quais ele listava o casamento, Eça não hesita em atribuir às mulheres valor equivalente ao de animais de carga ou instrumentos de trabalho. Transita num mundo masculino e só aos homens devota seus melhores sentimentos e pensamentos. Parece não acreditar nem mesmo que seja possível a um homem entreter-se na companhia de uma mulher e viver feliz dedicando-lhe alguma exclusividade de qualquer ordem, e isto principalmente a um homem de letras e de cultura, como ele e os demais a quem vota amizade e com divide a missão de exercer, nas letras portuguesas, um papel semelhante à de uma bola de demolição.

Aos quarenta, exasperado com a renovação cultural de seu país, com que tanto sonhou na juventude, e, paradoxalmente, colhendo os frutos do sucesso e da popularidade (direi mesmo do prestígio que raramente é obtido por literatos), Eça completa sua felicidade casando-se com sua amiga Emilia, Condessa de Rezende; moça mais jovem, nobre e rica, tudo segundo os ritos da Santa Igreja Católica Romana e com aprovação geral do povo português. Eça curvava-se ao modo de viver da choldra ignóbil e sentia que isso era mais para a vantagem dele do que dela. Foi feliz: Dava-se bem com a mulher, era carinhoso com os filhos e admirado pelos criados. Era cônsul em Paris, via os amigos com frequência – e, caso não os encontrasse, escrevia e recebia cartas, o que já é algo em matéria de contato de almas. Começa a ficar pra trás a literatura combativa que lhe valeu a acusação fácil e permanente de antipatriota; acusação esta quase sempre brandida contra o nosso homem por rivais menos capazes, de cujos nomes a história mal se recorda.

O leitor que ainda não teve em suas mãos um livro do Eça talvez não saiba do que eu estou falando. Em se tratando de técnica literária, poucos conseguiram ser como ele. No romanceiro de Eça, é quase imperceptível o desnível qualitativo de descrições, diálogos, fluxo narrativo e riqueza de enredo entre os seus melhores romances e aqueles não tão bons.  Cada romance de Eça é, por si, sério candidato a clássico permanente da literatura de expressão portuguesa; e não devem faltar, de todo, à educação de quem almeja conhecer bem nossa língua.

Vencido este parágrafo aparentemente inútil em que louvo o louvado, fico livre para, num giro surpreendente, mudar de tema sem mudar de assunto e justificar o parágrafo acima, ao mesmo tempo em que consigo usar uma cunha de surpresa para dizer algo óbvio: como todo grande romancista muito constante, Eça era um contista menos constante. Há de sua lavra contos sensacionais e outros de menor qualidade. Isso não surpreende quem lembra que, à época, produzir contos era meio costumeiro de autores ganharem uma graninha ou, em dela não precisando, pelo menos de conservarem as atenções do público. Um continho aqui, outro ali; um inspirado, outro não; um bem realizado, outro tirado meio que sobre as coxas: Eça não foi o primeiro, nem o único, nem será o último.

Voltando às mulheres de Eça de Queirós, é num de seus contos inspirados e bem realizados que aparece, na opinião deste que vos fala, a figura de mulher mais original de sua obra.

Trata-se, o conto, de “José Matias”, originalmente publicado na Revista Moderna. O título do conto é o nome do protagonista, que encontramos, já no primeiro parágrafo, morto e pronto para ser enterrado. O conto é inteiramente narrado por um amigo daquele, que à saída do cortejo, encontra um antigo conhecido em comum e lhe vai explicando quem era aquele finado José Matias, e porque viera a morrer.

A fim de poupar tempo, declaro desde agora que todos os personagens neste conto são arquétipos; a genialidade consiste em que, lidos como tipos ou como pessoas, o conto funcionará igualmente. Eça logrou, neste conto, retratar em José Matias não só a filosofia idealista, como todos que abraçaram, como modo de vida, as diversas manifestações e ramificações do idealismo e do romantismo.

Note-se que Eça, realista renomado não apenas pela pena da produção como pela da controvérsia que não hesitava em tomar contra os românticos que apenas lentamente iam minguando em Portugal durante a ascenção da escola de Zola e Flaubert, fala com bastante simpatia, pela boca do protagonista sem nome, a respeito daquele pobre José Matias, tristemente finado; não é como quem exulta sobre o cadáver de um inimigo que Eça vai ao enterro daquela figura de Bulhão Pato, mas como quem, de fato, chora um irmão, sem desprezar da serenidade de quem pressentia o trágico fim que se avizinhava ainda durante o desenvolvimento dos fatos.

Porque José Matias, personagem, passa toda a extensão do conto em adoração à sua vizinha, à “formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira”, que “foi a sublime beleza romântica da Lisboa, nos fins da Regeneração.”

Elisa, enquanto personagem, havia de ser o que a ninguém mais surpreende: “Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandós ondeados. Uma carnação  de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas…”

Como tipo, já se vê: Elisa representa o Ideal, este conceito tão caro não apenas à filosofia, e não apenas enquanto termo filosófico de significação estrita; e como o Ideal, vai representar também tanto a cenoura que motiva o jumento, quanto a perdição do mesmo jumento. Inalcançável, leva à destruição quem o persegue.

Porque, para melhor aproveitamento das convenções românticas, é óbvio que Elisa tinha de ser casada e, por isso, proibida; e é claro que o apaixonado José Matias havia de ser correspondido, mas apenas castamente. Comprazem-se assim os amantes em anos de olhares trocados e algumas correspondências em que se adoram e se assenhoreiam da alma um do outro, sem que, contudo, um beijo, um toque mesmo derrubem de suas alturas este enlevo “esplêndido, puro, distante e imaterial”!

Eu tenho quase certeza que José de Alencar escreveu pelo menos oito romances sobre casos assim, mas não posso confirmar, pois não li nenhum.

Elisa era casada com um homem velho e doente; a quem, por respeito à sua condição, José Matias não odiava, e até nutria certa gratidão. Não mais associarei personagens a tipos. Nessa estranha sociedade, o amante da alma, o romântico idealista, não se ressente do dono do corpo, a tradição, mas antes louva-o por ter extraído do tecido da realidade as perfeições materiais que manifestam toda a sublimidade do ideal; ou por outra, talvez (talvez segundo o narrador) tivesse “reconhecimento por o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal (onde José Matias a nunca descobriria) aquela divina mulher, e por a manter em conforto, solidamente nutrida, finamente vestida, transportada em caleches de macias molas”, votando essa gratidão ao homem que “mesmo desinteressadamente, podia por direito, por costume, contemplar Elisa desapertando as fitas da saia branca”!

Mas o marido morre (como sói acontecer com as coisas antigas), e José Matias, com o terreno livre – pois como dizíamos antes, amava e era correspondido – foge para o Porto. Não casa com Elisa, nem lhe responde as cartas. Diante da possibilidade de concretizar seu amor, deixa-se vencer pela repugnância que todo idealista sentirá diante da oportunidade de abraçar o real.

Elisa, então, casa-se novamente: dessa vez não com um velho rico, mas com um jovem rico, de aparência possante e que haveria de alegrar muito bem uma viúva ainda jovem. Não fosse ela amante de um “ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor”.

Reentra o estranho casal nos estranhos modos de adorarem-se à distância, via olhares e cartas clandestinas. Hábito um pouco diminuído na intensidade e frequência, sendo o novo marido jovem e viril, mas igual no devotamento com que se entregam ao seu singular adultério, que o não seria segundo a Condessa de Champagne.

Surpreendentemente, morre o segundo marido (Cof cof revolução francesa cof cof) e, mais uma vez, Elisa e José Matias não conseguem se acertar. Fala mais alto o velho vício do Matias de não meter a mão em nada, que aí já nos deixa meio irritados, com vontade de o largarmos sozinho ali mesmo, para concluir sua tragédia pessoal e chegar ao ponto em que o Eça nos manteve desde o início do conto, isto é, no pretenso enterro do idealismo romântico recém falecido.

Pois se, enquanto pretensão filosófica (no sentido amplo de um encontro entre uma escola de pensamento, uma cosmovisão e um vocabulário para expressá-los) o idealismo parecia morto, todos sabemos, século e meio depois, que não faltavam então (lembro, leitor, o conto é de 1897) muitos anos para que as piores consequências daquela pretensão filosófica abrissem a boca imunda e devorassem muitos filhos de Deus.

Ah, o delicioso otimismo do fin-de-siécle, ah, viver num mundo em que todos estão felizes porque coisas têm sido inventadas, portentos como a eletricidade, o telégrafo e as estradas de ferro; ah, viver numa época em que, finalmente, a velocidade das comunicações e a facilidade na movimentação de ideias, produtos e pessoas permitiriam à humanidade adentrar uma nova era de concórdia e paz! Que bom é poder se despedir assim, tão serenamente, deste cadáver que a ninguém mais ameaça; que, para felicidade geral, jamais chegou a possuir, na realidade, a bela Elisa, por todos desejada.

Fiquemos, leitor, com Eça, diante do século XX, tendo às costas um cemitério onde jaz uma esperança louca, perigosa, mas agora inofensiva porque morta.